Eram 9 da manhã quando Juliane recuperou de vez a consciência. Estava sozinha, debaixo de uma fila de cadeiras, encharcada e coberta de lama porque devia ter chovido a cântaros o tempo todo. Se o seu relógio de pulso continuava a funcionar corretamente, tinham passado quase 24 horas desde que vira chamas num dos motores do avião, e a mãe lhe dissera, com toda a calma: “Agora, acabou tudo.”
Naquele momento, as duas iam já de mãos dadas e de olhos nos relâmpagos a riscarem o céu que se pusera escuro de repente. A turbulência provocada pela tempestade era tanta que o avião abanava como se fosse um brinquedo, fazendo saltar as portas dos compartimentos superiores.
“Sacos, flores, presentes embrulhados e casacos caem com força sobre nós; tabuleiros com sanduíches voam pelo ar; bebidas semi-acabadas entornam-se nas nossas cabeças e ombros. Todos estão assustados, e ouço gritos e choros”, escreveria Juliane, no livro Als ich vom Himmel fiel (quando eu caí do céu, à letra), publicado inicialmente na Alemanha, em 2011.
Foi então que, no meio daquele caos, o som dos motores se sobrepôs aos gritos e aos choros dos outros passageiros, e o avião começou a descer a pique. Depois, só “um silêncio estrondoso”, recordou numa entrevista ao El País, que deu quando o seu livro de memórias foi traduzido para espanhol.
“Estou a cair, e o cinto de segurança aperta-me tanto a barriga que me dói e não consigo respirar. Nos meus ouvidos está o rugido do ar. Antes mesmo de poder sentir medo, perco novamente a consciência”, escreveu. “A próxima coisa que me lembro é de estar pendurada de cabeça para baixo enquanto a selva vem na minha direção, com movimentos giratórios lentos. Não, não está a vir na minha direção; estou a cair na sua direção. As copas das árvores, verdes como erva, densas, lembram-me cabeças de brócolos. São imagens desfocadas. É como se visse tudo através de um nevoeiro.”
A fila de cadeiras onde Juliane se sentara com a mãe e um homem corpulento aterraria provavelmente na folhagem densa, com as tais cabeças de brócolos a amortecerem o impacto. Ao longo das 19 horas seguintes, ela desmaiaria e acordaria várias vezes, só ficando totalmente lúcida na manhã seguinte, dia de Natal.
Pelas dores que sentia, partira uma clavícula e torcera um pé. Tinha um olho inchado e cortes profundos num braço e na barriga de uma perna. Tudo ferimentos “milagrosamente” ligeiros. Pior era não saber dos óculos (sofria de miopia) nem de uma das sandálias que calçara para fazer conjunto com o vestido de verão curto e sem mangas, agora com o fecho éclair nas costas estragado.
“O meu primeiro pensamento foi: ‘Sobrevivi a um acidente de avião’, contou num podcast da BBC, Outlook, em 2012.
A jovem, então de 17 anos, ainda não o sabia, mas seria a única sobrevivente de 92 pessoas (86 passageiros e 6 tripulantes) que, no dia 24 de dezembro de 1971, tinham embarcado em Lima rumo a Pucallpa, uma cidade portuária localizada ao longo do rio Ucayali, na selva peruana.
De Pucallpa era suposto Juliane e Maria seguirem para Panguana, a estação de investigação biológica no centro da Amazónia que os seus pais, ambos zoólogos alemães, tinham fundado em 1968. Era lá que Hans-Wilhelm Koepcke as esperava para festejarem juntos o Natal e a passagem do ano.
“Reconheci os sons da vida selvagem de Panguana, dei-me conta de que estava na mesma selva”, recordaria Juliane no ano passado, ao The New York Times, cinquenta anos depois do “milagre”, como lhe chamaram sempre os jornalistas. “O que senti não foi medo, mas um sentimento de abandono.”
