Um dos problemas da solidão é de natureza psicológica, nomeadamente na relação que existe com a memória. Com a solidão, adensam-se as memórias, mas não são as memórias boas. São as que carregam sofrimento. No meu caso, é de sofrimento psicológico que se trata, em função de vivências pessoais e profissionais.
Habituei-me a viver na solidão e com a solidão. Em criança, sem irmãos, ia para as aulas, sempre de manhã, e, no regresso a casa, tinha a companhia da minha avó materna, a minha avó Susana. Ela deu-me colo e a ternura possível para uma mulher com quem a vida também não foi generosa. A minha avó era analfabeta. Era cerzideira de profissão. Em meados do século passado, quando as meias se rasgavam, as senhoras de classe alta mandavam arranjar as meias às cerzideiras. Era um trabalho minucioso. A minha avó apanhava os fios destrinçados e tinha de juntá-los de novo para que a textura do tecido voltasse a ficar igual à de antes do rasgão. Era muitas vezes a minha avó que me levava à escola. Apanhávamos o Eléctrico 6, no Monte dos Burgos, e lá seguíamos até à Rua Nossa Senhora de Fátima, onde eu frequentava o Ensino Preparatório. À hora de almoço, a minha avó preparava a refeição de que eu mais gostava em pequena: arroz de tomate com linguadinhos fritos. Era com a minha avó que eu falava, mas não muito. Bastavam-nos os afectos. Ela dizia: “A minha menina” e eu sabia que era a menina dos seus olhos tristes. Depois, eu fechava-me na sala pequena de uma casa também ela muito pequena e ali ficava toda a tarde agarrada aos livros, estudando o mais que podia, falando em voz alta para memorizar mais facilmente. De vez em quando, apareciam as minhas vizinhas, da minha idade, pedindo-me ajuda em explicações. Ao fim do dia, podia brincar com os meus amigos até a minha mãe e os meus tios chegarem das fábricas. E eram assim os meus dias. No fundo, eu era uma menina só e penso que nunca o deixei de ser.

Judite de Sousa
— Arena (Penguin) €13,90, pag. 208