“Porque lhe chamámos Espaço Júlia? Era o nome de uma idosa que morava aqui ao pé. Já era vítima havia algum tempo. O seu caso marcou-nos imenso. Não havia registo nenhum, nunca ninguém o tinha comunicado à polícia. Só sabia uma vizinha, que batia com a vassoura na parede quando havia demasiado barulho. Não tinham filhos e já viviam em quartos separados e tudo. Mas um dia, num domingo de manhã em que ela não lhe preparou o pequeno-almoço, ele cortou-lhe a cabeça. Estavam na cozinha, e na cozinha há muitas facas… Ele depois ligou para a polícia e ficou em casa à espera. Entretanto, ainda lavou a faca e guardou-a na gaveta. Foi a 25 de setembro de 2011. Nunca tínhamos tido um homicídio aqui na nossa área. Depois disso também não tivemos mais nenhum. Felizmente. E escolhemos o seu nome para que o caso nunca fosse esquecido.”
Aurora Dantier, 50 anos, subcomissária responsável pelo Espaço Júlia ‘
‘Têm havido tantas ocorrências…” O desabafo entre polícias é ouvido numa sexta-feira, 13, em que o Espaço Júlia teve casa cheia desde as sete da tarde até perto da meia-noite. Já está escuro quando chegamos, para logo avistar uma mulher a espreitar para a rua. Loira, na casa dos trinta, segura um bebé ao colo, uns caracóis também loiros com pouco mais de um ano de vida. A mãe não tenta nem esconder o cabelo desgrenhado nem as olheiras. O seu olhar ansioso remata o cenário. Já tinha feito a queixa o seu caso fora inicialmente referenciado nas ilhas, de onde fugiu e agora ali estava ela, inquieta, a aguardar o carro-patrulha que a havia de levar para casa de uma amiga. Está junto à porta mas por várias vezes vai até à rua ver se a polícia chega.
“Venha para dentro, que está muito frio, olhe o menino”, insiste Aurora Dantier, 50 anos, subcomissária da 1.ª Divisão da PSP, em Lisboa, responsável pelo Espaço Júlia Resposta Integrada de Apoio à Vítima, de seu nome oficial. A mulher acede mas o nervosismo há de levá-la de volta ao passeio. E lá vai ela, também para entreter o miúdo, mostrando-lhe o cartaz da paragem de autocarro, junto à porta do Espaço, paredes meias com o Hospital dos Capuchos, no centro de Lisboa.
Oficialmente, a porta abriu nos últimos dias de julho. Desde então, receberam-se ali mais de 170 casos novos, e também aditamentos, o nome técnico para as situações em que já havia queixa anterior, quase dois casos a cada 24 horas. “Há dias mesmo muito complicados”, sublinha a subcomissária. “Chegámos a ter aqui quatro mulheres ao mesmo tempo, com crianças a tiracolo.”
Olhando para os registos, Aurora Dantier encontra facilmente um padrão: uma grande maioria dos incidentes acontecem à noite e ao fim de semana. “É quando as pessoas estão mais tempo juntas. Ou porque ele vem alcoolizado da rua ou porque foram a uma festa mas corre mal e acaba à pancada.” Mas também há quem espere que o momento de crise passe para ir ali pedir ajuda, lá para segunda ou terça-feira. É que, como sublinha várias vezes a responsável da PSP, é preciso muita coragem: “Já sabemos que as vítimas fazem sete a oito tentativas para quebrar o ciclo da violência. E que fazê-lo sozinhas é muito difícil, sobretudo quando se passa tão facilmente da chamada ‘fase lua de mel’, em que tudo é amor e uma cabana, à fase da tensão, marcada pelo controlo constante, e depois à agressão.”
Nesta sexta-feira também não vai haver descanso. “É dia de azar”, brincam os colega de Cátia Goulart, 31 anos, polícia de serviço. “Não digam isso, que atrai…”, refreia a agente.
Na verdade, é mais ou menos isso que se há de passar. A senhora loira do bebé de colo já seguiu com a polícia quando se abre a porta do outro gabinete que esteve fechada até então. Sai um homem, alto, moreno, barbudo, menos de 30 anos. Veio acrescentar detalhes ao seu processo: desde que quis deixar a ex-namorada que ela lhe faz a vida negra. Por uns momentos, mas só por alguns momentos, o espaço fica vazio: tanto os dois gabinetes de atendimento como o cantinho das brincadeiras, criado especificamente a pensar nas crianças.
