‘Eu era animadora sociocultural num projeto europeu de luta contra a pobreza, em Alfange [Santarém]. Era um emprego muito interessante mas bastante exigente, estendia-se por muitas horas, e também pelo fim de semana. Em 1994, comecei a sentir-me mais cansada, com menos forças, mas fui atribuindo tudo ao excesso de trabalho. Só dois anos depois, quando comecei a perder mobilidade na mão direita, e a sentir dormência, é que fui ao hospital. O diagnóstico foi muito rápido: disseram-me que tinha a doença do neurónio motor mas não me explicaram bem o que era. Estive internada um mês e acabei por ler num livro que a esperança de vida era de 2 anos. A minha médica confirmou. Teria 2 a 5 anos, na melhor das hipóteses. Fui para casa com uma única recomendação: voltar ao centro de saúde quando piorasse muito, para me prescreverem, então, fisioterapia… Foi um familiar que falou do meu caso a um amigo que trabalhava no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Conseguiram-me uma consulta com uma equipa da especialidade e tive a sorte de ser logo incluída no ensaio clínico do Riluzol, que viria a ser, dois anos mais tarde, o primeiro medicamento para ELA a ser comercializado em Portugal. Até então, não havia nada. Quando o ensaio terminou, e o medicamento passou a estar disponível em todo o País, voltei a ser seguida apenas pelos médicos do centro de saúde. Notei uma diferença abissal: passei de uma equipa que fazia tudo pela minha qualidade de vida para outra que me fazia sentir que todo o esforço seria um desperdício.
Mas decidi que não me iria render à doença.
Só conseguia pensar na minha filha, que tinha 10 anos. Não queria que ela crescesse com uma mãe em constante lamentação, com uma mãe triste. Fui tentando manter uma vida o mais normal possível em casa, apesar de estar numa cadeira de rodas e ter de passar muito tempo deitada, porque o meu pescoço já não aguentava o peso da minha cabeça.
A cadeira que me tinha sido emprestada pela Cruz Vermelha era antiga, difícil de manobrar para alguém como eu, já sem forças, e não tinha apoio para a cabeça. Chegou uma altura em que só me podia sentar nela encostada contra uma parede. Foi então que a minha prima Isilda começou a investigar que tipos de alternativas existiam para pessoas nas minhas condições e conseguiu que uma empresa colocasse uma cadeira em minha casa, para a experimentar durante uma semana. Nem queria acreditar! Conseguia andar por todo o lado, usando só um dedo. Podia ir à rua! Senti que renascia, que me tinha sido devolvida a liberdade.
Mas a cadeira custava 25 mil euros.
Eu não tinha esse dinheiro. Fiquei com uma reforma por invalidez de 400 euros. O meu marido pouco mais ganhava. Quiseram organizar concertos solidários, vender rifas… eu não deixei. Tentaram convencer-me a ir à televisão, mas eu só de imaginar a minha vida exposta, com um violino em pano de fundo. Não, não queria que a minha filha assistisse a tudo isso. E também achava uma loucura gastar uma fortuna numa cadeira de rodas com alguém que iria estar aqui tão pouco tempo.
Mas a minha prima não desistiu e, juntamente com o seu marido, escreveu cartas para centenas de fundações e empresas, a pedir ajuda.
Passaram-se meses sem resposta. Até que um dia o telefone tocou. Era o senhor Armando Cardoso, dono da Conforlimpa, a convidarme para ir à festa de Natal da empresa, no dia 20 de dezembro de 2005, onde me seria oferecida uma cadeira exatamente igual à que eu tinha experimentado… Foi um dia inesquecível.
Nunca poderei agradecer o suficiente ao senhor Armando, que não me conhecia mas passou a convidar-me sempre para as festas da empresa, depois dessa data. Esta cadeira, onde ainda hoje me sento todos os dias, deume outro ânimo para viver. Usando o seu joystick, que se pode manobrar com um só toque, passei a poder acender e apagar luzes, mudar canais de televisão, fazer telefonemas ou escrever no computador (oferecido pela Optimus, depois de mais pedidos insistentes da minha prima…). Mas, sobretudo, deixei de ficar todo o dia presa em casa. Os meus vizinhos autorizaram que se construísse uma rampa de acesso no meu prédio (e o condomínio fez questão de pagar), e passei a sair todos os dias, para o centro de Santarém, onde fiz novos amigos. Era um pouco perigoso, pois tinha de andar na estrada, já que os passeios não tinham rampas. Havia zonas da cidade onde precisava de ir e simplesmente não conseguia.
