Há dois anos, o alargamento da Área de Proteção Integral das Ilhas Selvagens, uma medida do executivo madeirense da altura (PSD/CDS-PP), foi aplaudido por ambientalistas e contestado pelos homens do mar, alegando que o rombo financeiro num agregado familiar dependente da pesca de atum pode variar entre os quatro mil e os seis mil euros anuais.
As Ilhas Selvagens, classificadas há 53 anos como Reserva Natural, passaram assim a ser a maior área marinha de proteção total da Europa, ao ser ampliada de 94,71 para 2 677 km², uma área de 12 milhas náuticas ao redor das ilhas, na qual são proibidas a pesca e qualquer outra atividade extrativa, como a exploração de inertes.
Este que é o ecossistema mais intacto do Atlântico Nordeste representa quase um quarto das áreas classificadas (mais de 89%) do mar territorial da Região Autónoma da Madeira (RAM).
E, como bem nos lembra Ana Amaral, bióloga da conservação da Ocean Devotion Madeira, as Selvagens também fazem parte da Rede Natura 2000, integrando uma Zona Especial de Conservação e uma Zona de Proteção Especial. “São um santuário vital para a preservação da biodiversidade e um exemplo incomparável de conservação eficaz no Atlântico.”
No início do verão, a proposta do Chega Madeira (quarta força política do arquipélago) para levantar as restrições de pesca comercial voltou a pôr as Selvagens na agenda do Governo Regional. Alegando a reposição do “bom senso” em falta na legislação em vigor, o partido quer que volte a ser possível pescar tunídeos além das duas milhas náuticas, em vez das atuais 12. Por ser utilizado o método artesanal de pesca de salto e vara, o Chega defende que abrir as Selvagens à pesca do atum não compromete o equilíbrio marinho.
Mas diversas vozes contra se levantaram em defesa do Atlântico e das espécies junto ao território de origem vulcânica descoberto em 1438 por Diogo Gomes.
Na revista Nature, edição de agosto, foi publicada uma carta assinada por cerca de 300 cientistas de todo o mundo, em que repudiavam o poder dos ciclos políticos e de eleições. Se a medida de março de 2022 for agora revertida, fica comprometido o caminho para o objetivo global de proteger 30% dos oceanos até 2030, no âmbito da Convenção das Nações Unidas para a Biodiversidade. Até agora, apenas 2,8% estão protegidos.
“Por serem zonas remotas, de difícil acesso, em que a utilização e a pressão por atividades humanas é relativamente reduzida, a classificação como Área de Proteção Integral faz todo o sentido, pois estamos a proteger habitats menos degradados, com características únicas que contribuem de forma determinante para as obrigações de Portugal”, frisa João Gama Monteiro, investigador da Universidade da Madeira e do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.
Mais um alerta soou por parte de diversas organizações não governamentais, incluindo a Zero, que já fez chegar à Comissão Especializada Permanente do Ambiente, Clima e Recursos Naturais da Assembleia Legislativa da RAM, e a todos os respetivos grupos parlamentares, o seu parecer negativo e a lista de “consequências nefastas” da abertura da Área de Proteção Integral à pesca comercial.
“A pesca no mar da Madeira não se restringe aos pescadores locais. Abrindo este precedente, poderão vir pescadores de outros lugares. E abre também para futuras concessões. Como se garante que, no futuro, a próxima moeda de troca política não poderá ser outro tipo de atividade extrativa, como a mineração em mar profundo, por exemplo?”, questiona Carolina Silva, gestora de projetos e analista de políticas públicas da Zero Madeira.
Iguarias para os atuns
O ecossistema marinho das Selvagens, a sua biodiversidade e os seus fundos são únicos, dos mais intocados no mundo. “É difícil comparar com outros locais prístinos, como as ilhas Galápagos, e atóis remotos do oceano Pacífico, o território britânico do Índico ou zonas geladas da Antártida, por vezes mais ricos em número de espécies, mas que albergam biodiversidade diferente”, exemplifica João Gama Monteiro. “Nos fundos marinhos abriga-se uma comunidade bentónica diversa com mais de 200 espécies de algas identificadas. A abundância de peixes e de predadores de topo, como o mero, é um claro indicador da saúde e da robustez deste ecossistema marinho”, reforça Ana Amaral.
Para o investigador da Universidade da Madeira, “seria desastroso” reverter a decisão de 2022. “Reduzir a Área de Proteção Integral para as duas milhas significa reduzir a área de proteção de 25% do mar territorial da Madeira para menos de 2%.”
De acordo com a pesquisa da expedição da National Geographic em 2015 (do projeto Pristine Seas), Ana Amaral sublinha que “a biomassa de peixes costeiros nas Selvagens é três vezes maior do que na ilha da Madeira, enquanto a biomassa de predadores de topo é dez vezes superior. Além disso, a comunidade biológica da zona entremarés é considerada a mais intacta da região”.
Os tunídeos são espécies migratórias, “mas, apesar disso, têm um papel fundamental nas cadeias tróficas, e intensificar a pesca destas espécies numa zona em que há dois anos não há qualquer tipo de pesca pode comprometer todo o equilíbrio do ecossistema”, alerta Carolina Silva. “As águas ao redor das ilhas representam um corredor crucial para peixes migratórios e mamíferos marinhos, além de funcionarem como um importante berçário para diversas espécies, oferecendo refúgios seguros para o seu desenvolvimento”, explica Ana Amaral.
