Quando vamos para as ruas, olhamos nos olhos de todas as pessoas que ali dormem. Sentimos o coração. Ajudamos com uma peça de roupa, um cobertor, comida e, principalmente, ouvimos e falamos com todos, sem julgamentos. A primeira saída é sempre recordada de uma forma especial. Consigo retratá-la como se fosse hoje. Fomos preparando com carinho o que conseguimos arranjar entre os familiares: bolachas, termos para líquidos, sandes, cobertores, alguma roupa, fruta e pouco mais. O “mais” vinha e estava em nós. Era a nossa vontade de começar.
Recordo-me do Ari, um sem-abrigo que julguei estar morto quando toquei na simples manta que tinha e não respondeu. Estava num parque de estacionamento. Em pleno Inverno, em que eu estava bem protegida, encontrei um ser completamente gelado, deitado no paralelo e com uma manta azul a cobrir todo o seu corpo meio enroscado e adormecido. Só respondeu quando ouviu perguntar se queria algo quente para beber. Reagiu com a voz meia trémula. “Quero sim minha senhora”.
Tivemos de o ajudar a levantar, cedo de mais para qualquer um de nós já estar a dormir, mas a única coisa a fazer para quem vive na rua. Recordo os seus olhos e ar de admiração quando me olhou e me agarrou a mão. Não era habitual ver alguém tão novo a perguntar se precisava de ajuda. Enquanto bebia leite quente e comia umas sandes que tínhamos levado, foi conversando e conversando, como se estivesse a ser aquecido por aquele momento. Partilhou as suas idas ao santuário de Fátima, o porquê de ter vindo para Portugal e continuava a falar, enquanto uma das suas mãos continuava agarrada à minha.
Não me vou esquecer, no meio de tanta partilha em que fomos principalmente ouvintes, disse-me: Menina, vai para casa. Está frio. Só há um Deus e ele sabe porque eu estou aqui. O Ari, sou eu, sozinho.” Na verdade era mesmo, estava sozinho ou, como ele dizia, estava com Deus. Mas essa solidão não era o que pretendia, não era desejada porque quando nos despedimos para seguir para outras ruas à procura de quem precisasse de algum aconchego, perguntou-nos: “Já vão?”.
Nós tivemos mesmo de ir, mas não fomos sem que primeiro a sua “cama” fosse feita com lençóis e dois cobertores. Só quem lá estava sentiu a dor de estar a dobrar os lençóis como fazemos em nossas casas, a fazer uma cama onde o colchão é o paralelo frio e escuro. Saímos cabisbaixos, largos minutos sem trocarmos uma única palavra, mas seguimos, e em cada esquina encontrávamos mais um vulto, mais alguém gelado e só.
Tudo para mim parecia absurdamente triste e irreal. Por onde tinha andado eu durante estes anos todos que nunca senti este gelo das ruas do Porto? Que nunca tinha visto rostos famintos? Que nunca tinha sentido a rua daquela forma tão estranha e tão distante? Por onde temos andado todos?
Chegados ao fim dessa primeira noite, depois de termos passado pelos locais que mais ao menos pensávamos conhecer, encontrámos a D. Cidália com a irmã, em plena Rua de Santa Catarina, essa mesma por onde passa tanta gente. Viu-nos a servir leite com chocolate e num tom envergonhado e tão baixo, perguntou-nos: “Podem-nos dar alguma coisa quente?”. Já só tínhamos chá e poucas bolachas, mas foi o suficiente para que no final as suas mãos completamente frias me aquecessem o rosto quando me fez uma carícia e perguntou quem éramos e quando voltávamos.
Ficámos todos a olhar sem saber o que responder. Naquela altura parece que as nossas palavras também tinham sido congeladas e, em segundos, pensei: “Será que volto?” Sem saber o que os outros iam responder ou se o iam fazer, perguntei: “Por onde é que andam?” Ela respondeu: “Pelas ruas, vamos onde estão as carrinhas a dar comida”. “Então será aí que nos havemos de encontrar”, respondi espontaneamente. Não sabia se os meus amigos iriam voltar, mas eu tinha a certeza de que o faria. Voltámos todos e mais ainda.
Nesta altura que tento escrever, parece que já estou na rua, com os amigos que nos esperam sempre. Porque isto é o Coração na Rua: o amar, o querer, o sentir e o agir, naturalmente. É estar aqui sentada a ouvir a chuva e já a pensar que tenho que ir à Luana para lhe entregar os plástico para que se cubra e proteja.
Como tudo começou? Começou num dia cinzento em que senti a chuva e vi alguém sentado todo molhado a pedir uma tigela de sopa! Como tudo começou? Não sei bem… acho que começou quando comecei a crescer e a ver as coisas com outros olhos!