O contra-almirante Carlos Oliveira Silva, então chefe de gabinete do do Chefe do Estado Maior da Armada, usou todas as 25 letras do abecedário para elencar os autos de notícia, embargos e informações sobre as construções ilegais que, há mais de 20 anos, têm cercado o Depósito de Munições Militares NATO, em Fernão Ferro, no Seixal. No final do ofício enviado para a Direcção Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), com o conhecimento da Câmara do Seixal, o militar diria que, apesar de tudo o que tinha descrito, “foi desencadeado qualquer procedimento de licenciamento” das obras ilegais, nem muito menos houve lugar à “demolição das inovações embargadas”, pedindo à DGRN para desencadear a ordem, a qual, por lei, está reservada ao ministro da Defesa.
O documento do contra-almirante (“Licenciamento de construções em áreas de servidão militar”), com data de 19 de abril de 2021, resume, com alguma clareza, todo o histórico de uma zona, onde as construções ilegais foram proliferando ao longo dos anos, albergando já perto de 300 famílias, sem qualquer medida concreta para as travar, apesar do perigo de morar colado a um paiol de munições NATO. Já outro documento, com origem na Marinha, revela que, em 2017, foram emitidos oito despachos de embargo; no ano seguinte, 13 e, em 2019, dois, mas sem qualquer consequência prática.
“Isto é um problema que se arrasta há mais de 20 anos: as construções foram surgindo, o Estado e as várias instituições deixaram andar. Agora é de difícil resolução”, refere Bernardino Milheiras, presidente da Associação de Proprietários de Pinhal das Freiras e Quinta da Lobateira, que há anos procura uma solução para a situação. “Para a zona de servidão militar ficou estabelecido que o solo era apenas de uso agrícola. Porém, as construções apareceram, as famílias instalaram-se e até passaram as casas de pais para filhos”, descreve ainda Bernardino Milheiras.
A servidão militar – que não afasta a propriedade privada dos terrenos, impondo-lhes, isso sim, um ónus – foi estabelecida em 1959, posteriormente alterada em 193 e estabilizada em 2017, através do Decreto-lei 27/2017 de 14 de agosto. O principal objetivo, como refere este último documento, prende-se com a garantia de “segurança de pessoas e bens na zona confinante” com o depósito militar, mas “também estabelecendo as medidas de segurança indispensáveis à execução das funções” do paiol. Em resumo, é toda a uma área de segurança para evitar roubo de material militar, à semelhança do que aconteceu, em 2017, no paiol de Tancos.
Vários documentos do Ministério da Defesa, a que a VISÃO teve acesso, comprovam que os principais responsáveis dos últimos anos (ministros e secretários de Estado) tiveram conhecimento direto do que estava em causa. Mas, só após o furto de material de guerra nos paiós de Tancos, em 2017, é que se intensificou a atividade de fiscalização e embargo de obras. Aliás, foi o Depósito de Munições da Nato que albergou o material militar existente em Tancos, após o furto.
Um email de abril de 2019, enviado por Alberto Coelho, antigo diretor-geral da Defesa e um dos acusados do processo “Tempestade Perfeita, para Paulo Lourenço, chefe de gabinete do então ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, após um despacho deste último com uma ordem de demolição de construções ilegais, descreveu o que estava em causa:
“Tem por objetivo este mail sinalizar uma situação que poderá necessitar de grandes cuidados em termos de comunicação.
Assim, na sequência da publicação ocorrida hoje em Diário da República dos Despachos de demolição de construções ilegais na zona de servidão do Depósito de Munições Nato de Lisboa (DMNL), que se anexam, foi consultada a Direção de Infraestruturas da Marinha, para tomar conhecimento de qual será a linha de ação que aquele Ramo irá adotar.
Soubemos que a Marinha tenciona notificar os proprietários para, em sede de audiência prévia, dizerem o que tiverem por conveniente em sua defesa, num prazo não superior a 15 dias. Findo este prazo e se nada for dito, restará saber se a demolição por parte da Marinha avançará de facto ou não.
Daqui prevejo que poderão ocorrer duas consequências:1. Se o Chefe do Estado-Maior da Armada optar por nada fazer tal será um sinal inequívoco junto quer dos visados pelos autos, quer sobretudo junto dos demais moradores/infratores de que a infração cometida não teve qualquer consequência – não sendo o prevaricador punido será um incentivo para que novas obras comecem a surgir de forma “pandémica”;
2. Se o Chefe do Estado-Maior da Armada optar pela demolição, com meios da Marinha ou eventualmente contratando serviços externos, será de esperar uma grande cobertura mediática. Nesta situação é possível que os visados questionem porque, de entre tanta obra clandestina, terão sido eles os únicos visados.
Neste ultimo caso sugiro que os responsáveis de comunicação, quer da Marinha, quer dos Gabinetes, coordenem entre si uma posição única.
A DGRDN está como sempre ao dispor para o que for necessário”
Da parte do secretário de Estado Jorge Seguro Sanches verifica-se alguma contenção na tomada de uma decisão mais firme: ora apenas solicitava à DGRN um “ponto de situação atualizado”, ora pedia para “preparar o processo de proposta de atuação”
Quase um ano após esta comunicação, em fevereiro de 2020, Alberto Coelho enviou nova informação sobre o processo da área de servidão militar para o então secretário de Estado da Defesa, Jorge Seguro Sanches. Num extenso email, o antigo responsável da DGRDN começou por dizer que o ministério da Defesa não estava “isento de culpa neste processo, tendo em conta que deixou, ao longo de muitos anos, que fossem construídas ilegalmente habitações e outro tipo de construções em área de servidão, não tendo actuado na devida altura”.
