Em O Tribunal É o Réu As questões do divórcio (Ed. Caminho, 220 págs., €13,90), Daniel Sampaio ficciona um divórcio traumático e critica a parcialidade e a hostilidade dos atores judiciais que quais personagens de O Castelo, escrito por Franz Kafka há quase um século complicam, ainda mais, a vida dos litigantes e dos seus filhos. O livro é publicado dois anos depois de O Labirinto de Mágoas, no qual questionava a facilidade com que muitos casais se separam, sem procurarem alternativas ao conflito. Nesta sua obra nova, o médico, 68 anos de vida e mais de 30 de prática clínica, sublinha a importância do regime provisório de responsabilidades parentais e da mediação conjugal.
Compara os juízes a monarcas, os procuradores a cortesãos, os advogados a residentes e os secretários a guardiões. Tem uma visão cética dos tribunais de família?
Não. Com a lei do divórcio de 2008, o casal pode divorciar-se sem ter que haver a noção de culpa. Este livro é centrado nos casais que têm filhos e partem para um divórcio litigioso.
A tese do livro é que todo o sistema do tribunal de família e menores não favorece o diálogo e o acordo, pelo contrário. Na conferência de pais, o juiz e o procurador deixam seguir o processo, que pode arrastar-se durante dois anos sem que os adultos saibam o que vão fazer com as crianças. Há uma omissão em tomar uma decisão, e uma demora, incompatível com a vida da criança.
Chega a dizer que os juízes oscilam entre Salomão e Pilatos, face à regulação das responsabilidades parentais.
O tribunal, ora adota uma posição salomónica, decidindo matematicamente para ser equitativo entre o pai e a mãe, ou deixa andar a situação, achando que ela se resolve por si, lavando daí as suas mãos, como Pilatos. Decide sem averiguar as situações reais em que pai e mãe podem ter as crianças e, na maior parte dos casos de litígio, promove a conferência de pais, com o juiz e o procurador, cada cônjuge efetua as suas alegações e, não havendo acordo, a situação arrasta-se sem que fique definido um regime provisório.
Mas não será óbvio que tal seja feito, tendo em conta o superior interesse das crianças?
A menos que existam situações excecionais, em que haja violência ou abuso sexual, por exemplo, defendo que se parta logo para essa solução, já que os filhos podem ficar dois anos, em média, numa situação indefinida.
E correndo o risco de um dos pais fazer valer a sua decisão ao ponto de excluir o outro, a chamada alienação parental?
O tribunal perde muitas vezes a discussão, chama peritos, pedopsiquiatras e psicólogos para ver se há a síndrome de alienação, mas a literatura científica não considera que haja uma identidade clínica, ou que tais situações correspondam a um diagnóstico, nem faz sentido estar a colocar um rótulo na criança. A controvérsia nos tribunais, se a criança foi ou não foi vítima de alienação parental, equivale a discussões e horas de alegações que não são importantes.
É frequente a Justiça fechar os olhos, perdendo-se para sempre a ligação de pais com filhos?
Há muitos sócios da Associação Pais para Sempre que ficaram privados do contacto com os filhos por muitos anos, sem qualquer justificação. Basta um advogado interpor uma situação de violência, o juiz receia que essa situação se agrave e priva o pai do contacto, sem avaliar.
O que é que se deve fazer, então?
O tribunal precisa de investigar se há práticas parentais alienantes e provar que a mãe, por exemplo, impede o acesso do pai à criança e inculca nesta aspetos negativos contra ele. Há que fazer um inquérito social, que, na maior parte das vezes, não é muito bem feito e, por isso, defendo que o tribunal deve ter uma assessoria técnica independente, isenta, em vez do parecer de um psicólogo ou psiquiatra.
No seu livro afirma que o tribunal, por incúria, ignorância ou lentidão, provoca danos às famílias, muitos deles irreparáveis. Refere-se a quê, concretamente?
À dificuldade de decisão do juiz, quando confrontado com vários relatórios. Se as pessoas têm dinheiro, pedem um parecer privado [cem euros ou mais], ou, então, o juiz pode pedir uma perícia médico-legal.
O pedido vai para o Instituto de Medicina Legal (IML), é distribuído pelos serviços, um psiquiatra fala com a mãe, outro com o pai, o pedopsiquiatra fala com a criança. São três relatórios, é muito difícil tirar qualquer conclusão.
Os relatórios não têm elementos suficientes para o juiz poder decidir?
Não consigo ver se a pessoa à minha frente é, de facto, um bom pai ou se é negligente e não tem competências parentais. Pela história biográfica ou pelos testes, posso dizer que não tem patologia indicativa de risco para a criança.
Não deveria haver uma mediação?
A mediação familiar está prevista na lei, mas os tribunais, em geral, não têm a ideia de que a mediação é uma coisa útil. Muitos advogados e juízes não têm essa cultura da mediação. Por outro lado, há poucos mediadores.
O sistema não tem as soluções para o problema. Noutros países, o juiz suspende a ação do divórcio e envia o casal para a mediação, que envolve dez ou 12 sessões e no final obtém-se, pelo menos, a diminuição do conflito. E o juiz tem mais capacidade de decidir.
Muitos pais veem a partilha do filho como uma perda narcísica ou uma derrota pessoal?
Sim. Muitos não estão a pensar no interesse da criança, antes em não prescindir de uma parte de si próprios, como sucede no caso ficcionado na segunda parte do livro.
