Com o seu quê de poético, Lula da Silva dizia, a certa altura, que tinha arranjado uma namorada enquanto esteve na cadeia. É uma maneira de ver as coisas, mas não corresponde à verdade completa, conta à VISÃO Margarida Quadros, socióloga como Rosângela Lula da Silva, e amiga próxima da nova primeira-dama do Brasil desde os tempos de faculdade, na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, nos anos 1980. Embora involuntariamente, seria Chico Buarque a acender o rastilho do romance, que acabou em casamento, de Lula e Janja (o já popularizado diminutivo de Rosângela).
Estamos nas vésperas do Natal de 2017, e a Escola Nacional Florestan Fernandes, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), inaugura um campo de futebol, em Guararema, São Paulo. Na programação de quatro jogos, há um especialmente aguardado pela assistência: Amigos de Chico Buarque vs. Veteranos do MST, partida que terminaria empatada a cinco golos. Viúvo há dez meses (a sua segunda mulher, Marisa, morrera em fevereiro, aos 66 anos, vítima de um AVC), já julgado e condenado, por corrupção, a quase dez anos de cadeia pelo juiz Sérgio Moro (hoje ex-magistrado e senador eleito pelo Estado do Paraná), e à espera da chegada da ordem de prisão, Lula, muito vitoriado pelos espectadores, alinhou pela equipa de Chico Buarque.
“A brincar, ‘Janja’ diz que atirou a um [Chico Buarque] e acabou acertando noutro [Lula]”, conta a amiga Margarida Quadros
“A Janja sempre foi muito fã do Chico”, conta Margarida Quadros. “E foi a essa inauguração do campo de futebol para o conhecer, tinha a oportunidade de o ver fora do palco”, acrescenta. “No final, ela foi falar com Chico, que a apresentou ao Lula. A brincar, Janja diz que atirou a um e acabou acertando noutro.” No início do ano seguinte, 2018, o casal Lula-Janja “oficializou” o namoro junto dos mais próximos, durante uns dias de férias numa casa de praia de uma amiga, no litoral de São Paulo. Até que, 50 dias depois, a 7 de abril, o então juiz Moro emitiu a ordem de prisão de Lula.
“Você tem alguém aqui fora”
Junto à sede da Polícia Federal de Curitiba, onde se situava a cela para a qual Lula foi atirado, militantes do PT e ativistas de movimentos sociais montaram um acampamento, em que gritavam “Bom dia, Presidente”, “Boa tarde, Presidente”, “Boa noite, Presidente”, de maneira a que ele ouvisse. Mas a Vigília Lula Livre oferecia mais – tinha um palco por onde passaram numerosos artistas (como Chico Buarque ou Gregório Duvivier) e intelectuais (como Noam Chomsky ou Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em 1980).
Assumida feminista, Rosângela fez questão de cozinhar a comida com que Lula se alimentou durante os 19 meses em que esteve preso, e de lhe lavar e passar a roupa. Que feminista era esta? – perguntamos a Margarida Quadros. “Parece uma contradição, mas não é”, responde a socióloga. “Ela fazia as coisas que podia, e as enviava para ele, como uma forma de o trazer, com atitudes práticas e pelo afeto, para mais próximo, e de lhe dizer: ‘Você tem alguém aqui fora’.” Era também, acrescenta, “uma maneira de quebrar um pouco a solidão em que ele estava, naquele lugar horrível, por mais visitas diárias que tivesse, e por mais que ouvisse as pessoas lá fora a manifestarem-se pela sua liberdade”.
Margarida Quadros recorda que Rosângela “ainda trabalhava oito horas por dia, participava em tudo o que se organizava na vigília, cuidava da mãe, que sofria de Alzheimer, além de dar assistência ao Lula”, que visitava no rol das pessoas listadas como “família”. À época, diz agora a socióloga a sorrir, “o dia dela parecia ter muito mais do que 24 horas”. O certo é que, apesar da adversidade da situação, o casal (com 21 anos de diferença – Lula tem hoje 77 anos e Rosângela, 56) não deixou a chama esmorecer. Pelo contrário: trocaram largas centenas de cartas e Lula arranjava sempre quem entregasse por ele flores a Rosângela, que as mostrava, enlevada, na sua conta do Instagram, sem identificar o admirador. O público só teve um sinal de que algo se passava, neste particular, quando, a 18 de maio de 2019, Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro dos governos dos Presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, foi visitar Lula. À saída, declarou que o amigo estava apaixonado e que o seu primeiro projeto, mal saísse da prisão, era casar-se.
