Mónica Silva tinha sonhos de “dinheiro” e de “sucesso”, contam, à VISÃO, familiares e vizinhos da mulher que desapareceu, sem deixar rasto, há pouco mais de 13 meses. Na Murtosa, distrito de Aveiro, ninguém quer falar de um assunto que “já não interessa”, que “já cansa”, que envolve “famílias complicadas”, repetem (quase) todas as vozes, nada interessadas em fazer parte do elenco mediático, que transformou as alegadas vítimas de um crime em protagonistas involuntários de uma longa novela policial (ver caixa O caso da “grávida da Murtosa”). Quem era, afinal, Mónica?
A família Silva “é toda da Murtosa”, conta a tia paterna de Mónica, Maria Filomena, uma espécie de porta-voz do enredo, hoje a mais famosa moradora de Pardilhó, lugar próximo. “Gente pobre”, prossegue, “sempre ligada à ria [de Aveiro]”, que toca todo aquele território. O pai, Alfredo, também conhecido por “Tuinha”, “sofre de esquizofrenia”, terá tido “um acidente na tropa” e “passou a viver da [pensão de] invalidez”; a mãe, Celeste, “trabalhou toda a vida na ria, na apanha do marisco”, mas agora é doente, “coitadinha, tem problemas nos rins”, “anda, há anos, na hemodiálise”. “Ainda vivem na Murtosa”, confirma.
Alfredo e Celeste tiveram quatro filhos. O mais velho, António, é mergulhador profissional e divide-se entre Portugal e Angola, “sempre que há trabalho”. A mais nova é Sandra. As gémeas, Mónica e Sara, nasceram pelo meio, no dia 27 de maio de 1990.

Mónica é recordada como “uma pessoa simpática, muito boa rapariga”. “O problema era deixar-se levar, ser ingénua”, acrescenta a familiar. Uma vizinha, que com ela conviveu, diz “não ter nada de mal a dizer” de Mónica, mas critica “os maus hábitos”. Quais? “Gostava muito de sair à noite, de namorar…”, afirma, com um piscar do olho e sorriso trocista. “Boatos da terra” de que a tia não gosta e desmente. “Isso é tudo mentira! A Mónica? Boa pessoa e boa mãe, muito afetuosa. E trabalhava que nem uma ‘danada’”, sublinha. As opiniões divergem; há muito “diz que disse” por aqui.
Antes de ser, apenas, a “grávida da Murtosa” que desapareceu, houve uma história. Mónica Alexandra de Oliveira e Silva não nasceu em berço de ouro. O (difícil) contexto familiar marcou-lhe a infância e a juventude. Ainda estudou na terra natal, mas não foi além da 4ª classe. Era menor quando começou a seguir os passos da mãe, com quem ia para a ria escavar com as mãos os solos lodosos à procura de berbigão, mexilhão, amêijoa ou lingueirão (a que todos chamam “navalhas”).
Perto da água, tornou-se mulher e apaixonou-se. O escolhido foi André Pataca, homem do mar, pescador de profissão, que ainda hoje vive na Torreira, a apenas uma dúzia de quilómetros. A vida era dura. Depois do casamento, André continuou a partir para alto-mar, permanecendo a bordo, longe de casa, por vezes, meses seguidos.
O casal teve dois filhos, hoje com 15 e 12 anos. Ao contrário das gerações anteriores, seguem na escola. O ciclo do mar parece, finalmente, ter acabado.
As crianças eram ainda pequenas quando o casamento “começou a ter problemas”. Maria Filomena prefere não entrar em pormenores, “isso é lá com eles”, diz a tia, resumindo tudo com um encolher de ombros e um suspiro. “A relação não era muito boa… As coisas são mesmo assim, não é?”, questiona. Mas não resiste a atribuir culpas. “Sabe de quem foi a culpa? Das más-línguas”, pessoas que “enchiam a cabeça do André”, que diziam “mentiras” sobre a sobrinha. “Sempre fui muito a favor da Mónica, é verdade. Mas sei que muita coisa que se diz é mentira. A Mónica era boa mulher e boa mãe, mas as coisas acabam. É normal, acontece a muitos casais, não é?”, volta a confirmar.
