Bombardeamentos e um bloqueio naval. Para que ninguém se atreva a zarpar dos portos da Líbia. Não, não é uma anedota, é a proposta de Matteo Salvini, o populista líder da Liga do Norte, em Itália, subscrita pela deputada Daniela Santanché, da Forza Italia, de Berlusconi, e do senador Pier Ferdinando Casini.
Como se a resposta para a guerra pudesse ser mais guerra e isso dissuadisse milhares de pessoas de fugirem da fome e do caos. No entanto, com a campanha para as eleições regionais e autárquicas de 31 de maio, é de prever que a retórica se agrave. Mesmo quando o que está em causa é uma “hecatombe nunca vista” no Mediterrâneo, como lhe chamou António Guterres, o Alto Comissário da ONU para os Refugiados.
Empurrados por uma esperança muito maior do que o medo, o que vemos são os rostos da catástrofe agarrados a destroços do que foi um navio pesqueiro. Ou centenas de pessoas enfiadas em botes que ameaçam rebentar a qualquer momento. Enlatados de homens, mulheres e crianças. Uma onda maior, num mar traiçoeiro, e é um salve-se quem puder.
Quando acordámos, no passado domingo, 19, com a notícia de uma tragédia maior, no mar aqui à nossa porta (a última contabilidade aponta para 800 pessoas no fundo do Mediterrâneo; salvaram-se menos de 30), lembrámo-nos logo de Lampedusa, a ilha italiana que ficou no mapa há ano e meio quando um naufrágio destes se saldou por mais de 300 mortes. Agora, foram mais do dobro.
Contas feitas, desde o início do ano que uma pessoa se afoga a cada duas horas, nesta arriscada travessia do Mediterrâneo. Na ilusão de chegarem à Europa, pagam milhares de euros por uma viagem que lhes custa demasiadas vezes a própria vida. Uma avalancha de mortes anónimas até há pouco recebidas pelo silêncio e uma imensa passividade. Há uma semana, as declarações de Natasha Bertaud, porta-voz da Comissão Europeia (CE), em Bruxelas, não iam além de: “Não dispomos de fundos nem de apoio político para lançar um sistema de proteção de fronteiras, capaz de levar a cabo operações de busca e resgate.” Agora, não há volta a dar. “Já não há desculpas”, assume Frederica Mogherini, vice-presidente da CE e responsável pela Política Externa dos 28, a propósito da reunião de emergência convocada para esta quinta-feira, 23, e um anunciado plano em 10 pontos para dar resposta a esta crise humanitária. Um plano de intenções para mais patrulhamento e vigilância nas fronteiras, mais investigação sobre as redes de tráfico de pessoas, mas também maior colaboração com os países de origem como Espanha fez com o Senegal e a Mauritânia, há dez anos, devido à crise dos cayucos, as pequenas e rudimentares embarcações usadas por quem fugia do continente negro rumo às Canárias.
Mas como fazer isso com a Síria e a Líbia?
Fuga sem fim à vista
Atente-se na Síria, um país em guerra civil e cujo desenlace parece estar para as calendas.
Nos quatro anos de conflito, o saldo são 220 mil mortos, 3,9 milhões de refugiados e 12,2 milhões a dependerem da ajuda humanitária internacional.
Na Líbia, o cenário não é melhor. Após a intervenção militar liderada pela NATO, em 2011, seguiu-se a queda e a morte do ditador Muammar Kadhafi e o colapso de um regime com mais de 40 anos. Desde então tem sido o caos. Trípoli, a capital, e o resto do país tornaram-se um imenso campo de batalha, o ambiente perfeito para estes passadores de pessoas, que vivem do medo dos outros e lhes cobram fortunas para os atirar ao mar à sua sorte.
Uma vez paga a passagem, não há regresso possível. Um negócio que seduziu até os diferentes ramos jhiadistas da Al Qaeda e do Estado Islâmico. Na semana passada, um vídeo comprovava-o, 30 cristãos etíopes eram decapitados ou abatidos a tiro.
Outros candidatos a imigrantes na Europa vêm da Eritreia, no Corno de África, país onde vigora uma das piores ditaduras do planeta e onde quem se atreve a desafiar os caprichos do Presidente Isaias Afewerki se habilita ao cadafalso. E há ainda a Gâmbia, liderada por Yahya Jammeh, que se julga um enviado de Deus e possuir poderes so brenaturais, incluindo a cura para a sida.