“Desde os anos 90 que começamos a rececionar pequenos pedidos de autorização para a colocação de infraestruturas de apoio à agricultura, tendo sido emitidos alguns pareceres favoráveis pela Marinha, que mais tarde se vieram a tornar em construções e habitação. Ninguém atuou em tempo, nem a Câmara Municipal do Seixal (por serem construções ilegais), nem a Defesa Nacional ao verificar que em terrenos em área de servidão militar estavam a ser ocupados por construções”, referiu ainda Alberto Coelho, acrescentando que três despachos de demolição assinados por João Gomes Cravinho não tinham sido cumprido, porque “a autoridade competente para a sua execução (a Marinha) ainda não materializou nenhum, o que poderá dar um sinal de alguma impunidade”.
O diretor geral terminaria o documento com um aviso:
“No nosso entender, o melhor curso de ação seria solicitar à Marinha um levantamento exaustivo de todas as construções ilegais (que todos os dias crescem) e suas caraterísticas, com indicação das que conflituam realmente com os depósitos de munições. Perante este levantamento deverão ser identificados os casos prioritários e atuar à semelhança do que já foi feito noutras situações como os casos da Fonte da Telha e da Ilha da Culatra, da responsabilidade do Ministério do Ambiente. Esta solução exige não só disponibilidade financeira, como e sobretudo, uma grande vontade política que aguente o eventual impacto na opinião pública.
Permita-me reforçar que esta situação poderá tornar-se potencialmente gravosa pois segundo os representantes da Marinha, presentes nas duas reuniões, em caso de um acidente catastrófico, o impacto será enorme e seguramente com grande perda de vidas humanas.”
Em 2017, o PCP procurou uma solução, colocando à votação, no Parlamento, de um projeto de resolução, que recomendava ao governo a criação de um Grupo de Trabalho “no âmbito da viabilização do processo de reconversão urbanística, na área abrangida pela servidão militar” do depósito de munições da NATO. Com a “geringonça” em marcha, o tal grupo de trabalho foi criado, com oito elementos: gabinete do secretário de Estado da Defesa; DGRDN; Marinha, Câmaras do Seixal e Sesimbra; Ministério do Ambiente e representantes de duas associações de proprietários.
De acordo com a ata da primeira reunião, a que VISÃO teve acesso, ficou claro que as posições eram inconciliáveis: da parte da Marinha, representada pelo comandante Pereira Cavaco, foi referido que a escolha do local para a construção do depósito teve em consideração, precisamente, a ausência de pessoas e bens e que não competia a este ramo das Forças Armadas executar a deslocação da mesmas. O militar sublinhou existir um “grau de perigosidade para as populações devido à atividade do depósito”.
Nesta primeira reunião, a 27 de fevereiro de 2019, Jorge Cabral, representante da autarquia do Seixal, declarou não ter nenhuma solução e que, por isso, estava ali de forma a tentar encontrar uma que salvaguardasse o direito das populações à habitação. Quanto à fiscalização, referiu existir, à época, um défice de fiscais. Por sua vez, Vera Carvalho, adjunta do ex-secretário de Estado Jorge Seguro Sanches, sublinhou não competir às Forças Armadas embargar obras, afastando desde logo a deslocalização do depósito de armas.
O Grupo de Trabalho ainda reuniria, uma segunda vez, a 15 de maio de 2019, mas sem dar passos significativos. Fi o próprio diretor-geral da Defesa, Vasco Hilário (que sucedeu a Alberto Coelho, após o caso do Hospital Militar de Belém) que, numa informação para a secretaria de Estado da Defesa se mostrou descrente com o trabalho já produzido: “Estamos perante duas realidades que não podem coabitar no mesmo espaço geográfico: civis e respetivas habitações ao lado de um depósito de munições com a dimensão do Depósito de Munições da NATO de Lisboa”, concluiu Vasco Hilário, admitindo que a única solução, “estratégica”, na sua opinião, passaria “relocalização” do depósito de munições, “extinguindo assim a servidão militar”. Isto porque, fez questão de referir, “as autarquias envolvidas e as associações de moradores não têm demonstrado ter a agilidade que a situação impõe”. “Entretanto, chegou a Covid-19 e as reuniões foram interrompidas”, recorda Bernardino Milheiras.
A Câmara do Seixal avançaria, entretanto, com a criação da Unidade Operativa de Planeamento e Gestão 63 (UOPG), procurando dividir “o espaço da servidão militar, cuja utilização do solo é apenas para fins agrícolas e a criação de parcelas de terreno para as pessoas construírem casa, saindo da área da servidão”, explicou Bernardino Milheiras. Porém, a Associação de Moradores está um pouco descrente nesta medida: “A maioria das famílias não tem dinheiro para construir uma casa nova. Os novos terrenos até podem ser cedidos, mas depois não conseguem construir. Mesmo que vendam os terrenos na servidão militar, o seu valor não chega para construir uma casa”, explica Bernardino Milheiras. Recentemente, a Associação de Moradores celebrou dois protocolos com a Câmara do Seixal, de forma a melhorar os arruamentos da UOPG: a autarquia fornece as máquinas, os moradores pagam os materiais.
Entretanto, segundo Bernardino Milheiras, nos últimos meses verificou-se uma chegada de novos habitantes. “Já alertamos as autoridades para a construção de barracões que estão a albergar dezenas de imigrantes. Hoje, temos um problema com a habitação e todas as semanas vemos novas pessoas a chegar aqui e a viver amontoados em barracões”.
A VISÃO questionou a Câmara do Seixal sobre a existência ou não de uma solução para as populações da Quinta da Lobateira e Pinhal de Frades, mas não obteve resposta.