Mónica e André separaram-se em 2020, mas nunca chegaram a oficializar o divórcio – hoje são ainda marido e mulher, por lei, mas o homem tem outra relação. A partir daqui, Mónica ficou a viver na moradia da Murtosa, com Sara (a irmã gémea que também já se tinha separado), com os seus filhos e ainda dois sobrinhos pequenos.
“Foi uma fase diferente. Depois da separação, afastou-se da família. Passou por vários trabalhos, via-se pouco”, relata Maria Filomena. Recentemente, o pai de Mónica foi condenado por tráfico de droga (a dois anos e dois meses de pena suspensa). As farpas atiradas à família aumentaram. Mónica era alvo de comentários “maldosos”, adjetiva Maria Filomena. “Diziam que andava sempre na noite, que levava homens lá para casa… Tudo mentira. Ela trabalhava”, insiste.

A tia conta que Mónica continuou a sujar as mãos na ria, trabalhou como empregada de mesa em cafés, bares e restaurantes, em Estarreja e Ovar. “Chegou a trabalhar num bar, no Furadouro, alguns dias das 19h às 2h da manhã. Por isso é que a viam por aí, à noite”, declara.
Mónica mantinha relações amorosas. Sara chegou a confirmar que a irmã teve um relacionamento com “um empresário de Anadia”, mas “o caso mais sério” terá sido com o homem que a PJ e o Ministério Público (MP) acreditam ter sido o responsável pelo seu desaparecimento e pela sua morte: Fernando Valente.
Mónica terá conhecido Fernando quando era empregada de mesa num restaurante, em Pardelhas, a menos de três quilómetros da sua residência. As moradas da casa e da empresa da família Valente-Cruz também são próximas; Fernando e o pai, Manuel, eram clientes daquele estabelecimento, especializado em leitão e frango de churrasco.
O resto da história sabe-se melhor pela PJ e pela acusação do MP. Mas já lá vamos.
As gémeas Mónica e Sara ainda decidiram arriscar num negócio próprio, mas as coisas não correram bem. Primeiro, abriram um café, em Cacia; depois, uma frutaria, em Estarreja. A sociedade terminou abruptamente, com uma zanga. Seguiram caminhos opostos. Sara abandonou a moradia da irmã, onde vivia há dois anos.
Os últimos meses conhecidos de Mónica foram passados em repouso. A – agora sim – “grávida da Murtosa”, com um histórico de bebés prematuros, deixou de trabalhar, quando o inchaço da barriga e das pernas se tornou insuportável. Os médicos deram-lhe baixa. O parto poderia acontecer a qualquer momento.
Uma relação “proibida”
A tia afirma que Mónica “nunca escondeu da família” a relação “de natureza íntima e sexual”, como descreve no despacho de acusação, que esta mantinha com Fernando Valente. A investigação acrescenta que o “relacionamento amoroso” era até “do conhecimento dos filhos de Mónica”, que “escutavam as conversas da mãe” com o suposto namorado.
No início, Mónica e Fernando “comunicavam entre si via Messenger do Facebook”, por mensagens escritas e videochamadas. No princípio de novembro de 2022, o casal trocou números de telemóvel e passou a conversar por aí.
Em declarações à SIC, a irmã Sara relatou que a relação corria bem, “[os dois] iam para o apartamento na Torreira”, e “ele [Fernando] abria vinhos caros e desfrutavam do momento”. “Entendiam-se na intimidade e era carinhoso para ela [Mónica].” De acordo com a gémea, Fernando chegou a prometer a Mónica “levá-la até ao Dubai”. A familiar garante ainda que o homem aceitou assumir a paternidade do bebé que Mónica trazia na barriga.

Havia, porém, um sinal de alerta. Fernando “nunca quis ser visto na companhia de Mónica” nem “nunca divulgou perante terceiros o relacionamento que mantinha”, lê-se no despacho. Ao volante do seu Audi ou do seu Mercedes, dava boleia a Mónica (que não conduzia), mas os encontros, “em frequência não inferior a uma vez por mês”, segundo a investigação, aconteciam a horas tardias, sempre em sítios “nos quais não pudessem ser vistos juntos”, parques de estacionamento ou matas isoladas dos arredores.
