Dentro de um mês, a administração de Macau passará para a China. A bandeira portuguesa vai ser arriada no
Extremo-Oriente. Em primeira mão para a VISÃO, Rocha Vieira faz o balanço de oito anos de mandato como
governador. Um dossier que incluí reflexões sobre o relacionamento nem sempre fácil com Pequim e novidades acerca das cerimónias de 19 e 20 de Dezembro.
A 19 de Dezembro, ele fechará, atrás de si, as portas do Palácio da Praia Grande, símbolo da administração portuguesa em Macau. Rocha Vieira, general, 59 anos, partirá de avião, deixando o último território do antigo império português entregue de volta ao legítimo proprietário — a imensa China. O balanço, as revelações e as esperanças do nosso último «vice-rei» de além-mar.
Macau é uma terra que provoca nostalgias, como dizia Chris Patten, o ex-governador de Hong Kong. A 30 dias da partida já tem a nostalgia de Macau?
Julgo que terei. Macau diz-me muito, ninguém pode ser indiferente ao fascínio de Macau depois de ter estado cá…
E já na década de 70, não só na de 90…
Exactamente. Estive também entre 1973 e 1975. 0 sentimento dominante neste momento — sou sincero ao dizê-lo — é de satisfação, porque acho que Portugal cumpriu os seus objectivos, administrou o território numa perspectiva de futuro, voltado para os interesses da população. Uma linha de continuidade de séculos de permanência portuguesa. Aquilo que fizemos, foi pensado numa perspectiva de longo prazo para que seja possível que, mesmo depois da saída da administração, os portugueses que aqui continuarem e os interesses portugueses aqui estabelecidos tenham condições para permanecer por direito próprio. E sempre com a ideia de que a idiossincrasia de Macau se mantenha a longo prazo.
Sei que é difícil antecipar sentimentos. Mas já pensou, com certeza, no que sentirá quando fechar as portas do Palácio da Praia Grande e deste Palácio de Santa Sancha…
Não sei bem como vou reagir nesse momento porque há várias perspectivas a ter em conta. Eu explico.
Uma é a do governador, das suas responsabilidades, do que fez, a meditação sobre se fez tudo — e, em política, nunca podemos dizer que fizemos tudo, temos sempre a ambição de querer fazer mais, não é verdade? Já estamos muito perto desse momento. Julgo que a Administração portuguesa pode partir satisfeita, com orgulho e de cabeça levantada. É este o sentimento dominante.
A outra perspectiva é um sentimento mais próprio, mais pessoal que tem a ver com as pessoas, com as coisas, com os colaboradores… Aqueles que, aqui nesta casa onde estamos a conversar, viveram connosco, são quase parte da família, depois de decorridos oito anos. Vou ser invadido, estou convencido, por um sentimento de emoção, qualquer coisa que nos tocará profundamente, a mim, à minha mulher, aos meus filhos, e a eles, que conviveram connosco. Também estou muito ligado aqueles que trabalharam na Administração, nomeadamente os que colaboraram de forma mais directa comigo e partilharam momentos de dúvida, de incerteza, de dificuldade.
Sou muito sensível aos aspectos pessoais e humanos mas, normalmente, procuro não os conflituar com aquilo que é suposto ser a expresão pública, o comportamento do homem público. Espero poder, nesse dia, conciliar as duas coisas.
E a cidade de Macau propriamente dita, far-lhe-á falta?
Macau tem um fascínio muito próprio: o ar que se respira, os cheiros, os barulhos, os templos, as Igrejas, o comportamento das pessoas, os recantos e os parques onde se pratica o tai-chi. Enfim, a cozinha chinesa, a sopa de fitas, o passear ao fim da tarde por aquelas vielas pequeninas. Macau oferece espaços verdes arejados e amplos, numa cidade tão pequena. Um ambiente, que eu julgo único, em que as pessoas não falam a mesma língua, não têm as mesmas origens, não têm a mesma cultura, mas entendem-se, vivem, convivem e trabalham em conjunto. A cidade movimenta-se, cresce e renova-se todos os dias. Desde as quatro da manhã, as pessoas começam a sair, para fazer a sua ginástica, para passear. A cidade quase que não pára durante toda a noite. Mas vai mudando durante o próprio dia, de dia para dia, de estação para estação. Macau, na sua pequenez, é riquíssima na densidade de contrastes.
