“Do jejum intermitente às receitas mágicas dos detox, passando pelos superalimentos ou pela privação de hidratos de carbono, há muitas ideias nocivas que circulam na área da nutrição”

Foto: Luís Barra

“Do jejum intermitente às receitas mágicas dos detox, passando pelos superalimentos ou pela privação de hidratos de carbono, há muitas ideias nocivas que circulam na área da nutrição”

Apesar de já ter publicado diversos artigos científicos na sua área de investigação, a bioquímica nutricional, e de ser presença assídua na comunicação social para incrementar a literacia, aos 50 anos Conceição Calhau nunca havia escrito um livro. Fê-lo agora, deu-lhe o provocatório título Deixemo-nos de Tretas (Contraponto, 208 págs., €17,70) e é como que um murro na mesa, provocado por duas décadas de clínica a ouvir as mais equivocadas certezas sobre alimentação (um mês depois, já vai na segunda edição). Cansada dos mitos espalhados pelas redes sociais e da desinformação que grassa neste meio, a especialista, uma das mais conceituadas em Portugal no seu métier, desconstrói algumas ideias feitas – deixe-se já aqui escrito que a melhor forma de se comer peixe, aproveitando todas as suas propriedades, não é cozido nem grelhado, mas sim em caldeirada. Água na boca? Há muito mais para ler nas linhas que se seguem, mantendo a Dieta Mediterrânica debaixo de olho e a inflamação longe da vista.

Os hábitos alimentares acabam de ultrapassar o tabaco no ranking dos fatores de risco da mortalidade. É mais uma motivação para escrever um livro a pôr os pontos nos is?
Na realidade, contextualiza muito a motivação inicial para escrever. A evolução da Medicina, com os antibióticos e as vacinas, deu-nos mais anos para viver, mas depois enchemo-los de doenças crónicas e temos falta de qualidade de vida. O facto é que a alimentação potencia a saúde e que os hábitos desadequados estão associados à doença.

E à morte, como indiciam estes dados recentes divulgados pela Direção-Geral da Saúde, com base num estudo do Golden Burden of Disease.
É uma boa oportunidade para falarmos do assunto, pois temos a sociedade mais desperta para o tema e as pessoas a procurarem informação sobre alimentação e saúde.

Só que há um problema com as fontes às quais se vai buscar essa informação…
As redes sociais proliferam muita informação e há bastante gente que não é da área da nutrição nem do jornalismo com imensa influência.

Dê-me exemplos de ideias que circulam e que podem ser nocivas.
Saltar o pequeno-almoço constantemente, com a questão do jejum intermitente, as receitas mágicas dos detox, os superalimentos – que até podiam ter alguma coisa boa por detrás, mas que passam a ser a panaceia para todos os males –, a privação de hidratos de carbono não indo além dos 20, 30 gramas por dia, e toda a panóplia de dietas mirabolantes.

Quando se estabelece esta relação da alimentação com a mortalidade, não estamos só a falar de obesidade, pois não?
Claro que a obesidade é a doença que se manifesta de forma mais visível. Mas os hábitos alimentares desadequados têm uma relação com o cancro, por exemplo, e isso pode não ter uma manifestação clara. Ainda ontem estava a rever os números: um em cada cinco homens e uma em cada seis mulheres vai ter um cancro na vida, e 40% deles são evitáveis, porque estão muito relacionados com o estilo de vida.

Não se trata apenas de alimentação…
O estilo de vida são os hábitos alimentares, o sono, a atividade física, a gestão de stresse. Estas são as principais variáveis a que temos de prestar mais atenção e não é só quando já se tem a doença, nem só no envelhecimento, é para uma maior longevidade.

Afinal, o que buscam as pessoas que se perdem nas redes sociais?
Muitas vezes, já existe uma má relação com a alimentação, porque têm problemas até de outras ordens, como a questão da adição, e acabam por ter uma fome emocional, querem encontrar uma solução: continuar a comer, mas não engordar, ou até, no limite, continuar a comer o mesmo e perder peso. Isso não existe!

É mais ou menos assim que muita gente encara o Ozempic.
Trata-se de um fármaco que tem algumas vantagens de acelerar o processo, mas as pessoas têm de mudar o seu estilo de vida. Não faz sentido, seja para a perda de peso seja para o colesterol elevado ou a resistência à insulina, no caso da diabetes, termos uma terapêutica farmacológica sem uma terapêutica nutricional como adjuvante.

Nunca houve tanta disponibilidade de informação e tanta gente tão mal informada. Combate-se isto com livros como o seu?
Mesmo na eventualidade de os nutricionistas terem redes sociais para irem repondo a verdade, isso não seria suficiente – é humanamente impossível, porque a velocidade e o número ou volume de informação é absurdo.