Maria Filomena assegura que Mónica “estava feliz” com a chegada do terceiro filho, mas que “não queria nada dele [de Fernando]”, “não havia nenhuma exigência, nenhum acordo”. Mas a investigação acredita que este terá sido o motivo do crime. O MP concluiu que Mónica comunicou a Fernando que este era o pai da criança no dia 29 de setembro. Perante a revelação, o homem “pediu-lhe que guardasse ‘segredo’” e que “não divulgasse tal facto” a ninguém. A PJ e o MP estão convencidos de que a prioridade de Fernando passou a ser “evitar que lhe fosse imputada a paternidade do feto”, passando a temer que mãe e filho “viessem a beneficiar do seu património”. “O arguido tomou a resolução de matar Mónica Silva e o feto que esta carregava”, lê-se no despacho. O arguido planeou ainda “desfazer-se do seu corpo e do feto, eliminar contactos que o relacionassem com aquela e com os vestígios da sua morte, e desviar de si as suspeitas”, lê-se.
Uma viagem para a morte?
Mónica nunca desconfiou. No dia 23 de outubro de 2023, passava pouco das 21h quando Fernando ligou à vítima informando-a de que estava “próximo” da sua casa, na Rua de Santo Estêvão. Mónica disse aos filhos “que ia sair para tomar café”, mas que regressava “rápido”. A mulher saiu de casa com o seu telemóvel, uma carteira preta e as ecografias da gravidez. A investigação pensa que Fernando e Mónica seguiram no Mercedes preto do homem em direção ao apartamento da família Valente-Cruz, na Torreira. Pelo caminho, o veículo foi identificado em três pontos, dois postos de combustível e um estabelecimento comercial, na Estrada Nacional 327.
Não se sabe o que se terá passado no interior do apartamento na Travessa Manuel Borras. A tia de Mónica diz que uma testemunha “ouviu uma discussão” entre um homem e uma mulher, e depois “silêncio”. A última prova de vida de Mónica foram dois telefonemas, para o filho mais velho (às 23h19 e às 23h42). No primeiro, disse-lhe estar “quase a chegar” a casa; no segundo, a criança não atendeu. Mónica já não pôde cumprir a promessa.

A acusação acredita que, entre as 23h42 e a 1h48, do dia 4 de outubro de 2023, Fernando Valente, “de forma concretamente não apurada”, matou Mónica e o feto. Ainda nessa madrugada, ter-se-á desfeito do corpo de Mónica, “levando-o para parte incerta, escondendo-o e impedindo que fosse encontrado, o que efetivamente conseguiu”. Depois, terá criado “manobras” com o intuito de despistar qualquer suspeita. À 1h48 dessa madrugada, terá enviado, a partir do telemóvel da vítima, uma mensagem a um homem a quem Mónica supostamente devia dinheiro: “Não me faça mal… por favor. Pare de me ameaçar.” No dia seguinte, o telemóvel de Mónica deu sinal em Cuba, no Alentejo (localidade onde a família Valente-Cruz também tem propriedades).
Fernando aguarda agora julgamento, em prisão domiciliária, que continua a cumprir no seu apartamento em Pedrouços, Vila Nova de Gaia. O homem, de 37 anos, é acusado de homicídio qualificado, aborto e profanação de cadáver. Apesar dos esforços das autoridades e dos familiares, Mónica Silva, a mulher que “parecia andar vaidosa por namorar o Valente”, como diz a proprietária de um negócio local, nunca mais foi vista. A “grávida da Murtosa” tinha apenas 33 anos.
Os indícios (e a testemunha) que tramam Fernando
Mesmo sem corpo, o MP acredita possuir provas circunstanciais suficientes para condenar Fernando Valente, sem qualquer dúvida razoável. Os processos dos homicídios de Joana Cipriano e João Paulo Fernandes também valeram condenações sem cadáver. Ainda assim, o MP solicitou um julgamento com tribunal de júri (constituído por quatro cidadãos), repetindo a opção nos casos que valeram penas de prisão a Leonor Cipriano e Rosa Grilo (pelo homicídio do marido, Luís).
À VISÃO, o advogado Carlos Melo Alves explica que, “normalmente, quando o MP toma esta opção é porque quer que os jurados se pronunciem sobre questões que não são muito técnicas”. “Os juízes têm de aplicar determinados princípios e, por vezes, isso pode conduzir à absolvição dos acusados. Os jurados, por sua vez, seguem mais as regras da experiência de vida. O que posso concluir, neste caso, é que a prova resultante da investigação corria o risco de não ser considerada tão forte e decisiva pelo tribunal”, diz Melo Alves.