É entre março e maio que os grandes tunídeos passam por esta zona do Atlântico, podendo existir flutuações no tempo e alterações nas rotas específicas. “Considerando que as Selvagens albergam muita vida, é muito provável que esta zona agregue estas espécies migratórias quando lá passam. Tal como os montes submarinos, as Selvagens poderão servir de zona predileta para os atuns se alimentarem quando estão de passagem”, esclarece João Gama Monteiro.
Antes sobrava o gaiado
Qual a solução para manter a proteção dos tunídeos e permitir aos pescadores reaverem parte do seu ganha-pão? Do lado dos ambientalistas ouve-se: pescar para lá das 12 milhas náuticas, onde não existem medidas de conservação, exceto a regulação do tipo de artes de pesca usadas e o cumprimento de quotas de captura para algumas espécies.
Nos anos 1980, as quotas iam até às 12 mil toneladas de peixe; por volta de 2005, e com menos embarcações, desceram para as sete mil toneladas. Durante esses anos, e para os barcos não pararem, atingido o limite máximo, os pescadores rumavam às Selvagens para apanhar o gaiado (atum-bonito), predominante e sem limite. Agora, com quota nacional de 3 100 toneladas para o atum-patudo, por exemplo, das quais cerca de 2 800 toneladas são para a Madeira e os Açores em conjunto, Jacinto da Silva, presidente da Coopesca, defende que o ideal seria triplicar a quantidade.
Pescador durante mais de 30 anos, entretanto já reformado, Jacinto da Silva, 72 anos, lembra os dias em que as embarcações zarpavam do Porto do Caniçal, no Funchal, para ir apanhar atum-rabilho, atum-patudo, atum-albacora, atum-voador e gaiado.
“As embarcações já tentaram ir além das 12 milhas, mas não conseguem pescar. O pescador não pode estar à porta das 12 milhas à espera que o atum saia. Os tunídeos são migratórios e vêm sempre para zonas onde há comida, raramente comem em mar alto. A alimentação, sardinha, chicharro, cavala e outro peixe miúdo, está nas baixuras. Enquanto houver comida, ficam lá dentro”, explica Jacinto da Silva.
“Quando os atuns atacam esses cardumes, atraem também aves marinhas pelágicas, que aproveitam a oportunidade para se alimentar. Este delicado equilíbrio ecológico depende da abundância de peixes que formam os cardumes, uma condição assegurada pela boa saúde dessas áreas”, justifica Ana Amaral.
O efeito spillover
Segundo a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, de 28 de julho de 1994, nos seus artigos 192º e 194º, “os Estados têm a obrigação de proteger e preservar o meio marinho” e criar “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, respetivamente. O eventual regresso da atividade pesqueira às Selvagens pode pôr em causa as diretivas. “Essas medidas incluem a diminuição da emissão de substâncias tóxicas e prejudiciais, a regulação da poluição provocada por embarcações e o controlo de poluentes provenientes de instalações ligadas à exploração dos recursos naturais no fundo do mar e no seu subsolo”, elenca Ana Amaral. “No contexto das Ilhas Selvagens, onde a poluição é atualmente mínima, seria ilógico retroceder, introduzindo mais atividades humanas, já que isso inevitavelmente aumentaria os níveis de poluição.”
“O ruído das embarcações interfere na comunicação dos cetáceos, afetando particularmente as crias, mais vulneráveis. Além disso, a poluição química e de combustíveis dessas embarcações, o risco de colisões com a fauna marinha e o transporte involuntário entre regiões de espécies potencialmente invasoras são questões a ponderar”, reforça a bióloga da conservação. Sem esquecer que “a poluição luminosa das embarcações também poderá afetar as aves marinhas que vivem nestas ilhas, especialmente as juvenis, que ficam desorientadas pelas luzes artificiais, aumentando o perigo de colisões com barcos e quedas ao mar.”
Um dos efeitos da proteção integral de áreas marinhas só será notado e estimado a longo prazo. Dois anos são ainda insuficientes para compreender o efeito spillover (transbordamento) nas Selvagens. “A ausência de pesca protege as espécies e os organismos marinhos nas fases da vida, incluindo espécies comerciais em diferentes fases reprodutoras, permitindo a regeneração das unidades populacionais. E isto acabará por beneficiar os pescadores no futuro”, diz Carolina Silva.
Um bom exemplo, partilhado por Ana Amaral, sobre como “o transbordamento favorece a expansão das espécies para lá dos limites protegidos, aumentando os recursos pesqueiros disponíveis fora da reserva”, foi a criação, em 2017, do Parque Nacional Marinho Revillagigedo (147 000 km²), no México, o maior da América do Norte. Um estudo de 2023 “demonstrou que a vida marinha restaurada dentro da área protegida contribuiu para a reposição dos recursos pesqueiros nas zonas circundantes. Este exemplo, que em muito se assemelha ao das Selvagens, mostra que reservas bem geridas conseguem simultaneamente proteger os ecossistemas marinhos e aumentar as oportunidades de pesca nas suas proximidades”.
Certo é que, desde 2022, as 50 traineiras maiores (superiores a 20 metros), que têm licença para pescar apenas atum, ficam paradas no Porto do Caniçal.