Todos os meses era uma saga ir aos Correios, para levantar a minha reforma. Estava saturada de pedir ajuda a quem passava e ouvir ‘Desculpe, não tenho moedas’… Eu só queria subir um passeio ou que me chegassem um pacote de arroz da prateleira do supermercado! Um dia, enchi-me de coragem e fui à Câmara, para apresentar uma reclamação ao presidente, que era o Moita Flores. Fiquei à porta, claro, porque não havia rampa de acesso nem para chegar à receção. Consegui que uma técnica viesse à rua falar comigo. Perante a minha insistência, continuava a dizer-me que seria impossível ir falar com o presidente pois ele estava no primeiro andar e não havia forma de me levar lá. A não ser que fosse ao colo. Eu recusei ir ao colo. Mas insisti tanto que chamaram o presidente. Estava tão enervada que já tinha duas ou três das boas para lhe dizer quando chegasse ao pé de mim. Mas não consegui, porque assim que ele me viu ficou com os olhos cheios de lágrimas. Tivemos uma boa conversa e, uma semana depois, já havia rampas! A minha vida foi seguindo assim, com pequenas vitórias. Mas recebeu um duro golpe há 6 anos: o meu pai e a minha mãe morreram, num espaço curto de tempo.
Eram o meu chão e o meu colo. A minha relação com o meu marido também se tinha deteriorado muito ao longo dos anos e, nessa altura, já com a minha filha a estudar fora, decidi usar algumas economias que os meus pais me deixaram e sair definitivamente de casa. Fui viver para um lar. As filas de espera são enormes, sobretudo para as vagas sociais. Fiquei a pagar 1 200 euros por mês, na esperança de ter uma resposta célere para o meu caso e pagar apenas uma parcela do valor, de acordo com os meus rendimentos, mas depressa percebi que essa resposta poderia não chegar nunca. Tive a sorte de conhecer uma assistente social extraordinária, que fez de tudo para me ajudar. Até que, sem mais portas a que bater, decidiu ligar ao senhor Armando, apesar de eu lhe ter dito para não o fazer. Já me tinha dado tanto! Ela explicou-lhe a minha situação e ele respondeu de imediato que a conta passava a ser da sua responsabilidade, que eu não teria que me preocupar mais com o assunto. O que eu chorei nesse dia.! Durante três anos, pagou os 1 200 euros, sem nunca falhar. Mas, um dia, recebi um telefonema da sua filha, a pedir-me desculpa. Não sabia se poderiam continuar a assumir aquele compromisso, dados os problemas que a firma do pai atravessava [Armando Cardoso ficou com as contas congeladas e foi este ano condenado a 11 anos de prisão por fraude fiscal].
Eu agradeci muito agradecerei sempre e disse-lhe que ficasse descansada, já tinham feito muito por mim. Mudei-me para um quarto particular da Santa Casa da Misericórdia de Alcanede, ainda à espera de uma vaga social, e, na mesma altura, em 2011, a minha prima Isilda conseguiu finalmente que eu fosse atendida outra vez no Santa Maria, pela equipa do professor Mamede de Carvalho, especialista em ELA. Voltei a ter alguém a acompanhar-me de forma positiva, otimista até, o que muda tudo. No ano passado cinco anos depois de ter feito o pedido, chegou finalmente a vaga social para os meus cuidados paliativos. Não era na zona de Santarém mas na Bobadela, no Hospital do Mar. Tinha de dar a resposta no mesmo dia, não conhecia o sítio, mas o que havia para pensar? Aceitei, claro. É aqui que vivo desde então, já lá vai um ano e meio. Quando aqui cheguei, pensei que era mentira. As instalações são tão boas, o pessoal é tão afável, desde as rececionistas às enfermeiras, aos médicos e aos diretores… quando a minha filha me vem visitar, sente que vem a casa da mãe, não a um hospital. Sou muito feliz aqui. Posso sair na minha cadeira até aos jardins, fico a ver o Tejo e a Ponte Vasco da Gama. Fiz grandes amizades, como a Dra. Elsa Mourão, que já me levou ao teatro, a concertos, a exposições… tenho muita sorte. Sei que não terei muito mais tempo mas a morte não me assusta. Tive tempo para refletir muito sobre a morte. Sou crente, estou em paz. Mas sobretudo tive tempo para ver a minha filha crescer, para lhe dizer o quanto gosto dela, e para ver nascer o meu neto. Vi-o com 5 minutos de vida. Hoje já tem 17 meses e ainda consigo mexer-me o suficiente para fazê-lo rir. Há 20 anos, não acreditava ser possível sobreviver para ver a minha filha tornar-se mãe. Hoje, olho para trás e agradeço a todos os que me ajudaram e animaram a prosseguir, e que me deram tantos momentos felizes. Se há uma mensagem que gostava de passar era esta: o diagnóstico não tem de ser uma sentença. Há muita vida além da doença.”