Entre os cantos dos pássaros, o coaxar das rãs e o zumbido dos insetos, que reconhecia do ano e meio passado em Panguana, gritou pela mãe, mas só ouvia os barulhos da selva. Maria não estava em lado nenhum. Juliane procurou-a um dia inteiro, até que deu com um pequeno riacho e decidiu segui-lo – o que seria crucial para a sua sobrevivência, como se vai ler.
As duas tinham embarcado na véspera de Natal porque na noite anterior Juliane tinha querido ir ao baile de finalistas da escola alemã-peruana Alexander von Humboldt, em Lima. A mãe, que estava a trabalhar na capital, preferia ter regressado a Panguana uns dias antes, mas percebera a importância do momento. A miúda andara a poupar para comprar o seu primeiro vestido comprido, aquela era a grande oportunidade de o usar.
O pai pedira-lhes para não voarem na Lansa. A Líneas Aéreas Nacionales S.A. tinha má reputação por causa do tipo de aviões em que operava: o L-188 Eletra, um avião turbopropulsor construído pela Lockheed que registava problemas desde o seu lançamento, em 1957.
Em 1970, um avião da Lansa tinha caído pouco depois de sair de Cuzco, matando 99 das 100 pessoas a bordo. Havia inclusive um ditado que dizia “Lansa se lanza de panza” (lança-se de barriga).
Mas Maria não conseguira bilhetes noutra companhia aérea. A alternativa teria sido esperar mais um dia, ou mesmo dois. “‘Ah’, disse ela, ‘nem todos os aviões se vão despenhar’, recorda a filha.
O aeroporto de Lima estava um caos e o voo, com uma duração prevista de menos de uma hora, iria atrasar-se sete horas. No meio da multidão, o realizador alemão Werner Herzog tentava conseguir lugares para ele e para a sua equipa de filmagem num avião rumo a Pucallpa. Queria chegar rapidamente à selva, para filmar cenas para o seu filme Aguirre, a Ira de Deus. Muitos anos depois, contará que tentou tudo para embarcar naquele mesmo voo, sem êxito.
“Quando finalmente vemos o avião, achamo-lo magnífico”, recordará Juliane. “Aos meus olhos, está como novo. No entanto, está longe disso, como descobriremos mais tarde. Este tipo de avião foi de facto concebido para ser utilizado em regiões desérticas e já tinha sido retirado de serviço nos Estados Unidos há anos porque tem problemas para resistir à turbulência. E não era novo, mas montado a partir de peças sobressalentes de outros aviões. O seu nome é ‘Mateo Pumacahua’, e isso parece-me memorável, pois é o nome de um herói nacional, que lutou pela independência do Peru e que acabou por ser esquartejado pelos espanhóis.”
Passa pouco das onze da manhã quando os passageiros do voo 508 são finalmente chamados e as Koepcke, mãe e filha, sentam-se na fila 19, a duas filas da traseira do avião. Maria vai no lugar do meio, Juliane pedira para ir à janela para ir espreitando a paisagem.
A primeira meia-hora de voo seria calma, com direito a sanduíches e bebidas. Gradualmente, as nuvens começaram a escurecer e a turbulência aumentou. Segundo relatórios da torre de controle e da caixa negra do avião, foi então que um raio atingiu o tanque de combustível na asa direita. O facto de os Electra não terem sido desenhados para voar com muita turbulência, por causa da fuselagem extremamente rígida, fez com que a asa se partisse.
Em casa, na selva
O avião acabou por se desintegrar no ar, quando voavam a cerca de três mil metros. Ainda hoje ninguém tem a certeza de como Juliane sobreviveu à queda, mas a própria costuma avançar quatro teorias: a poderosa corrente de ar da tempestade retardou o “mergulho”; a fila de cadeiras funcionou como a “asa” de uma semente de Ácer-doJapão, girando ao cair (na verdade, esta explicação é de Herzog); as árvores onde ela caiu eram particularmente densas; e, por último, a fila de cadeiras escorregou nos ramos das árvores como se fosse um barco, aterrando de um modo relativamente suave no chão da floresta tropical.