Conseguia viver a vida da cidade, passear, apesar da grande carga dos programas oficiais?
Não. Essa é uma lacuna que eu levo. Há coisas que eu hoje sei, percebo e sinto sobretudo por ter estado cá dois anos entre 73/75. Tive a felicidade de ter estado aqui há vinte e tal anos em duas funções diferentes, primeiro como chefe do Estado-Maior e depois como secretário adjunto e aquilo que aprendi da cidade, dos chineses, da convivência tem-me sido muitíssimo útil como governador. As funções que exerço são muito absorventes. Não se pode estar em dois sítios ao mesmo tempo… Macau é uma belíssima recordação.
O adeus ao império
Sente-se, realmente, o «último governador do Império português»?
Não. Sabe, eu, talvez por uma maneira de ser muito própria, distingo sempre a pessoa das funções que exerço. Procuro desempenhá-las com grande sentido de entrega, de dever e de espírito de missão. É isso que me orienta muito, de forma a que a parte pessoal não seja influenciada pelos cargos que desempenho. Não faço nenhum julgamento especial desse tipo. Não me movo por ser isto ou aquilo. Considero, tão-somente, que, por um acaso das circunstâncias, desempenhei estas funções num período importante da História de Macau e, naturalmente, da História de Portugal.
Nas suas respostas está sempre subjacente uma ideia de serviço, que é uma noção muito militar. Estará condicionado pela sua formação, desde os tempos do Colégio Militar, não é?…
Julgo que sim, que é, com certeza. A formação acontece quando nós crescemos, quando a família, sobretudo os pais, nos ensinam. Somos aquilo que aprende- mos e vivemos com os camaradas e os amigos que temos. O percurso que trilhamos é, obviamente, muito importante na nossa vida. Mas não é só próprio dos militares.
O que o preocupa mais neste mês que ainda falta até ao descer da bandeira portuguesa nos mastros de Macau?
Até à cerimónia de transferência, deve ser garantido que a parte final da administração seja coerente com todo o percurso. A própria cerimónia de transferência tem de estar de acordo com esse percurso, a maneira de estar, a assumpção de responsabilidades que Portugal teve em Macau. Não é algo isolado. Preocupa-me que não seja desvirtuado esse momento, pelo acaso ou por circunstâncias fortuitas. Quero que a percepção última – é essa que as pessoas guardam – esteja de acordo com a permanência de séculos de que os portugueses se podem orgulhar, como já disse.
O que vai ficar de Portugal?
E agora a pergunta incontornável: o que administração seja coerente com todo o ficará de Portugal em Macau. O que era importante que tivesse ficado e não ficou?
Julgo que vai ficar muita coisa. Embora não goste de fazer comparações com Hong Kong, estou seguro de que as características de Macau vão permanecer muito mais tempo do que as de Hong Kong. Vão continuar num prazo muito mais longo. Em Hong Kong, as suas características baseiam-se na economia e num certo materialismo. Macau tem a ver com a Cultura, com a História, com uma maneira de ser e uma capacidade que, ao longo dos séculos, permitiu que culturas diferentes se entendessem. Enfim, com capacidade de respeito mútuo.
A identidade ligada a valores culturais, de raízes humanistas, que se espelham também nas leis, nos processos da Administração, no sistema judicial, tudo isso ficará por muito tempo.
Mesmo pessoas que vivem hoje em Macau, e porventura não percebem quão importante isso é – estou certo que, mais tarde, tomarão consciência de querer ver tudo isso preservado. São laços fortes e consistentes. A Economia, essa, como sabe, é atreita a ser afectada por conjunturas e tudo se apaga, então, em pouco tempo, não estabelece verdadeiramente uma diferença.
