Conhecemos os seus bichos de loiça bordaliana e croché, as Valquírias suspensas, o sucesso internacional. Mas Joana Vasconcelos, 43 anos, quer fazer mais: atribuir bolsas de estudos é um dos muitos objetivos da Fundação Joana Vasconcelos, cujo site será apresentado em dezembro.
Porquê uma Fundação Joana Vasconcelos?
Estas coisas nascem daquilo que nos vai acontecendo, e daquilo por que passámos. Quando fui estudante, era difícil o acesso a bolsas, a viagens, a outras realidades. Certa vez, uns colegas meus concorreram à Bolsa Maluda. Uma pintora ter criado uma bolsa para ajudar os outros marcou-me. Vi também exemplos, como [o galerista] Manuel de Brito, Paula Rego, Júlio Pomar, de como uma outra geração lida com o espólio. Pensei: “Porque é que não se organiza isto, evitando que seja traumático e complexo para as famílias e a sociedade? Porque é que não me hei de organizar agora?” Tenho, há três anos, um responsável pela área documental do meu ateliê, pois recebemos muitos pedidos de alunos de mestrados e doutoramentos, e percebemos que tínhamos de organizar o material de maneira a que pudesse ser estudado mais tarde. Isso obrigou-nos a fazer um bom website, uma base de dados e a criar uma perspetiva: “Um dia, fazemos uma fundação.” Esse dia podia ser daqui a 30 anos, mas começaram a chegar vários pedidos.
Que tipo de pedidos?
Para doar peças para leilões para ajudar a AR.CO [Escola de arte e comunicação visual] ou os miúdos com deficiências motoras, ou a luta contra o cancro… A dada altura, eram tantas as causas que não tínhamos capacidade de atender todas. Mas a que me despertou foi a causa do [Refúgio] Aboim Ascensão: queriam comprar uma carrinha, painéis solares para aquecer a água das crianças, coisas práticas. Dei-lhes uma cobra, ou um sapo, que foi vendida e os fez ganhar dez ou onze mil euros. Disseram-me: “Com o dinheiro, conseguimos fazer isto e aquilo.” E eu pensei: “Isto faz sentido.”
A organização inspirou a fundação?
Ao longo dos anos também surgiram os estágios, as conferências, as muitas visitas-guiadas, e uma parte mais social: visitas de primeiras damas, de grupos de colecionadores, de marcas… Comecei a perceber que ajudava muito, que isso me retirava muito tempo e dinheiro, e que não queria fazê-lo de maneira aleatória. “Tu já és uma fundação. É só pôr isto no papel”, aconselhou-me o meu advogado. Quando decidimos avançar, as fundações do país estavam a ser postas em causa. “Ah, isso das fundações, agora é um mau momento…”, disse toda a gente. Não tem a ver com o momento. Tem a ver com o meu momento e com a minha evolução enquanto pessoa e enquanto artista.
Como surgiu a ideia da criação de bolsas?
Apercebi-me que as escolas, como a AR.CO, a Universidade de Évora, a Escola das Caldas/ESAD, estavam em dificuldades e muitos jovens não tinham maneira de pagar as propinas. A Fundação vai dar Bolsas de Estudos Joana Vasconcelos à Universidade de Évora e à ESAD. Essas bolsas contemplam também os miúdos que passaram pelo ateliê. Alguns deles pediram-nos apoio – ajudámos uma menina a fazer estudos de dança em Oslo, uma outra a continuar a pesquisa em azulejaria… Agora, vamos apoiar de forma organizada e oficial, através do estabelecimento de convénios com as instituições e abertura de concursos, para que, no próximo ano, tudo seja mais efetivo.
A fundação terá algum apoio oficial?
Até agora, não temos tido apoio nenhum. Faço pequenos projetos, que não são o core principal do negócio [as artes plásticas] e que dão dinheiro para a fundação, como, por exemplo, o projeto feito para a Topázio [14 artistas reinterpretaram uma peça em prata] ou o que estamos a fazer para a Swatch. O dinheiro que ganhamos com estes projetos é dinheiro para dar aos outros. Posso dizer que, recentemente, a Fundação Joana Vasconcelos conseguiu ganhar à volta de €50 mil. No futuro, a nossa ideia é associarmo-nos a marcas ou empresas que nos queiram ajudar nesta área.
As fundações também servem para obter benefícios fiscais…
Quando os tens. Há que ter estatuto de utilidade pública – não é o caso. O que nos define é a grande escala. Perante uma exposição para um grande museu ou uma Valquíria para uma igreja, o que é um Swatch, um selo, latas de cerveja? Mas a pequena escala precisa de nós. Fui madrinha das festas de Viana do Castelo e foi uma experiência incrível. A história dos selos é genial: foram os últimos exemplares a sair antes da privatização [dos CTT] e aprendi imenso sobre História. Quando fiz as latas da Sagres, fiquei orgulhosa. Cá dentro, pensava: “Estás louca? Mas porque é que perdes tempo com estas coisas? Devias estar a fazer as grandes peças!” Mas decidi que essas pequenas peças também faziam sentido para mim: divirto-me imenso, saio da bolha das artes plásticas, e cresço enquanto pessoa.
Isto não a desvia do trabalho de artista?
Eu comecei por ser uma aluna da AR.CO, que também precisou de ter uma bolsa e não pôde ir estudar para o estrangeiro. Fazer estas coisas, aparentemente desviantes do meu negócio principal, é uma experiência nova. Se não sais da comfort zone, ficas menos capaz de falar sobre o mundo.
Muitas solicitações vêm de marcas cujo benefício social é residual. Como lida com isso?
Só faço parte [de causas] quando tenho a certeza de que eles vão efetivamente ajudar.
Haverá comentários de que a sua fundação é uma manifestação narcísica.
Se se vir a fundação assim, é verdade. Ela também guarda peças minhas, tem uma coleção. Mas a nossa fundação é o ateliê virado para fora, não é virado para o artista.
Os particulares estão a substituir-se às funções do Estado ou das instituições?
Se os privados não me tivessem ajudado com o cacilheiro Trafaria Praia [com que participou na Bienal de Veneza], eu nunca o poderia ter concretizado. Só estou a fazer o que fui aprendendo: as pessoas podem fazer uma diferença. Não é preciso ser muito rico e americano: podemos ajudar-nos uns aos outros, desde que de maneira consciente e sincera. Eu não dou a cara só para a fotografia, isso recuso-me.
Artigo publicado na Revista VISÃO nº 1134