“As mulheres, na sua maioria, chegavam-nos logo a seguir a um momento de crise e queixavam-se muito que o tratamento que recebiam variava de local para local e de polícia para polícia. Pensei muitas vezes como um espaço destes era o ideal, que permitisse um atendimento personalizado, agradável, numa sala em que não estivessem sempre a entrar e a sair pessoas, que garantisse a privacidade e que lhes desse também algum conforto e apoio técnico… Estamos a falar de alguém que chega a chorar, porque levou tareia, porque discutiu, porque lhe partiram as coisas em casa…”
O telefone toca. Há uma ocorrência na 1ª divisão. Do lado de lá da linha, chega a informação: “A vítima não quer falar com homens”, confia-nos a subcomissária Dantier, a assinalar que recusas daquelas repetem-se sempre que a queixa é de ordem sexual. A agente Cátia já está a postos para sair no carro-patrulha. “Vamos tentar saber o que se passa: se for menor de 18, segue para o Hospital D. Estefânia, se for maior, para o S. José e imediatamente há de entrar a Polícia Judiciária em campo.” Há de saber-se, mais tarde, nessa mesma noite, que se tratava de uma menor.
O rodopio continua. Pouco depois, tocam à campainha. Uma mulher entra a correr, e refugia-se de imediato numa das salas. Dois agentes entram com ela e fecham a porta, num ápice. A subcomissária e a técnica do apoio social respiram fundo. “Tem havido tanta ocorrência, tanta”, desabafa a polícia-chefe, que nem de férias deixou de ser constantemente chamada ao telefone. “Setembro ainda foi pior”, acrescenta Inês Carrôlo, 38 anos, a responsável pelo apoio social da junta de freguesia. Em pouco tempo, o espaço ganhou nome e fama. Aumentaram também as denúncias anónimas, vizinhos que ligam porque ouvem alguém a agredir e outro alguém a chorar. “As vezes são as crianças, num desespero: ‘Acudam, que o pai está a bater na mãe’.”
Foram precisos quatro anos até aquele sonho se tornar uma realidade. Há dez agentes em serviço diário, por turnos, 24 sobre 24 horas, 5 homens e 5 mulheres. Recebem as queixas da zona mas não só. “Isto é um posto de polícia, qualquer vítima de violência doméstica pode vir aqui pedir ajuda”, insistem os agentes de serviço, a contar orgulhosos que já foram confidentes de gente que veio de Oeiras e de Sintra, de Vila Franca de Xira e da Margem Sul. A vítima de que falam é geralmente uma mulher e tem entre 25 e 45 anos. Mas também ali chegam casos de idosos, quase sempre esquecidos, e de adolescentes, miúdos a viverem relações abusivas, de uma dependência emocional gigante.
“Também há histórias felizes: são aquelas em que a vítima consegue quebrar o ciclo. Mas ainda há demasiados casos em que eles arranjam outra a quem fazem o mesmo… Às vezes, são elas que arranjam outro agressor… Deixe-me dizer que é ainda mais importante quebrar o ciclo da violência quando há crianças: os rapazes tendem a tornar-se potencialmente agressores e as raparigas vítimas.”
Depois do depoimento, e da queixa, faz-se um plano de segurança. “Digo sempre para nunca discutirem na cozinha, nem em garagens, cheias de objetos ‘cortantes, perfurantes e contundentes’, nunca em sítios apertados em geral, que não tenham fuga possível”, repete a subcomissária. Se o risco for elevado, aconselha-se sempre a vítima a afastar-se do agressor. Se não tiver familiares ou amigos por perto, há sempre a solução das casas-abrigo. “Às vezes não aceitam. E nós não fazemos nada contra a vontade da vítima.”
Pela madrugada daquela sexta-feira, a acalmia toma conta do Espaço Júlia. Entram dois novos agentes ao serviço. De saída, a agente Cátia confessa que nem sempre é fácil desligar, quando tira a farda. Ainda não sabe que por três vezes irá encontrar a mesma mulher no turno seguinte. Depois da queixa, há de voltar só para assinar uns papéis. Mas, umas horas depois, regressa outra vez, agora acompanhada. Pelo seu discurso, adivinham-se outras histórias de vítimas de violência na família, como se o padrão tivesse sido herdado… Feita a ronda da despedida, Aurora Dantier e Inês Carrôlo fazem questão de assinalar que também já recebem outro tipo de visitas. Que há quem ali vá só para fazer uma visita ou tomar café. Assim de cabeça, lembram-se logo de uma mulher que não morreu por um triz. O marido esfaqueou-a brutalmente e ela só escapou porque os vizinhos chamaram a polícia. “Gostamos dela porque é resiliente. Apesar desse episódio, ela sorri. E sabe que estamos aqui para ela. Sempre.”