“Nem Deus nem estado, no fim tudo queimado.” Rima e é verdade, sabemo-lo agora. Mas às sete da tarde desta sexta-feira ainda não estávamos cientes da quase literalidade deste cartaz improvisado, a ser erguido na manifestação de repúdio aos gastos públicos com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que começa a ganhar forma junto ao Salão Lisboa, a um canto da praça do Martim Moniz.
Este protesto que reuniu cerca de 200 pessoas foi convocado nas redes sociais pelo movimento Sem Papas na Língua, mas nenhum dos organizadores quis dar voz à iniciativa, pois consideram que ela é formada por um conjunto de coletivos. Em vez da palavra, dois papéis: um a apelar à justiça com presos, outro em forma de manifesto, esse que os fez sair de casa, no meio da confusão do trânsito da cidade, para mostrar como estão contra a organização deste evento religioso de carácter global.
A cem passos de distância
Do outro lado da estrada, a cem passos de distância, em plena praça, não se erguem cartazes, mas sim bandeiras. Está montado o Parque Cristonautas. E embora o primeiro festival de influencers católicos só esteja programado para as nove da noite, já muita gente se encontra sentada no chão, a olhar o ecrã gigante que ainda transmite a Via Sacra, a partir do Parque Eduardo VII, e a comer dos packs de refeições que levantam nos restaurantes aderentes.
Esta iniciativa é organizada pelo grupo A Igreja Escuta-te, nascido no contexto do Sínodo 2021-2024. Segundo informa o Vaticano, em nota oficial, “tem como objetivo celebrar e agradecer o grande trabalho missionário que, diariamente, é realizado pelos influencers e missionários digitais dos cinco continentes, transmitindo o Evangelho através das suas redes sociais”.
Mais de 4800 vítimas de abusos sexuais
O rap brasileiro soa sempre a protesto. Pelo menos, é isso que sentimos ao ouvir este tipo de música a sair das colunas à volta das quais se reúnem pessoas embrulhadas em bandeiras da comunidade LGBT, trans e não-binária (e também se avista uma do anarquismo). Há um leve aroma a canábis a inebriar. E muita cerveja a rodar por entre os manifestantes.
O número de vítimas de abusos sexuais em Portugal paira no ar, em vários dos cartazes com aspeto visivelmente homemade – de nada serve apagar os outdoor das ruas, porque o número continua a ser o mesmo e a ser gritado por aí (mais de 4800 crianças). Mas também se evoca o drama dos refugiados, misturado com a riqueza ostensiva da Igreja.
O chapéu de papel a imitar o de um bispo que Cristiana Bejinha, 22 anos, tem na cabeça, foi concebido por ela, especialmente para a manifestação. Primeiro, a artista digital esconde-se na sua timidez, mas rapidamente explica na perfeição porque é que ela, e os dois amigos, aqui estão, depois de terem lido a convocatória no Instagram: “Não tenho nada contra a fé ou contra a música, mas sim contra o facto de serem os contribuintes a pagarem por este festival.” É por isso que escreveu, no cartão que apoia no chão, com a ajuda de um pau: “Tratem os portugueses como se estivesse cá o Papa todo o ano.”
“O Papa engravidou”
Enquanto atravessamos de novo a rua, deixamos para trás uma voz brasileira a contar uma história, ao microfone: “O Papa engravidou.” Mas ninguém a ouve entre os seguranças – ou “staff” como indicam as t-shirts – que agora limitam com baias a zona VIP no Parque Cristonauta. À volta da praça não há mais privilégios, mas encontramos uma enorme tenda que alberga o Jesus Film Project, que a peregrina americana Gayle Harris se esforça por apresentar a quem se atreve a entrar, mas é nitidamente prejudicada pelo nível de decibéis que saem do palco e se propagam num raio alargado de metros.
Também existem três pontos instagramáveis, ou se quiséssemos ser mais generalistas em relação às redes sociais escreveríamos três pontos ideais para tirar fotografias para irem parar diretinhas à internet. Num deles, há um fundo em néon, noutro simboliza-se o céu celestial, em tons de azul com nuvens fofas, e um terceiro que é uma caixa de vidro transparente, em que os peregrinos podem lá entrar e fazer poses.