Tem de ser frustrante…
Com o livro, o que tento é dar ferramentas para as pessoas se tornarem críticas e ter um filtro relativamente à informação. É um alerta para perceberem quem são de facto as fontes credíveis e onde devem procurar a informação. Sabemos que, por exemplo, a Direção-Geral de Saúde tem um programa de promoção da alimentação saudável e produz muita informação, muitos manuais. Só que não tem qualquer tipo de alcance, não tem sequer um alcance parecido com qualquer influencer. As pessoas não conseguem ter critério, perceber de onde vem essa informação e depois, se calhar, as mais credíveis são aquelas a que acedem menos.

Este livro chegará aos públicos que se intoxicam nas redes sociais?
A verdade é que o livro, em menos de um mês, chegou à segunda edição, o que significa que também há muito quem procure este tipo de informação credível. Foi uma surpresa – enquanto autora completamente desconhecida, sem redes sociais, não estava minimamente a contar que tanta gente tivesse vontade de ler o livro e que passasse a palavra.

Esta é uma área em que as pessoas tendem a posicionar-se em extremos?
É de facto muito mais fácil adotarem atitudes extremas. Uma delas é “o natural faz bem”. Quando falamos dos ultrapassados ou muito processados, aparece o outro extremo do tudo caseiro, tudo natural. Dou sempre este exemplo: o cianeto também é natural e mata. O facto de ser caseiro não tem necessariamente de ser melhor, porque se fizer uma alimentação cheia de sal, gordura e açúcar, mesmo em casa, não tem nada de adequado. Muitas vezes brinco com os doentes que me dizem: “Não como bolos, só caseiros”; “Só como bolachinhas de água e sal.” Costumo explicar que água e sal é mar, não é bolacha. Também há quem fale das bolachas integrais, que têm muita gordura, ou a bolacha de aveia. Aveia… aveia é saudável… mas a bolacha de aveia, frequentemente, tem 10% de gordura saturada, portanto está completamente desadequada. Depois é o biológico (muitas vezes, nem sabem muito bem o que quer dizer biológico ou orgânico) e o vegan.

É muito fácil as pessoas adotarem atitudes extremas. Uma deles é “o natural faz bem”. Quando falamos dos ultrapassados ou muito processados, aparece o outro extremo do tudo caseiro, tudo natural. Dou sempre este exemplo: o cianeto também é natural e mata

O que tem a dizer sobre os regimes vegetarianos?
Muitas vezes, os vegetarianos são indivíduos que têm mais preocupação, mais conhecimento nutricional e um estilo de vida mais adequado. O que não é a mesma coisa que dizer que, efetivamente, é o correto versus o não vegetariano.

São os comportamentos desadequados que levam à inflamação de que tanto se fala?
A inflamação é, de facto, um denominador comum para a maioria das doenças de hoje. Já dizia o professor Sobrinho Simões: “Estamos todos muito inflamados.” A inflamação aguda é necessária, trata-se de uma reação contra uma agressão ou uma situação estranha, mas depois temos de ser capazes de resolver o processo inflamatório. A não resolução significa a inflamação crónica de baixo grau.

Porque não estamos a resolver isso?
Deve-se sobretudo à inadequação relativamente à gordura, que se reflete na falta de gordura Ómega 3, sobretudo os EPA e DHA, que estão maioritariamente na gordura do peixe, comparativamente à grande ingestão que fazemos de Ómega 6.

Onde se encontra o Ómega 6?
Principalmente, nas carnes e nos óleos alimentares. A proporção deveria ser de um de Ómega 3 para três de Ómega 6, mas o que acontece é de um para 20, ou seja, quando precisamos de uma reação inflamatória, vamos precisar desses Ómega 6, mas depois não temos os Ómega 3 em número suficiente para resolver o processo inflamatório.

Quais são as consequências desse desequilíbrio?
Se tenho menos ingestão, menos reservas dos Ómega 3, vou ter dificuldade de fazer essa resolução. E como estamos com cada vez mais estímulos para a inflamação, ela vai acumulando-se de uns processos para os outros. Da neuroinflamação até à depressão major, passando pelo cancro e pela doença associada ao envelhecimento, já sabemos que tudo tem uma componente inflamatória.

De facto, está na base de tudo.
E ainda há a disfunção das mitocôndrias (a parte das células que mais contribui para queimar energia), que está muito associada a variadíssimas doenças, do cancro à obesidade. Portanto, quase tudo vem de um processo inflamatório. Daí que os alimentos antioxidantes e anti-inflamatórios sejam importantes do ponto de vista nutricional.

Como podemos saber qual o nosso nível de inflamação?
Existem vários biomarcadores a que podemos recorrer, mas muitas vezes a manifestação mais evidente do ponto de vista clínico pode ser as doenças autoimunes, que são cada vez mais frequentes entre os 45 e os 55 anos. E isso vem exatamente desta confusão. Perante uma inflamação, o sistema imunitário fica altamente reativo e reage contra ele próprio. 

