O juiz desembargador Rogério Martins não tem dúvidas: todas as normas que regulam o “sistema de distribuição informática” dos processos nos tribunais são inconstitucionais. Por isso, a 21 de junho, chamado a presidir a um ato de distribuição, o magistrado do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN) recorreu a um saco com bolas para distribuir vários processos que deram entrada naquela instância, recusando-se a utilizar o sistema informático disponibilizado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ).
De acordo com a ata da diligência, a que a Visão teve acesso, Rogério Martins começou por explicar que, após ter sido nomeado pela presidente do TCAN, Fernanda Esteves, para presidir ao ato de distribuição de processos, solicitou ao IGFEJ “informações sobre o algoritmo da distribuição”, o qual, para si e “para os demais juízes é completamente desconhecido e se encontra no segredo do IGFEJ”.
O desembargador refere que, na resposta, o instituto do ministério da Justiça que gere o sistema informático dos tribunais invocou, num primeiro momento, “segredo de Estado”, acabando por “não dar satisfação ao que se pretendia, refugiando-se em considerações jurídicas e generalidades”, acrescentou.
Isto levou a que Rogério Martins insistisse no pedido de esclarecimentos, “com a advertência de que a senhora presidente do IGFEJ”, Maria Robias Sá, “incorreria em crime de desobediência, caso não prestasse a informação que lhe tinha sido ordenada”. A resposta acabaria por chegar, mas foi insuficiente para clarificar as dúvidas do desembargador, que só percebeu “apenas parcialmente quais são os critérios e variáveis do algoritmo”.
Segundo o magistrado, o critério de distribuição é uma norma dos funcionamento dos tribunais e, por isso, faz parte da reserva legislativa da Assembleia da República. “Não é, portanto, permitido ao legislador passar um ‘cheque em branco’ a qualquer entidade, como seja o IGFEJ” ou o próprio presidente do tribunal “para definir livremente os critérios de distribuição”, referiu, numa alusão à Lei 56/2021, que redefiniu o modo de distribuição dos processos nos tribunais, e à portaria 86/2003 que a veio regulamentar.
Depois de descrever vários exemplos sobre a “falta de transparência, objetividade e equidade” da distribuição feita por meios informáticos, Rogério Martins considerou que a “responsabilidade pela distribuição” é do “juiz que preside”, mas sobre o qual, com o novo sistema, “recai um atestado de desconfiança passado pelas novas regras de distribuição, que incluem a faculdade de fiscalização do ato pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados”.
Conclusão: todas as normas que “regulam o novo sistema de distribuição são inconstitucionais, por violarem o princípio da separação de poderes e independência dos tribunais”, sentenciou o desembargador, conduzindo o ato de distribuição de processos a que estava a presidir “através da extração de bolas de um saco”.
Ministério Público obrigado a recorrer
A declaração de inconstitucionalidade da lei e da portaria vai obrigar o Ministério Público a recorrer para o Tribunal Constitucional, de forma a que esta instância se pronuncie sobre a “conformidade dos diplomas com a Constituição”, como explicou à Visão Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
E esta não é a primeira vez que os juízes se queixam de ingerência do poder político nos tribunais. Na passada semana, um ofício da diretora-geral da Direcção Geral de Administração da Justiça (DGAJ), a juíza desembargadora Isabel Namora, causou algum alvoroço, uma vez que emitia orientações para os tribunais realizaremas diligências necessárias para a tramitação dos processos que possam ser alvo da amnistia decretada pelo Parlamento para assinalar a visita do Papa Francisco.
As instruções mereceram o repúdio dos magistrados, com diversos presidentes de comarca a insurgirem-se e a Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP) a recordar que esta matéria é competência jurisdicional. Já o Conselho Superior da Magistratura (CSM) reuniu-se de urgência na quarta-feira e apontou uma “inusitada interferência nos poderes” dos presidentes das comarcas e nas competências dos juízes desses processos.