Muita coisa vai permanecer na área política e legislativa, no património. É um ar diferente que se respira, uma cidade que lembrará outras origens. Aqui existe uma expressão de que hoje talvez não nos demos suficientemente conta de como vai ser importante. Falo da toponímia das ruas, das calçadas, dos edifícios, da gastronomia, do relacionamento das pessoas, dos monumentos, dos museus. Tanta e tanta coisa que permanecerá num prazo muito longo e lembrará que Portugal aqui esteve ao longo dos séculos. Estabeleceu-se uma matriz de princípios e de valores de raiz ocidental, que resulta muito de como os portugueses souberam entender outros povos e outras culturas.
Pouco enraízadas? É que algumas dessas coisas de que falou são de implantação e desenvolvimento muito recente, várias delas dos últimos oito anos em que foi governador.
Não estou completamente de acordo: durante o processo de transição, Portugal fez muito, com seriedade e numa perspectiva de futuro. Mas não sou daqueles que defendem que na transição se realizou tudo o que não se fez em 400 anos. Em cada momento faz-se aquilo que é possível. Respeito muito o que foi conseguido ao longo de gerações e gerações de portugueses.
Repare, não é um prodígio que um pequeno país a tantos quilómetros de distância tivesse sido capaz de administrar, muitas vezes contra ventos e marés adversas, este território? Isso não aconteceu por acaso. Nos últimos anos teremos colmatado algumas lacunas.
O que é que vai fazer depois de 20 de Dezembro? Como aplicará o capital de experiência que ganhou na sua carreira?
Olhe, tenho estado absorvido, no pensamento e no trabalho, e com todas as minhas energias, voltado para o dia 20 de Dezembro. Consciencializei que só no dia 21 de Dezembro pararei para pensar. Tem sido essa a minha postura intelectual. A responsabilidade que tenho entre mãos já chega para me absorver. Depois se verá.
VAs poupanças que fez do seu ordenado como governador de Macau fizeram de si um homem rico?
Sempre que fui escolhido para um cargo ou função, a minha decisão nunca esteve relacionada com o vencimento que iria auferir.
Quanto aos vencimentos de Macau, são vencimentos razoáveis…
Só razoáveis?! A ideia existente em Portugal em relação aos ordenados de Macau…
Em Macau ganha-se bem, mas não se ganha para ficar rico. As pessoas vivem bem, têm a oportunidade de dispor de coisas de que não disporiam se não tivessem vindo para cá. Enfim, férias para os filhos, um certo poder de compra. Mas é isto – e não mais do que isto.
A mim, Macau permitiu-me, acima de tudo, ter uma visão diferente do mundo, da vida, do encontro com as pessoas e com outras culturas, ganhar perspectivas diferentes. Foi isso o mais importante.
Edmundo Ho e a autonomia
A ordem natural das coisas, a dinâmica da China como grande potência não levará ao esquecimento dos valores da identidade, da diferença e da autonomia que o sr. governador tem defendido para o futuro de Macau?
Portugal e a China assinaram a Declaração Conjunta de 1987 pela qual se comprometem a manter basicamente inalterados o edifício judicial e administrativo, os direitos, as liberdades e a maneira de viver dos habitantes de Macau. Compete a Portugal, durante o período de transição, tudo fazer para que este projecto se possa prolongar no futuro. Julgo, no final da transição, que podemos afirmar que cumprimos a nossa parte, que actuámos com seriedade, pensando nos interesses de Macau a longo prazo. Em alguns casos, teremos mesmo excedido as expectativas.
Assumimos, pois, as nossas responsabilidades e julgo que a China cumprirá também as suas.
Por outro lado, é bom para a China que Macau mantenha a sua identidade e a sua singularidade. É bom que Macau seja algo de diferente. E bom que a China possa aproveitar as oportunidades que Macau lhe oferece, como mais-valia, bem como a facilidade que Macau tem de relacionamento com outras áreas, com outras culturas, com outras civilizações, com outras economias, especialmente com a União Europeia e os países de Língua Portuguesa.
