Anya Kot, 12 anos, já conhece bem os cantos à casa de Maria João e Hernâni Leitão. A rapariga ucraniana é alta e esguia, de ar frágil e doce. Mas os seus mais de 1,70 metros de altura são enganadores.
É ainda uma criança, que tem como sua melhor companhia em Portugal o João, de 6 anos e neto do casal que a acolhe. Maria João, apesar dos seus 57 anos, está já há algum tempo reformada da banca. O marido, com 59 anos, trabalha como gestor de negócios na Liberty Seguros.
À nossa chegada, Anya aninha-se no sofá junto da sua “segunda família” até que, aos poucos, começa a perder a timidez e vai mostrando o seu português quase perfeito. Há três anos que deixa a sua aldeia natal de Musiiky a 40 km da maldita e desativada central nuclear de Chernobyl, que explodiu em 1986, para gozar seis semanas de férias, longe da poluição, em Peniche.
“Cerca de 80% das crianças que vivem nas cidades e aldeias à volta de Chernobyl estão doentes. Sofrem de problemas cardíacos, digestivos e sanguíneos. E já nasceram muitos anos depois do desastre”, relata Hernâni. Trata-se, afinal, da pior catástrofe nuclear da História. Anya, por exemplo, tem uma anemia congénita.
O projeto Verão Azul, que tem trazido Anya até Peniche, é muito claro. “Esta não é só uma iniciativa de beneficência, para proporcionar seis semanas de férias a crianças com poucos recursos. É um período durante o qual queremos que estes jovens vivam em ambientes livres de radiações”, explica Fernando Pinho, coordenador nacional do Verão Azul. A ideia surgiu há quatro anos, após este responsável da Liberty Seguros ter conhecido um programa semelhante em Espanha, desafiando, depois, os seus colaboradores a replicá-lo em Portugal. Ao fim de um ano de burocracias e de viagens a Kiev, para cumprir os formalismos exigidos, foi criada a Associação Cultural e Recreativa e de Solidariedade, para gerir o programa no nosso país. Fernando Pinho alerta para que, pelo menos por agora, a associação só aceita candidaturas de famílias de acolhimento que trabalhem na seguradora.
“É preciso ter muito cuidado com os agregados que escolhemos”, justifica.
FÔLEGO VITAL
A adesão é voluntária e, tirando casos pontuais de dificuldades na adaptação das famílias a estas crianças, todas elas originárias da aldeia de Musiiky, a experiência tem-se repetido, ano após ano.
Este verão, encontram-se em Portugal 11 crianças, entre os 10 e os 15 anos. “Quando se aproxima a data de chegada da Anya, começamos a contar os dias que faltam”, diz, a sorrir, Maria João Leitão.
COMO É GRANDE O MAR
Durante as seis semanas, as famílias procuram envolver as crianças em diversas atividades. No caso de Anya, a menina já conhece e participa com naturalidade nas rotinas dos seus “avós portugueses”.
O casal sabe bem das dificuldades com que estes “meninos de Chernobyl” se deparam ao longo do ano. Hernâni foi um dos membros da associação que esteve no final de 2010 na região, a tratar da papelada para o programa deste ano, e viajou de Kiev até à aldeia natal de Anya. “Vi localidades desertas, onde senti o peso da morte”, relata o gestor da Liberty. “Em Musiiky, as terras continuam afetadas, mas as pessoas consomem tudo o que produzem. Nada dali pode ser vendido para fora está contaminado por radiações.” Aliás, um estudo revelou que, por cada mês e meio que passam fora da terra natal, estas crianças ganham um ano de vida.
Passados 25 anos sobre a explosão em Chernobyl, a norte da Ucrânia, continua a ser difícil quantificar o número de pessoas afetadas pela contaminação do ar e dos solos. Anya, que vive com a mãe e a irmã, de 6 anos o pai morreu de acidente de automóvel, conta que soube da catástrofe pela família e na escola. “Todos os anos, passam um vídeo na escola sobre o acidente. E, uma a duas vezes por ano, vai um médico à nossa escola medir os níveis de radiação. Eu e as minhas amigas temos valores baixos. A escola não tem nada”, diz a rapariga ucraniana, em frases curtas.
Este é um assunto de que poucos gostam de falar, sobretudo a estrangeiros, esclarece Hernâni Leitão.
Depressa a conversa toma outros rumos.
Anya está agora concentrada na vida em Portugal. Teve a sorte de ir parar a uma família que mora a dois passos do mar. Algo que lhe era estranho, mas que se transformou numa das suas melhores experiências. “Quando chegou pela primeira vez e viu o mar, não se cansava de exclamar que era grande. Muito grande. Até saía de casa só para ir cheirar e ver as ondas”, recorda Maria João. No ano passado, quando regressou, foi um dos primeiros locais a que quis ir. Este ano, a ansiedade era menor, mas a experiência mantém-se intensa: Anya já nada perfeitamente no mar agreste de Peniche. E disputa com destreza o jogo do peixinho de letras, conseguindo, por vezes, ser a mais rápida a completar palavras em português.
Criaram laços e, durante o ano, vão mantendo o contacto por telefone. Anya prepara-se agora para pintar, com a ajuda de Maria João, uma T-shirt para oferecer à mãe. Quando crescer, quer ser jurista ou economista. Dentro de dias, é altura de dizer poka (adeus em ucraniano) e esperar pelo próximo verão azul…
Reportagem originalmente publicada na edição de