De tão embrenhados no conflito e nos seus problemas pessoais, não conseguem pensar nos filhos. Acompanho um casal que não quis mediação familiar proposta pelo advogado e concordou em fazer sessões privadas comigo e o interessante é que quando começam a falar da criança, a certa altura começam a provocar-se e a falar de si próprios.
Entram em escalada, eles ou os advogados por eles.
Daí ser importante diminuir o grau de conflitualidade, centrar o acordo na criança e fazê-lo. O tribunal não favorece isso. Para os advogados, o seu constituinte é quem tem razão e não há uma abordagem sistémica. Nem eles, nem os juízes, nem os procuradores, são capazes de ver o conjunto. Vendo só uma parte do problema, não conseguem tomar uma decisão a favor da criança. O juiz tem de decidir, mas, para tomar uma boa decisão, às vezes é preciso sair um bocadinho do casal, imerso no conflito. Ouve-se muito pouco os avós, os médicos, os professores. Até a criança, com a necessária precaução.
Nota que tem havido evolução, na sua experiência clínica, com estes casos?
Neste momento, muitos juízes já pedem o apoio de um psicólogo ou pedopsiquiatra para acompanhar a criança quando ela tem de ser ouvida. É uma evolução positiva e a presença de um técnico de saúde mental pode facilitar um testemunho sobre as reais condições que tem em casa do pai ou da mãe e facultar ao tribunal mais dados para decidir.
Quanto tempo pode levar uma transição no período pós-separação?
A investigação permite dizer que, pelo menos durante um ano, as situações são muito indefinidas e é quando tudo é mais difícil. Se a conflitualidade dos pais aumenta durante esse ano, o tempo esperado para a criança se adaptar, isso prejudica a fase de transição.
O tribunal deve criar condições para que haja um acordo entre as partes e a criança continuar a ter a presença do pai e da mãe.
No sentido de ter uma guarda partilhada?
Pode haver uma guarda partilhada sem residência alternada. Esta não tem riscos, desde que o casal tenha um diálogo mínimo que a permita. Tive o caso de uma mãe que rasgava a roupa da criança e acusava o pai de negligência com o vestuário. Durou anos, envolveu o Ministério Público e a Judiciária, mas veio a provar-se que era uma atitude deliberada para prejudicar o pai. Aí, a residência alternada transforma-se num inferno. “Não trouxeste a roupa, não vieram os trabalhos de casa feitos, não lavou os dentes, não deste banho, etc.”
Já há estudos sobre isso e alguns questionam até se será bom para a criança andar a saltar de casa em casa.
Os casos que funcionam bem são aqueles em que há um mínimo de acordo que possibilite um diálogo para questões práticas, e que as residências sejam próximas, até para os filhos não perderem os amigos.
Conheço um caso em que o pai alugou um apartamento na mesma rua e correu muito bem.
Que apreciação faz da forma como os pais encaram a guarda parental?
Muitas vezes, acho a guarda partilhada uma forma de os pais não pagarem pensão de alimentos. E há muito incumprimento da pensão de alimentos e muitas vezes não dizem ao tribunal quanto ganham efetivamente.
Porque é que o tribunal não verifica isso, cruzando dados com as Finanças?
Insisto: o problema do tribunal de família e menores é de avaliação: das circunstâncias de vida e financeiras do pai e da mãe; das condições da escola. O relatório social é capaz de demorar um ano, porque não há técnicos suficientes na Segurança Social, e pelo privado muitos pais não têm dinheiro para o pagar. Um ano é muito tempo na vida de uma criança.
Seja sob o mesmo teto ou em famílias separadas, é frequente a criança sentir-se um sem-abrigo emocional?
Se sim, como lida com as dificuldades que sente à sua volta? Verifico um fenómeno interessante na minha prática profissional: as crianças percebem, mesmo as muito pequenas, que não se devem envolver nos conflitos dos pais. Nas famílias recompostas, por exemplo, raramente falam do que se passa numa casa quando estão na outra. As crianças têm uma sabedoria emocional muito grande em relação às dificuldades dos pais. Sabem que passar informação vai agravar o conflito e são muito sábias na gestão dessa informação. Exceto as que são vítimas de alienação parental, que são industriadas para dizer que um dos pais é mau.
Mas deixa sequelas. Será um motivo forte para repensar a solução do divórcio?
Na primeira metade do século XX, a mulher era submetida a maus-tratos e permanecia nessa situação a vida toda, sem protesto. Hoje o divórcio pode ser uma boa solução para a saúde mental de todos. O divórcio é pernicioso quando se mantém a conflitualidade entre pais. O tribunal ainda é muito hostil e frio, ninguém informa ninguém, as pessoas andam lá perdidas, esperam horas. quando me nomeiam para ser perito, já sei que é um dia perdido. Ninguém cumpre horas. Os psiquiatras vão muito ao tribunal, sou diretor de serviço e muitas vezes tenho de ir, e há um profundo desprezo pelas pessoas. Espera-se, depois o juiz vai fazer uma diligência qualquer, continua-se à espera, e depois dizemnos que se continua no dia seguinte… Por isso é muito complicado pôr uma pessoa a falar.
O que pensam os protagonistas do castelo, os tribunais, do ralhete que lhes dá?
Os juízes não gostam, os advogados estão todos contentes, embora também diga mal deles! No lançamento do livro houve um debate com três advogados, que acharam que o livro era importante porque iria provocar a discussão e agitar as águas.