Portanto, este aspecto de que Macau é portador enriquecerá a própria China a quem interessará que este estatuto de Macau se mantenha a longo prazo.
Nos últimos anos, uma das suas preocupações foi «pôr Macau no mapa». Estou a pensar, por exemplo, na sua estratégia de relacionamento com a União Europeia. Acha, portanto, que os novos dirigentes seguirão esse caminho?
É indispensável que essa política continue no futuro porque ela corresponde à vocação fundamental de Macau, de ser entreposto e plataforma de ligação, uma ponte entre o Sul da China e outras áreas e regiões; por outro lado é importante para Macau se manter com utilidade no segundo sistema.
Edmundo Ho é um homem capaz de se bater pela autonomia de Macau ou cederá à tentação dos consensos?
O dr. Edmundo Ho conhece muito bem Macau, é um homem inteligente, que possui uma grande experiência política e que percebe a importância geopolítica de Macau. Ele pode ser um bom conselheiro para as autoridades da China. Tudo fará para que Macau, no futuro, corresponda àquilo que tem sido o seu passado de muitos anos. O que, aliás, não será fácil, porque a realidade de Macau é difícil e complexa e a sua importância política é maior do que a dimensão geográfica ou demográfica.
Tentou estabelecer meios e fórmulas para garantir um bloco financeiro que aguentasse o embate dos primeiros anos. É sólido, esse bloco?
Também aí respondemos às expectativas que havia em relação ao futuro. Macau desenvolveu um programa vastíssimo de infra-estruturas (feitas num curto espaço de tempo, pois normalmente levariam uma ou duas gerações a realizar).
Não só infraestruturas físicas: também as que dizem respeito às instituições, aos recursos humanos, a tudo que habilite Macau a ser governado por gente local, a ser uma cidade moderna com um papel útil e de plataforma na região. Tudo isto está feito – e foi pago, com recursos próprios! Macau não tem dívida pública, o que será quase um caso único: por tudo aquilo que foi feito e pelos custos inerentes ao próprio processo de transição e de mudança de administração.
Além disso, ficam reservas apreciáveis; deixamos um fundo de terras que só por si corresponde a pouco mais de um ano do orçamento do território; deixamos também reservas fiscais, fundos de Seguranca Social e de Pensões que no início do processo de transição não existiam. A reserva cambial de Macau corresponde a mais de 100% das suas responsabilidades monetárias. A situação não só é sólida financeiramente mas também do ponto de vista dos instrumentos de que dispõe para prover à gestão da vocação de Macau como unidade com autonomia e bem como ao seu desenvolvimento.
Portanto, devo inferir do que me diz que está convicto de que Macau tem a massa crítica necessária e suficiente para não ser «engolido» pelas Zonas Económicas envolventes?
Não tenho a mínima dúvida. As Zonas Económicas envolventes têm procurado copiar Macau (e não há mal nenhum nisso); só que algumas cópias não são possíveis sem a manutenção dos princípios e valores característicos do segundo sistema. (Nota: referência à fórmula da China de «Um país, dois sistemas».)
É por isso que eu tenho defendido muito que não há economia de mercado sem o primado da Lei, sem a separação de poderes, sem o exercício de direitos, liberdades e garantias. Tudo isso é muito importante e Macau possui uma identidade própria e um sentido de História, de Cultura, de pertença; a sua população tem hoje a noção de que é essa diferença que justifica um estatuto próprio em relação às outras Zonas Económicas. Os ventos do futuro aproximarão as ZE daquilo que é a Região Administrativa Especial. A RAE será sempre um ponto avançado neste processo.
Se fôssemos falar de todas as infra-estruturas que foram criadas nos últimos anos, es- taríamos aqui o resto da manhã. Posso pedir-lhe para escolher duas obras que considere DR mais importantes?