Juliane teve sorte a cair e teve sorte por se sentir “em casa”. Além de não ver a selva como um inferno verde, sabia que uma pessoa perdida deve procurar ajuda rapidamente e que, a haver gente perto, ela estará junto de um curso de água.
Também sabia que as piranhas só são perigosas em águas paradas ou pouco profundas, por isso iria nadar sempre no meio do rio que encontrou depois de seguir um riacho. Ou que não devia comer nada, porque muito do que crescia na selva era venenoso, mas que a água dos ribeiros era segura.
O facto de a mãe, Maria Emilie Anna von Mikulicz-Radecki Koepcke, ser uma ornitóloga experiente também se revelou importante na sua sobrevivência. Tinha sido ela a ensinar-lhe que os hoazins (jacu-cigano, cigana ou aturiá, nome científico Opisthocomus hoazin) só se encontram perto de rios maiores, em águas abertas. Quando Juliane se apercebeu de que o chamamento dessas aves vinha do lado contrário para onde ela estava a dirigir-se, deixou o riacho e foi no seu encalço.
Seria uma decisão contra-intuitiva, recordou anos mais tarde, mas que a deixou muito orgulhosa de si própria quando, vários dias mais tarde, encontrou um grande rio.
Juliane costuma dizer que a floresta lhe salvou a vida. “Sem as folhas das árvores e arbustos a amortecerem a minha queda, nunca poderia ter sobrevivido ao impacto no solo. Quando eu estava inconsciente, ela filtrou-me do sol tropical. E mais tarde ajudou-me a encontrar o meu caminho para sair da natureza intocada de volta à civilização”, escreveu no seu livro de memórias.
“Se eu tivesse sido uma criança pura da cidade, nunca teria conseguido voltar à vida”, recordaria. “Tinha a sorte de já ter passado alguns anos da minha jovem vida na ‘selva’ (hoje. o termo ‘floresta tropical’ é preferido a ‘selva’, mas na altura usávamos as duas palavras).”
Em 1968, os seus pais tinham realizado o sonho de fundar uma estação de investigação biológica no meio da floresta tropical peruana. Na altura, Juliane, que tinha 14 anos, não ficou muito entusiasmada com a ideia de deixar para trás os seus amigos em Lima e mudar-se com eles e o cão, o pastor-alemão Lobo, para “o meio do nada”.
Era assim que ela imaginava Panguana, embora desde pequena acompanhasse os pais nas suas expedições. A mudança para a selva seria, na verdade, uma aventura, e Juliana apaixonou-se imediatamente por ela mal chegou.
“Adorei a selva”, escreveu, “mas aguardava com expetativa cada visita à cidade, porque podia ir novamente ao cinema com os meus amigos ou beber um batido com eles no meu bar preferido. E, quando regressávamos, estava feliz por voltar a ser a ‘rapariga da selva’.”
Ser uma “rapariga da selva” incluía viver debaixo do mesmo teto com morcegos vampiros, evitar os jacarés nos rios, andar de canoa escavada, sacudir cuidadosamente as botas de borracha de manhã para o caso de uma aranha venenosa se ter enfiado lá dentro e ter cuidado com as muitas cobras, porque a floresta então chegava até às casas. “O que os meus pais me ensinaram nessa altura sobre viver na natureza ia salvar-me a vida.”
Nesses primeiros tempos dos Koepcke na selva, a cabana da família não tinha paredes. A casa ficava sobre palafitas, por causa dos insetos e das cobras, e também para que não ficasse inundada durante a estação das chuvas. Mais tarde, ganharia paredes feitas de tábuas de madeira de palma, como é comum nas cabanas nativas.
O telhado seria coberto com ramos de palmeira. Havia dois quartos, um maior para o casal e um mais pequeno para Juliane, além de uma espécie de alpendre que servia de sala de jantar e de escritório. No início, dormiam todos em sacos-cama e em colchões no chão, que era feito da casca dura e grossa de palma. Mais tarde, teriam camas normais com colchões e redes-mosquiteiras porque havia muitas aranhas e, à noite, os insetos podiam cair do telhado.
