Como que de repente, temos uma boa parte do Planeta numa alameda em Oeiras. Na meia centena de painéis que agora povoam os seus seis mil metros de comprimento, ladeados por pequenos jardins e poemas, há “pequenos instantes de vida ou de morte” que nos trazem “um retrato verdadeiro do mundo em que vivemos”, lembrou o diretor da VISÃO, Rui Tavares Guedes, ao inaugurar a 67.ª edição da World Press Photo.
“Nestes painéis, temos imagens que falam. Fotos que denunciam, que contam histórias, que nos revelam factos desconhecidos e que nos acrescentam perspetivas diferentes. São, acima de tudo, imagens que comunicam connosco e nos fazem pensar, exatamente como o jornalismo devia ser todos os dias e a toda a hora”, acredita o mesmo jornalista.
E claro que não foi nem de repente nem muito menos por geração espontânea que estas grandes imagens de fotojornalismo e fotografia documental produzidas no último ano apareceram na Alameda do Parque dos Poetas.
Para começar, cada uma das 129 fotografias vencedoras representa um dos tais pequenos instantes que têm por detrás o trabalho de repórteres. Um trabalho “intenso e aqui invisível”, sublinhou Rui Tavares Guedes.
“A sua coragem para se aproximarem o mais possível da ação, o clima de confiança que conseguiram criar com os desconhecidos que fotografam, a longa preparação para escolher o melhor ângulo, os dias, semanas por vezes meses, de investigação a perseguir a história que procuram. As muitas horas perdidas em busca do tal instante… É assim o melhor jornalismo.”
O World Press Photo foi fundado em 1955, quando um grupo de fotógrafos holandeses organizou um concurso para expor o seu trabalho a um público internacional. Tem quase 70 anos de história e de histórias – todas verdadeiras.
Este ano, o júri dos prémios analisou mais de 61 mil trabalhos de quase 4 mil fotojornalistas de 130 países. “Desde conflitos devastadores e convulsões políticas até à crise climática e à passagem segura de migrantes, os trabalhos premiados documentam algumas das questões mais prementes que o mundo enfrenta atualmente”, lê-se no site do World Press Photo.
“O desespero, a fome, a guerra e a perda, mas também a perseverança, a coragem, o amor, a família, os sonhos e borboletas.” Foi assim que Joumana El Zein Khoury, diretora executiva do concurso, descreveu as fotografias concorrentes de 2024, quando foram anunciados os vencedores, em abril.
“Estas obras finais selecionadas são uma tapeçaria do nosso mundo hoje, centrada em imagens que acreditamos terem sido feitas com respeito e integridade, que podem falar universalmente e ressoar muito além das suas origens”, reforçou, na mesma ocasião, a presidente do júri global, Fiona Shields, chefe de fotografia do The Guardian.
Os 24 vencedores, as seis menções honrosas e as duas menções especiais menções especiais relacionadas com a guerra Israel-Hamas foram selecionados por um júri independente. “Ao reunir histórias tão importantes, a seleção incentiva uma maior compreensão e sensibilização para os acontecimentos atuais, bem como serve para recordar a necessidade de liberdade de imprensa em todos os cantos do mundo.”
A liberdade de imprensa “não pode ser considerada um dado adquirido”, lembra-se num dos painéis desta exposição que estará aberta ao público até 29 de dezembro. A organização Repórteres Sem Fronteiras estima que quase metade da população mundial não tem acesso a notícias e informações divulgadas livremente. E, pelas suas contas, mais de 1 600 jornalistas foram mortos nos últimos 20 anos, numa média de 80 por ano.
Sem a liberdade de imprensa, sem jornalistas, sem fotojornalistas, “nós, que vivemos no conforto e longe de guerras”, não teríamos a hipótese de ver uma exposição como esta, lembrou Francisco Rocha Gonçalves, vice-presidente da Câmara de Oeiras, ao inaugurar a exposição, em representação do presidente, Isaltino Morais.
“São fotografias que retratam o ser humano no seu melhor, nos seus piores momentos”, fez notar o autarca. “Como dizia Martin Luther King, ‘Quando está tudo escuro é que se pode ver as estrelas’. E nós [na Câmara de Oeiras] vamos estar sempre agarrados à verdade e à esperança de um mundo melhor.”
Numa visita rápida, entre duas reuniões de Câmara, Isaltino Morais confessou que estava “com curiosidade de ver as fotografias mais representativas daquilo que se passa pelo mundo fora”. A começar pela imagem vencedora do ano, da autoria de Mohammed Salem, que concorreu na categoria “Projetos Individuais” com a obra “Uma mulher palestiniana abraça o corpo da sua sobrinha”.
A FOTOGRAFIA DO ANO
A 17 de outubro de 2023, escassos dias depois de a sua própria mulher ter dado à luz, Mohammed Salem encontrou Inas Abu Maamar, então com 36 anos, agachada no chão e a abraçar o corpo de uma criança embrulhado num lençol branco, na morgue do Hospital Nasser, onde os residentes iam à procura de familiares desaparecidos.
