Ainda se ouve a expressão: “Come a sopa ou chamo a polícia”. Compreendo que muitos não se apercebam do erro que cometem quando o dizem. Essa expressão usada para intimidar as crianças, a quem muitas vezes, tal como a nós, não lhes apetece um prato de sopa, pode mais tarde vir a ser prejudicial. Um dia perdidas, em vez de procurarem a ajuda de um agente, são as primeiras a fugir com medo que algo lhes aconteça. Noutras circunstâncias também posso gritar: “Não batam que chamo a polícia!”, mas esse grito não é ouvido. É um grito sem som.
Quando eu, a Paula, a Carla e a Cristina formámos o Coração na Rua, estávamos longe de pensar que chegaríamos até aqui. Os amigos foram-se juntando e este grupo foi crescendo. É incrível como a mensagem parece ter passado e, cada vez mais, são os anónimos que fazem a diferença e que se colocam ao lado dos mais desprotegidos. Quase sempre, os que dão são os que menos têm. E quando se fala em dar, fala-se em dar alimentos, agasalhos, dar de si ao outro que nada tem, que se perdeu nas ruas ou em histórias da vida (que não julgamos) e que, sem mais nada para perder, acaba por não acreditar que há muito para fazer, para viver e se abandona por completo.
São estes casos de homens que se perdem sem darem conta e que sem mais nada para perder acabam por nos motivar cada vez mais. Não são casos fáceis, nem histórias de encantar ou embalar, por isso não nos deixamos adormecer. Como seria bom que ninguém se deixasse adormecer e que os números que nos querem passar de optimismo não se reflectissem num “está tudo bem” ou “vai ficar tudo bem”. Ainda não é chegada a hora de assim pensar, por isso, não se deixem adormecer.
A sociedade não pode justificar a sua ausência e passividade perante casos gritantes por que não lhe compete fazer seja o que for. Compete-nos a todos estarmos atentos, ajudar, prestar auxilio, denunciar, agir. Compete-nos a todos, como cidadãos, agirmos sem medos, sem temores e receios de sermos mal interpretados ou “acusados”.
Chamar a polícia? Sim! Não por uma criança não querer comer a sopa mas, por exemplo, por não a ter para comer. Chamar a polícia quando se vê alguma injustiça, mesmo que se trate de um alcoólico ou de um bêbado. Não, não é engano!
Realmente começo a pensar que estas duas palavras têm mesmo significados diferentes, ao contrário do que me foi ensinado.
Se beber um vinho XPTO em copo de balão, se usar fato e gravata, é considerado alcoólico. Se dormir na rua, beber o vinho pelo pacote que compra no supermercado da esquina, se cair para o lado, passa a ser tratado por bêbado. Alguém já reparou nesta diferença? Mais, se for um alcoólico, pode sempre chamar um táxi que ninguém rejeita o seu transporte. Afinal terá dinheiro para pagar a “corrida”. Se for um sem abrigo a necessitar de ajuda não há nada a fazer, nem a ambulância se chama porque é perda de tempo, porque vai recusar ajuda. Mas esperem! E o direito à igualdade? E o dever de prestar auxílio? Não existem? Não estão assegurados? Deveriam estar para todos. Não só para alguns. Para um sem abrigo que represente algum perigo, que esteja bêbado, que tenha sido espancado, como se de um saco de boxe se tratasse (e algumas vezes por quem menos se espera), esses direitos passam ao lado. “É uma perda de tempo”, como ouvi eu e outros “corações”.
Lamento e lamentamos nós, os que andamos nas ruas, mas nunca é perda de tempo auxiliar seja quem for. É nosso dever, é nossa obrigação! Somos todos voluntários se assim o quisermos. Em grupo ou sozinhos, é nosso dever proteger quem se perdeu. Não interessa a roupa que vestem, o perfume que usam, o nome da rua onde dormem ou habitam, todos juntos temos de estar atentos a tantos casos de discriminação que estão a aumentar.
Não neguem auxilio por alguém estar a sangrar e deitado nas calçada, são esses que precisam de nós e se as autoridades nada fazem – umas porque já não conseguem, outras por considerarem perda de tempo -, sejamos nós, os cidadãos, a colocar o coração na rua e junto de quem precisa. Custará assim tanto? Vamos chamar quem devemos, não para obrigar a comer a sopa mas para que se faça justiça e o auxílio seja prestado.
Hoje prestamos auxilio e amanhã seremos auxiliados. Já pensaram com,o de um dia para o outro, as situações podem mudar?
Nunca digam nunca!