É difícil. Tínhamos vários objectivos em vista. Por um lado, um programa de acessibilidades que permitisse a Ma- cau ganhar maior autonomia e tivesse instrumentos para poder desempenhar a tal vocação de plataforma.
Outro objectivo situava-se na área do ambiente e da qualidade de vida. Queríamos tornar Macau uma cidade agradável, de turismo, de encontro, um espaço onde se goste de estar, viver e visitar. Isso tem a ver com os parques, as ETARs, os espaços de desporto e lazer, com mui- tas outras coisas que foram feitas.
Mas, naturalmente, a primeira obra em que se pensa é o Aeroporto, como peça estratégica deste conceito. Mas porque Macau é uma cidade de cultura, com outro tipo de raízes, não queria deixar de mencionar o Centro Cultural e o Museu de Macau, que está situado na Fortaleza do Monte. Este último foi uma ideia que desde o princípio acalentei que fosse possível realizar. Outro aspecto foi a consciência que tomei logo no início, porque tinha cá estado antes, de que a cidade não tinha uma sala de visitas. Apercebime que essa sala existia, se pudesse ter um arranjo urbanístico diferente, como veio a acontecer: Refiro-me à Praça do Leal Senado.
O futuro da Escola Portuguesa
Quanto à Escola Portuguesa julgo saber que teria gostado de outra solução… Vai ficar onde era a Escola Comercial, mas talvez o Liceu fosse preferível
A posição do Governo de Macau, nos domínios em que as decisões devem ser tomadas pelos órgãos de soberania em Lisboa, é que tal aconteça com conhecimento de causa, especialmente, quando se trate de questões que tenham repercussão para lá de 1999.
A Escola Portuguesa deve ser vista inserida numa estratégia de Portugal para esta zona. Portanto, depende da estratégia seguida. Não digo que estou a favor de uma ou outra solução, o que fizemos foi alertar para objectivos e estratégias e maneiras as viabilizar.
A nossa posição, depois, é a de apoiar as decisões que são tomadas. A Escola Portuguesa é, pois, uma realidade, vai continuar, devemos apoiá-la, será útil para a população portuguesa e naturalmente que irá, no futuro, evoluir para uma escola que não seja só voltada para os portugueses mas que tenha um âmbito mais amplo, e que seja uma escola útil para a população de Macau, dando-lhes mais oportunidades em termos de acesso e de interface com outras escolas, nomeadamente no espaço da UE.
O preço relativamente elevado das propinas não será um travão ao desenvolvimento da aprendizagem do português?
Não acho que as propinas sejam tão elevadas como diz. A diferença está em que a Escola Portuguesa antes era oficial e, portanto, não se pagava nada: naturalmente que, em termos relativos, a diferença agora é muito grande.
A direcção da Escola tem pessoas muito competentes, muito dedicadas e muito sensíveis a todos estes problemas, que são elas próprias uma mais-valia que a Escola tem. Estou certo de que em cada momento saberão encontrar o equilíbrio necessário.
A tão falada questão das tropas da RPC antes da cerimónia de transferência. A parte portuguesa evitou que houvesse o destacamento avançado como em Hong Kong. Acha equilibrada a solução que está à vista ou ainda há muitos factores a decidir?
Neste momento em que falamos há algumas coisas em discussão. Portanto, abster-me-ia de entrar muito em pomenores.
Nunca esteve em causa a colocação de tropas chinesas no território depois da transferência. Só que a Declaração Conjunta não falava nisso e, portanto, a posição portuguesa foi sempre a de que um esclarecimento nos era devido a partir do momento em que a China decidiu colocar tropas no território.
Em segundo lugar, a situação de Macau e de Hong Kong não é comparável: às zero horas de dia 20 não há transferência de património do Estado português e da Defesa para o Estado chinês e para o Ministério da Defesa chinês. Tudo o que está no território pertence à Regras Administrativa Especial.