Inas embalava o corpo da sua sobrinha Saly, de 5 anos, que tinha morrido juntamente com a mãe e a irmã, quando um míssil israelita atingiu a sua casa, em Khan Younis, em Gaza. A mulher correra para a casa da família quando soube que ela fora atingida e depois para a morgue.
Era um “momento poderoso e triste que resume o sentido mais amplo do que estava a acontecer na Faixa de Gaza”, descreve o fotojornalista.
Para o júri, trata-se de “uma imagem avassaladora com uma força enorme sobre o que está a acontecer em Gaza. É a dor, é o vazio e é o horror de alguém que parece abraçar o impossível: recuperar a vida da rapariga. E não é só o que conta, mas como se conta: com sobriedade e sem sequer mostrar a cara.”
Mohammed Salem fotografou Inas a embalar o corpo da sua sobrinha com uma lente de 50mm, também chamada de lente normal, por apresentar um resultado final semelhante à visão do olho humano.
O júri ficou “profundamente comovido” com a forma como esta sua fotografia “evoca uma reflexão emocional” em cada espetador.
“Composta com cuidado e respeito, oferece ao mesmo tempo um vislumbre metafórico e literal de uma perda inimaginável. Situada num ambiente médico geograficamente distante, tem um impacto global, incitando-nos a confrontar a nossa dessensibilização relativamente às consequências do conflito humano”, lemos no site do World Press Photo.
“A imagem tem várias camadas, representando a perda de uma criança, a luta do povo palestiniano e as 31 mil mortes na Palestina. Símbolo do custo do conflito, a imagem faz uma declaração sobre a futilidade de todas as guerras”, escreveu ainda o júri, reconhecendo que o facto de Mohammed Salem ter sido premiado pelo mesmo tema em 2010 “sublinha a luta contínua pelo reconhecimento de uma questão tão premente”.
QUEM É MOHAMMED SALEM
“Uma fotografia não deve ser tirada apenas com os olhos; deve ter um significado no coração. Respeito os sentimentos das pessoas que estão a ser fotografadas, especialmente se estiverem em situações difíceis.” É nisto em que acredita o fotojornalista palestiniano Mohammed Salem, de 39 anos, que vive na Faixa de Gaza e trabalha na agência Reuters, desde 2003.
No último ano, Salem tem-se dedicado sobretudo à cobertura do atual conflito israelo-palestiniano, sem nunca deixar por contar as histórias da vida quotidiana no Médio Oriente. O seu Instagram está cheio de fotografias de conteúdo sensível. E não é por acaso que já é um repetente no World Press Photo – o tema que lhe ocupa a maior parte dos seus dias não é novo para si.
“Algumas das minhas primeiras recordações da fotografia são confrontos entre atiradores de pedras palestinianos e soldados israelitas”, conta o fotojornalista, na sua página na Reuters. “Quando era muito novo, adorava a fotografia como passatempo e os meus irmãos Ahmed e Suhaib encorajaram-me. Costumava segui-los durante os seus trabalhos e aprendi a fotografar e a editar. Também aprendi com os outros fotógrafos estrangeiros que costumavam visitar a Faixa de Gaza. Eram muito profissionais.”
Salem começou a colaborar com a Reuters aos 18 anos, antes de se licenciar em Comunicação Social, na Universidade de Gaza, fazendo a cobertura de um campeonato de ténis no Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. “Foi uma experiência diferente estar longe do conflito e da violência. Apercebi-me de que a fotografia não tem apenas que ver com política, tem que ver com tudo na vida”, recorda.
Mais tarde, em 2012, as eleições presidenciais no Egito marcaram-no muito. “Testemunhei a emoção das pessoas e vi como estavam felizes, considerando que não esperavam ver eleições justas, uma vez que o seu antigo presidente governou o Egito durante décadas [Mubarak esteve 30 anos no poder].”
EXPOSIÇÃO WORLD PRESS PHOTO 2024
Parque dos Poetas, Oeiras. Entrada Templo da Poesia, na R. José de Azambuja Proença. Até 29 de dezembro. Seg-Dom 10h-20h. Entrada gratuita
As conversas
Em paralelo com a exposição, a VISÃO organiza quatro conversas sobre fotografia, nos dias 7 e 15 de dezembro.
No sábado, 7, os repórteres fotográficos José Carlos Carvalho e Clara Azevedo vão apresentar os seus trabalhos e partilhar as suas experiências com a assistência.
No domingo, 15, será a vez de Arlindo Camacho exibir as suas técnicas de retrato e de José Sena Goulão mostrar como é o trabalho de um fotojornalista de agência num grande acontecimento desportivo como os Jogos Olímpicos.
Estas sessões são gratuitas, mediante inscrição no respetivo dia, a partir das 14h até às 16h30, no Templo da Poesia do Parque dos Poetas. Máximo de 2 senhas por pessoa e válidas até ao início da sessão. Lugares limitados à capacidade da sala.