Até que, a 8 de novembro seguinte, o Supremo Tribunal Federal ordenou a libertação de Lula, por ilegalidades processuais e “parcialidade” do então juiz Sérgio Moro, com a inerente devolução dos direitos políticos. Após sair da sede da Polícia Federal de Curitiba, o líder histórico do Partido dos Trabalhadores (PT) dirigiu-se diretamente à vigília, “sempre com o braço sobre o ombro de Janja, praticamente arrastado até ao pequeno palanque”, onde, depois de um breve discurso, surpreendeu Rosângela com um “beijo cinematográfico”, como relata o escritor brasileiro Fernando Morais na sua biografia de Lula, publicada há poucos meses em Portugal (ed. Objetiva). Não havia melhor cenário para desvendar o segredo amoroso.
Acordar a cantar
Mais nova de dois irmãos, Rosângela é filha do comerciante reformado José Clóvis da Silva, 82 anos, que ainda vive em Curitiba, e da dona de casa Vani da Silva, já falecida. Pode dizer-se que é uma militante histórica do PT, que o então líder sindical Lula da Silva e os seus companheiros operários da cintura industrial de São Paulo fundaram em fevereiro de 1980. Rosângela filiou-se no PT quando ainda estava a terminar o ensino secundário, aos 17 anos, em 1983.
Margarida Quadros só conheceria aquela rapariga “espontânea e dinâmica” na faculdade, e ambas trabalhariam, ainda antes de concluírem a licenciatura em Sociologia, nas áreas da saúde e ação social da Prefeitura Municipal de Curitiba. O Brasil tinha saído, em 1985, de duas décadas de uma repressiva ditadura militar e, lembra a socióloga, “era preciso reconstruir o país – acudir a emergências sociais na habitação, no saneamento básico, na saúde e por aí adiante”.
Depois, Rosângela casou-se com um professor de História e mudou-se para o interior do Paraná. O enlace terminaria em divórcio e sem filhos. Regressada a Curitiba, foi trabalhar como assessora de um deputado do PT na Assembleia Legislativa do Paraná. E depressa se tornou coordenadora da assessoria do partido na assembleia. “Foi importante para ela esse contacto com os parlamentares, o legislativo e os bastidores da política”, diz Margarida Quadros.
A amiga acrescenta que Rosângela sempre transportou os seus valores políticos para a atividade profissional. Por exemplo, em duas barragens em que trabalhou – Barra Grande e Itaipu -, empenhou-se em programas de melhoria das condições de vida das populações afetadas por aquelas construções e dos trabalhadores com os salários mais baixos, “sem perder de vista o fortalecimento organizativo das mulheres”.
Rosângela já disse que quer “ressignificar o papel da primeira-dama”, tradicionalmente uma figura decorativa – ou uma “ajudadora do marido”, como se definiu a sua antecessora, Michelle Bolsonaro. “Ela não vai ser aquela senhora que fica no palácio a organizar jantares”, antecipa Margarida Quadros. “Vai arregaçar as mangas e trabalhar. Irá articular-se com os ministérios, as políticas, os movimentos sociais, em primeiro lugar na questão da fome, que assola novamente o Brasil, e das famílias sem casa, que moram na rua.”
Mas aqui intromete-se o facto de Lula ir governar, a partir do próximo dia 1, um país politicamente partido ao meio e com um Congresso hostil. Quão diplomática Rosângela consegue ser? “Ela manterá a firmeza que a caracteriza, até porque tem o apoio de Lula para isso, embora continue a ser uma pessoa muito aberta, isso é inegável”, responde a socióloga. Que acrescenta: “Não há como forjar uma outra personalidade. Mas a franqueza e a forma direta como a Janja se relaciona com as pessoas há de equilibrar-se com uma ironia subtil que é muito dela e as coisas hão de enquadrar-se. O recado fica dado, com o mesmo efeito.”
A propósito, Margarida Quadros sublinha “uma marca da forma como ela leva a vida: levanta-se, de manhã, alegre e a cantar – assim, do nada!” E “tem sempre uma tirada ou uma piada para dizer”. Ou seja, “equilibra a seriedade com essa leveza”.
Antes de assistir, em dezembro de 2017, ao jogo de futebol em que Lula alinhou pela equipa capitaneada por Chico Buarque, Rosângela apenas se cruzou à distância com o futuro Presidente do Brasil (de 2003 a 2010) quando ele, na década de 1990, se deslocou a Curitiba, numas chamadas “Jornadas de Cidadania”. Viúvo duas vezes, Lula casou-se com Rosângela a 18 de maio passado, numa cerimónia íntima com poucos convidados. O casal só gozou a lua-de-mel após Lula vencer, à tangente, Jair Bolsonaro, na 2.ª volta das Presidenciais brasileiras, a 30 de outubro último.
Agora, diz Margarida Quadros, Rosângela tem pela frente “muito machismo, muita misoginia, muita estranheza, porque as mulheres dos presidentes anteriores não se envolviam nas questões políticas”. Resume a socióloga: “Precisa mesmo de muita coragem para enfrentar tudo isso.”