Temos tido, por isso, uma posição coe rente e uma acção que julgo muito correcta. Não pode, por outro lado, ser nem parecer que a RPC antecipe o exercício da soberania antes do momento em que a irá assumir. Não poderá haver, obviamente, destacamentos militares avançados. Mas, neste campo, como em todos os outros, estamos abertos a uma cooperação que deverá obedecer rigorosamente esta realidade e a estes princípios.
Edmundo Ho é, em sua opinião, na perspectiva da defesa dos interesses portugueses, a melhor escolha para Chefe do Executivo?
Eu não conheço melhor.
Conheceu o pai dele, Ho Yin?
Conheci, quando estive aqui em serviço, de 1973 a 1975. Ho Yin era o representante da comunidade chinesa. Nessa altura não havia relações diplomáticas entre Portugal e a RPC, não existia nenhuma representação oficiosa como a que haveria de ser, mais tarde, a Xinhua (embora, de algum modo, a Nam Kwong tivesse uma ligação ao regime, por detrás da sua actividade comercial).
Formalmente, as relações processavam-se através do chefe da Comunidade Chinesa, que era, ao mesmo tempo, o presidente da Associação Comercial de Macau, o sr. Ho Yin. Era uma personalidade muito respeitada, um homem com quem se simpatizava, muito inteligente, de uma grande habilidade, um formador de consensos, um transmissor e uma ponte de ligação. Todos aqueles que conviveram com ele (e eu convivi com ele em dois contextos, primeiro como Chefe do Estado Maior do Comando Militar e, depois, como secretário adjunto das Obras Públicas) guardam uma recordação muito grata, muito simpática, muito humana também, sendo certo que não me esqueço do papel que ele desempenhou em situações anteriores à minha própria estadia aqui em Macau, onde teve um papel muito importante para que algumas dificuldades e situações complexas pudessem ser resolvidas.
0 1, 2, 3..: Os chineses é que não estavam certos
Está a a falar do processo conhecido por 1, 2, 3, claro…
Sim, desse processo, o qual deixou marcas muito profundas em Macau. Quando aqui cheguei lembro-me de que a sociedade de Macau vivia com um trauma. Mas nunca achei que nós devêssemos ter qualquer complexo em relação ao 1, 2, 3. Acho que quem se deve sentir numa posição incómoda é a RPC, porque aquilo que aconteceu não dignificou a parte chinesa. Pelo contrário. Verifico que são hoje as próprias autoridades chinesas que, falando com uma grande abertura sobre estas questões, dizem que a Revolução Cultural foi um grande mal que aconteceu à China, aos próprios chineses, à geração que foi sacrificada; o ataque aos monumentos, à Cultura e à História que tentaram fosse apagada, destruída, violentada, as próprias pessoas, as suas convicções. Para o 1, 2, 3, até porque cheguei depois, olho sempre com grande tranquilidade. Se alguém não estava certo foi aqueles que o fizeram.
Entre os dirigentes chineses importantes que conheceu houve algum com quem manteve uma relação que se possa considerar pessoal?
Tenho sobretudo mantido uma boa relação institucional com os dirigentes que tenho encontrado ao longo do tempo na RPC. Relações baseadas num respeito mútuo e também numa assumpção muito firme do que devem ser os interesses de cada parte. Algo que aprendi no convívio com os chineses é que eles não percebem que uma pessoa não de- fenda intransigentemente os seus interesses e que não o faça com um sentido de diálogo. Os chineses, assim, não têm tido surpresas comigo e eu também não tenho tido surpresas com eles.
Claro que às vezes não percebemos porque é que cada um assume determinados pontos de vista. Nesse caso, é importante a maneira de cada um se explicar e é importante que essa explicação seja feita no modo e no local próprios.
Em Macau, tenho bons amigos felizmente, muitos deles vêm já do tempo em que aqui estive da primeira vez. Tenho pessoas que eu sei que, depois de sair de cá, continuarão a ser minhas amigas e com quem manterei um contacto, seja de que modo for.