O que podemos fazer para termos uma “boa” microbiota, fundamental para a saúde?
A microbiota intestinal vai-se formando nos primeiros 2/3 anos de vida. Todos os fatores que atuam durante a vida intrauterina tem uma determinação muito mais acentuada. Trata-se de uma fase de muita vulnerabilidade e de oportunidades, em que também temos a formação do sistema imunitário, e que é influenciada por uma série de fatores – o tipo de parto, exposição ou não a antibióticos, quer durante a vida intrauterina quer durante o primeiro ano de vida, o tipo de alimentação, o stresse, acontecimentos traumáticos, animais domésticos, vida rural ou vida urbana e o tipo de dieta que se vai adotar do ponto de vista familiar.

A partir daí, quais são os fatores que influenciam a microbiota?
A atividade física, o stresse, a alimentação e os medicamentos. Claro que temos muita capacidade de resiliência, ou seja, de resolução, se tivermos uma boa microbiota na primeira fase da vida. Mas essa capacidade vai diminuindo, quanto maior for a agressão. Por exemplo, está mais do que demonstrado que a toma de um antibiótico vai alterar a microbiota intestinal. Isso pode resolver-se ao fim de 4/6 meses, sobretudo se tiver uma boa microbiota da primeira infância. Se não tenho, a capacidade de resiliência será muito menor e o impacto muito maior. Quem diz os antibióticos, diz muitos outros medicamentos, assim como a exposição crónica aos adoçantes não calóricos e aos emulsionantes usados nos produtos light quando se lhes retira a gordura. Há cada vez mais conhecimento de que existem muitos fatores que influenciam a composição deste órgão metabólico endócrino, que vai mudando muito ao longo da vida.

Que comportamentos alimentares erráticos mais comprometem esse órgão?
Só comermos alimentos ricos em fibra de vez em quando, como hortícolas, leguminosas, fruta e cereais. Se não ingerirmos os 25 a 30 gramas de fibra por dia, de forma sistemática, as bactérias, que utilizam sobretudo esses ingredientes, não os vão encontrar, dando oportunidade para outros micro-organismos irem predominando. Temos cada vez mais a noção de que existe uma grande percentagem de proteobactérias na microbiota humana. Trata-se de um grupo patogénico que deveria ser apenas 3% em todo a microbiota, e já encontramos indivíduos com 20 por cento.

Como se chega a esse número?
Estas proteobactérias alimentam-se de proteína de origem animal. E muitas vezes também pode ser consequência de medicação em que fazemos mal a digestão das proteínas.

A culpa está toda do lado da indústria?
Temos de entender que a indústria alimentar e a farmacêutica não nos trazem só coisas más. Pelo contrário, a segurança alimentar, a disponibilidade de alimentos e de novas fórmulas mais adequadas às nossas necessidades é, sem dúvida, uma mais-valia. Confundimos isso com os ultraprocessados, com escolhas erradas. Como já disse, posso preparar um prato cheio de gordura, açúcar e de sal em casa, e ir comprar um alimento processado interessante, como, por exemplo, um kefir ou um iogurte natural. Estes alimentos fermentados são muito importantes na nossa alimentação, mas muitas vezes também são veículos de açúcar ou de adoçantes, se tiverem aroma. Ainda na semana passada fiz esse exercício e encontrei um iogurte de morango com 5% de açúcar, mas claro que também tinha adoçante para chegar ao ponto de doçura que o consumidor exige atualmente. O do lado, de mirtilo, tinha 16% de açúcar.

Qual é melhor?
Nenhum dos dois. Devemos comprar iogurte natural.

E depois juntar-lhe os mirtilos…
Exatamente. Mas há muita desinformação sobre isto, o que gera um preconceito quanto ao processamento – quando cozinhamos, estamos a processar alimentos. Agora, obviamente que a indústria vai fazer aquilo que a oferta procura. Só precisamos de um consumidor mais informado.

O jejum intermitente é mau para nós?
Temos evoluído imenso na questão da cronobiologia, que dá relevância à hora do dia em que comemos. O jejum bem interpretado é aquele que me diz que devemos ter uma pausa alimentar noturna. Mas as famílias fazem grande ingestão alimentar na segunda metade do dia, que é o jantar, que já não é às sete, nem às oito, muitas vezes passa para as nove ou dez. E, depois, procuram a compensação alimentar, porque estão durante todo o dia com uma salada, depois de saltarem o pequeno-almoço. Se comer à noite, vou ganhar tecido adiposo e colesterol. Mas não se trata apenas da questão da adiposidade, nem da resistência à insulina: comer à noite, e ter picos de insulina e chegada de nutrientes às células, também bloqueia os mecanismos de limpeza celular, que identificam um erro e são capazes de o parar. A cronicidade destes maus hábitos acaba por resultar em mutações e em cancro, por exemplo.

Como deve ser a distribuição das refeições?
Ter uma boa primeira refeição, um bom almoço e depois reduzir a quantidade de alimentos à noite, e sobretudo fazê-lo mais cedo.

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