Não há comes e bebes. O que faz com que João Oliveira, gerente da hamburgueria XXL, em Loures, esteja nas traseiras de uma carrinha a distribuir sacos de papel com um hambúrguer no pão, uma peça de fruta e água. “Encontrava-me lá em baixo em Santa Apolónia, mas recebi uma comunicação a dizer que aqui não havia nenhum ponto de entrega e que o povo estava sem comida. Desde as oito da noite que estacionei aqui nesta lateral, acho que já distribuí para cima de mil kits.” Nada que o assuste – no Estoril, noutro dia, foram 16 mil.
Beijos são fogo que arde e se veem
A roda apertou do lado do protesto, mas não há interferências. Os peregrinos passam ao largo, ou estacionam a poucos metros de distância, com as suas bandeiras aos ombros e apenas olham de soslaio para o protesto, atraídos pela música que agora resvala para o transe.
As performances prometidas ao microfone “para incomodar o mais possível”, depois de lerem o manifesto que os trouxe até aqui, tornam-se mais organizadas e de mensagem mais forte. “Abaixo o Papa. Fora a Concordata [tratado entre a Santa Sé e o Estado]”; “Alguém vos enganou, a virgem fornicou”.
Marta Moreira, 29 anos, vibra a cada palavra de ordem gritada ao megafone. E põe-se atenta, assim que entram em cena, no centro do círculo formado pelos protestantes, alguns dos artistas que encenam pequenos teatros. Num deles, queima-se a cruz numa fogueira – e eis que chegámos à literalidade do cartaz descrito no início deste texto – e dança-se à volta dela. Vários pares aproximam-se e beijam-se intensamente, enquanto a multidão que ainda resiste grita e assobia em forma de apoio.
Cristo, o verdadeiro influencer
Deixamos o fogo e vamos atrás do fumo que agora sai do palco do Parque Cristonauta. Por lá já passaram representantes de vários países, sempre com a mensagem da influência no discurso. A saber: entre outros, Hakuna Group Music (Espanha), o padre Rob Galea, da Austrália, que conta como encontrou o seu caminho (“um dia vi Jesus com um microfone apontado em direção ao meu coração”), Pitter Di Laura, missionário e cantor da Comunidade Canção Nova, Brasil, Pablo Martínez, da Argentina, e os Missionários Shalom, acompanhados pelo monsenhor Lucio Adrián Ruiz, secretário do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé. O momento alto dos discursos dá-se com a entrada do cardeal Oscar Marabiaga, recebido em ovação pelo público que enche a praça. “Que alegria esta reunião. O campo digital não é um meio, é um território e tem uma meta, uma missão. Queremos que essa missão não se detenha.”
Pede depois para acenderem a lanterna do telemóvel como “símbolo da nossa presença no mundo digital”. De seguida, o cardeal lê a bênção a partir do ecrã de tablet que lhe é estendido por um dos membros do staff e iluminado pelos flashes de todos os que estão no palco – e fora dele. “Lembremos Maria, a mãe do céu, que foi a primeira influencer!”
Paula Vega, 28 anos, que se intitula missionária digital, e ostenta uns poderosos 19 mil seguidores no Instagram, entrevista agora o ator Jonathan Roumie que faz de Jesus Cristo na série The Chosen, perante a histeria do público, que não para de o filmar enquanto ele faz um mini discurso motivacional: “Cristo, que vive em nós, é o verdadeiro influencer!”
No ecrã, garantem que “la Iglesia te escucha” [a igreja escuta-te] e mostra-se o hashtag que devem usar ao publicar fotos deste concerto: #influencerswyp. No meio do público, está o padre Maik Dias, de Minas Gerais, no Brasil. Há miúdos a quererem tirar fotos com ele, mas o sacerdote desvaloriza a fama, acentuando porém o poder dos influenciadores católicos, realidade que nota estar a crescer desmesuradamente, de tal forma que a comunicação do Vaticano decidiu organizar este festival. “Tenho 12 mil seguidores no Instagram, mas não faço nada para isso. É espontâneo.”
A festa há de acabar com a desmobilização dos peregrinos. E também com a desmobilização dos protestantes, quando a fogueira se extingiu. Todos, aos poucos, foram entupindo os acessos ao Martim Moniz, o que tornou a saída demorada, por entre muitas carrinhas policiais estacionadas a torto e a direito (e até em cima das ciclovias). Afinal, em noite de festivais (também decorria o Halleluya, na Alameda Dom Afonso Henriques) o recolher obrigatório tornou-se numa miragem. E nem um milagre teria sido capaz de pôr os jovens peregrinos a dormir às onze da noite – a essa hora ainda pulavam eles de alegria e posavam com os seus influencers favoritos.