Relativamente ao dr. Edmundo Ho, como sabe, nós temos tido uma relação, nomeadamente na preparação da Região DR Administrativa Especial de Macau, que tem sido exemplar. Mas acontece que sempre tive uma relação pessoal muito boa com o dr.Edmundo Ho, desde que aqui cheguei. Talvez também por via de ter conhecido o pai dele, mas sobretudo pelo tipo de personalidade que é. Almoçamos e jantamos, jogamos golf, já temos ido à China juntos…
Introduziu-o em certos meios da União Europeia, do Brasil…
Exactamente, ele acompanhou-me em mujas das deslocações que fiz.
Não ia agora focar nomes, mas as amizades que criei e outro aspecto muito simpático que eu guardo de Macau, onde passei, afinal de contas, dez anos da minha vida. No campo pessoal levo muito boas recordações.
Patten e Stanley Ho
0 ex-governador de Hong Kong, Chris Patten, que agora vem aí, à cerimónia de transição – ficaram amigos?
Sim. Ficámos amigos em termos pessoais e ficámos com um sentido de conivência no bom sentido. Como ele costumava dizer, e eu também, há alguns assuntos que ninguém mais compreenderia, de que ninguém mais seria capaz de falar da mesma maneira que eu e ele. Embora os processos sejam diferentes, havia questões que se punham no processo de transição de Hong Kong (no relacionamento com a China, na peculiaridade das matérias e na maneira de as sentir, de preparar e resolver) que só quem exerce estas responsabilidades era capaz de compreender. E, para lá de uma relação que se estabeleceu, de empatia pessoal, muito agradável (o que também aconteceu entre as nossas mulheres) a verdade é que nós tínhamos um entendimento que nos permitia falar sem ter quase que nos explicar. Isso foi muito útil para ambos, tivemos um contacto muito bom durante todo o tempo em que ele esteve aqui como governador. Depois, quando o voltei a encontrar, senti que o facto de ele já não ser governador não tinha alterado nada os laços de simpatia, de compreensão mútua.
Macau é uma cidade segura? Teme que, neste mês, depois da leitura das sentenças dos julgamentos das seitas, possam ocorrer actos de violência? Vão ser tomadas medidas especiais?
Macau é uma cidade segura, tanto quanto se pode dizer hoje no mundo, porque todas as cidades vivem hoje com ameaças. Mas Macau não só é uma cidade segura como agradável. É uma surpesa para as pessoas que nos visitam face ao que às vezes lêem na Imprensa. Claro que em qualquer momento podem acontecer problemas de segurança…
Como é que define o dr. Stanley Ho?
O dr. Stanley Ho é um homem de negócios, habilísimo, um homem lutador, que procura espaços de oportunidade em toda a parte, e os desenvolve e aproveita. Tem sido um homem de sucesso nesta área. Sabe respeitar os espaços, os campos e os limites que são próprios. Tenho tido uma relação exemplar com o dr. Stanley Ho. Ele nunca fez – e sabe que não teria sucesso – nenhuma pressão política utilizando o poder económico de que dispõe. A STDM e as outras empresas que ele detém são importantes para o desenvolvimento da economia do território. Como concessionário do jogo tem um estatuto que lhe é próprio. Por outro lado, ele precisa também que as coisas corram bem em termos do Governo de Macau, da relação com a Administração, e tem procurado que assim seja sempre. Os nossos campos têm estado sempre delimitados por uma clareza e uma transparência muito grandes. Também nesse campo o dr. Stanley Ho, em relação à Administração do Território tem tido uma conduta muito correcta. Evidentemente que os interesses próprios de alguns negócios e concessões em algumas áreas nem sempre estão de acordo com os interesses primários da responsabilidade da Administração. Com efeito, quando se trata do bem-estar ou da segurança do território, naturalmente que, face aos lucros, o dr. Stanley Ho dará maior importância a estes, e o Governo de Macau maior prioridade às responsabilidades de quem exerce funções públicas.