A acusação considera que o “plano engendrado” por Fernando Valente falhou. Cerca de 24 horas antes do crime, o arguido adquiriu um novo cartão de telemóvel, numa tabacaria que fica a 20 metros da florista da sua mãe, na Murtosa. O homem decidiu passar a usar um telefone velho que tinha em casa, comprado em 2013, sem GPS nem acesso à internet, que não deixava pegada digital. Ligou, então, a Mónica para lhe dizer do seu “novo número”, que só usou nas horas seguintes, e apenas para falar com a grávida. Fernando não sabia, porém, que Mónica guardou logo o contacto com o nome “Fernando” nem que esta partilhava o iCloud (a “nuvem” da Apple) com o filho mais velho, o que significa que também no telemóvel do jovem ficaram registadas aquelas chamadas. O telemóvel normalmente usado por Fernando ficou a “carregar”, ligado à tomada, em casa dos pais deste, no Bunheiro, entre as 20h54 do dia 3 de outubro e as 7h14 do dia seguinte.
Antes, no dia 1, já Fernando tinha andado a fazer pesquisas suspeitas online: “Como apagar mensagens para sempre no Messenger do jeito certo?” ou “Como apagar mensagens do Messenger sem excluir toda a conversa?”, perguntou ao Google.
Mas a prova mais incriminatória surgiu com o aparecimento de uma testemunha-surpresa, que pode ser a “chave” para a condenação. O homem, a quem chamaremos O. O., terá sido funcionário de Manuel, pai de Fernando, e foi mandado ao apartamento da Torreira, ao início da manhã de dia 4 de outubro, menos de 12 horas após o suposto homicídio. Sob orientações de Fernando e de Manuel, a testemunha fez a limpeza do apartamento na Travessa Manuel Borras usando soda cáustica e outros químicos, que permitiram destruir vestígios. Às autoridades, O. O. contou ainda que “teve de lavar todas as divisões” do apartamento, incluindo as zonas comuns do prédio entre o 1º andar e o rés do chão, mais ainda o parque de estacionamento utilizado pela família Valente-Cruz, algo que os intervenientes nunca antes tinham feito. A testemunha refere ainda que viu roupa de mulher pousada numa cama, e que recebeu ordens de Manuel para “não lhe tocar”. O. O. terá identificado, na ocasião, “uma camisola cor-de-rosa, uma t-shirt ou camisola de malha, umas calças ou uma saia”, que, depois de ouvidos os filhos da vítima, as autoridades concluíram serem coincidentes com a roupa que Mónica vestia naquela noite do seu desaparecimento.
O julgamento deve começar nos próximos meses.
O caso da “grávida da Murtosa”
O desaparecimento de Mónica Silva tornou-se um fenómeno mediático. Os média “assentaram arraiais” na Murtosa, gastando horas infindáveis com o caso. “Já estamos cansados dessa história”, respondem os locais

As câmaras de TV passaram a fazer parte da paisagem. Na Murtosa e nos arredores, os residentes já se habituaram a conviver com os exércitos de jornalistas que, de microfone em punho, têm acompanhado, ao segundo, o caso do desaparecimento de Mónica Silva – que, para efeitos noticiosos, alguém passou a chamar “grávida da Murtosa”. “Já estamos cansados”, respondem os locais. A CMTV destacou-se no terreno, mas agora parece “que ninguém quer falar”. Mas porquê este caso? Num país em que, por ano, há três a quatro mil alertas de desaparecimentos – embora na maioria das situações as pessoas voltem a casa –, a atenção dada não se explica, apenas, por critérios jornalísticos. Fonte ouvida pela VISÃO resume tudo numa simples palavra: “Audiências.” “As televisões aperceberam-se de que, por alguma razão, as audiências disparavam quando se falava deste tema. Ao fazer-se um direto, desde a Murtosa, o efeito era ainda maior. Claro que existe interesse jornalístico [no caso da “grávida da Murtosa”], mas a relevância que o caso ganhou explica-se, em grande parte, pelo número de pessoas que ‘prendeu’ à TV”, refere o profissional ligado ao setor do audiovisual. O julgamento, esse, não deve fugir à regra. Os planos de poços (e outros lugares visitados) vão ser substituídos por salas de audiência.