Com figuras destas, quem não quererá fugir? “Há mais de um milhão de pessoas amontoadas na Líbia prontas a rumarem à Europa”, avisa agora o Governo italiano, depois de deixar claro que o país está completamente cheio, já nem nos cemitérios há lugar para tanta gente. O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, foi mais longe: “Quando dizemos que estamos diante da escravidão, não usamos a palavra só para causar efeito.” A vizinha Malta, onde também há demasiados relatos de náufragos, acrescenta: “Fechamos os olhos e seremos julgados, tal como quando ignorámos outros genocídios”, disse o primeiro-ministro Joseph Muscat.
Os dois países são os mais atingidos por toda esta crise épica e estão sem capacidade para gerir tamanha avalancha de pedidos de asilo ao que o comissário europeu para as migrações, o grego Dimitris Avramapoulos, pondera já lançar um programa-piloto de recolocação de refugiados políticos. Na gestão das catástrofes da semana, há ainda a registar a detenção do capitão tunisino e o seu assistente sírio, aos comandos da traineira que naufragou no domingo, acusados de pertencerem a uma rede de tráfico humano e que se juntam assim aos mais de mil já detidos pelo mesmo delito, em Itália.
Mas, como mostrou o desastre do dia seguinte, na ilha grega de Rodes, o êxodo não abrandou diariamente, o mar continua a devorar quem sonha chegar à Europa.
Daí as críticas implacáveis de ONG como a Amnistia Internacional ou a Comunidade de Santo Egídio. Esta última foi muito clara: “Se a União Europeia não está à altura de acabar com os inaceitáveis massacres no mar, a ONU deve intervir.”
A DIVIDIDA FORTALEZA EUROPA
Irão as tragédias no Mediterrâneo acabar com a tradicional tensão norte-sul entre os países da União Europeia sobre as políticas migratórias?
Itália tem sido, com Espanha e Malta, o país mais fustigado pelos dramas da emigração no Mediterrâneo. Espanha tem sido criticada pela construção dos muros em Ceuta e Melilla.
AA proporção de imigrantes já recebidos por Malta equivaleria a 2,5 milhões de pessoas se aplicada ao Reino Unido.
Na Grécia, o Syriza fala em tratamento digno para os emigrantes, mas sem dinheiro não há milagres e está coligado com os xenófobos Gregos Independentes. Em 2012, Atenas rendeu-se às virtudes do “modelo Melilla”, construindo um muro de 11 quilómetros junto ao rio Evros, na fronteira com a Turquia.
A Alemanha é um país generoso, no que respeita à concessão de asilo. Mas, no que toca a aumentar a escala da Operação Tritão, a postura do seu ministro do Interior, Thomas de Maizière, sempre foi intransigente: qualquer ação nesse sentido provocaria um “efeito de chamada”.
Quanto ao Reino Unido, a apenas três semanas das eleições legislativas, é improvável que o Governo de David Cameron queira perder votos para o UKIP, o movimento populista e anti-imigração de Nigel Farage. Londres também invoca o “efeito de chamada”.
Estónia, Lituânia e Letónia praticamente não têm pedidos de asilo de emigrantes africanos e do Médio Oriente, por isso ignoram os dramas do Mediterrâneo. Em compensação, têm problemas de integração das suas minorias russas.
Na França, a postura anti-imigração remonta ao tempo de Sarkozy como ministro do Interior, uma estratégia para limitar o crescimento da Frente Nacional. Um truque também usado pelo atual primeiro-ministro, Manuel Valls, quando teve as polícias francesas a seu cargo.
A Dinamarca tem uma das legislações mais restritivas do mundo no que toca à imigração, ao contrário da Suécia, um dos mais liberais.
Na Finlândia, os resultados eleitorais dos Verdadeiros Finlandeses, o segundo maior partido do país, não augura nada de bom.
Na Hungria, o Governo do primeiro-ministro Viktor Orban usa as péssimas condições de detenção dos imigrantes, em cadeias e instalações militares, como represália até 2011 os detidos eram sedados com Rivotril, um medicamento para a epilepsia. A Bulgária terminou a construção de um muro de 30 quilómetros na sua fronteira com a Turquia, em 2013.