Se é verdade que Juliane aprendera muito com a passagem por Panguana, herdara a tenacidade do seu pai.
Hans-Wilhelm Koepcke e Maria tinham-se conhecido em 1947, na Universidade de Kiel, na Alemanha, onde eram ambos se doutoraram em Biologia. Ainda nesse ano, ele escreveu para a Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, a pedir um emprego porque queria estudar ecossistemas ricos em biodiversidade como os da Amazónia. Um ano depois, receberia um convite para trabalhar no Museu de História Natural Javier Prado, que pertencia à universidade.
Chegar ao Peru no pós-guerra não ia ser fácil. As viagens eram complexas, sobretudo para um alemão, não havia passaportes nem facilidade em obter vistos. Koepcke gastaria, por isso, dois anos a chegar ao Peru.
Depois de atravessar a Áustria, Itália, França e Espanha, a pé e de boleia, e de ter estado num campo de prisioneiros italiano, tentou embarcar sem êxito em Génova e em Nápoles. Acabou por entrar clandestinamente num navio em Cádiz, ficando novamente preso em Santa Cruz de Tenerife. Só mais tarde conseguiria viajar de forma legal, rumo ao Recife, no Brasil, e daí seguir de autocarro até ao Peru, onde chegou em maio de 1950.
Quando se apresentou no museu, dois anos depois de aceitar a oferta de trabalho, disseram-lhe que o lugar já estava – naturalmente – ocupado. Ofereceu-se, então, para administrar a coleção de ictiologia do museu. Tinha-se doutorado com uma tese sobre bichos-da-conta, mas os peixes também lhe interessavam.
Entretanto, a sua noiva, Maria, juntou-se-lhe e acabou por ser contratada para dirigir o departamento de Ornitologia do mesmo museu. Especialista em aves tropicais, tem hoje o seu nome associado a quatro espécies peruanas.
Apaixonado pela mulher, Hans-Wilhelm Koepcke não iria descansar até a encontrar na selva, viva ou morta. Quando a filha foi encontrada, insistiu para que continuassem as buscas que haviam começado mal se soube do acidente. Maria dera-lhe várias provas de resiliência. E se também ela tivesse sobrevivido?
Não estava longe da verdade. A 12 de janeiro, mais de uma semana depois de Juliane ser salva, o corpo de Maria foi encontrado. O seu estado de conservação indiciava que morrera poucos dias antes, sem nunca conseguir levantar-se porque tinha o pélvis e a coluna fraturados.
A selva era tão densa na zona em que o Electra da Lansa se despenhara que os aviões e helicópteros de busca e salvamento só viriam a encontrar os destroços e os corpos com as indicações de Juliane. Mas andaram perto.
Nos onze dias que a miúda andou sozinha pela selva, daria várias vezes por eles. “A certa altura, mais um passa por cima de mim, e eu aceno e grito, mas é em vão. Ele recua e desaparece, tal como os outros. Silêncio”, conta, nas suas memórias. “‘Eles voltam’, digo a mim mesmo, com toda a certeza. Mas o tempo passa, e o barulho do motor que ouvi quase constantemente nos últimos dias não regressa. Aparentemente, desistiram da busca. Provavelmente, todos os outros foram resgatados, exceto eu. Exceto eu.”
Naquela altura, Juliane não sabia que ainda ninguém fora encontrado. Nem que tinha havido sobreviventes, que entretanto morreriam sem serem resgatados. Iria descobrir que a sua mãe estava entre essas pessoas, mas, ao quarto dia, quando encontrou três passageiros mortos no caminho, ainda suspeitou que um deles fosse Maria.
A fome minava-a por dentro. “Estou a ficar mais fraca, já quase não aguentar-me em pé. Sei que tenho de comer algo se não quiser morrer. Mas o quê? É a estação das chuvas, e os sapos andam aos saltos por todo o lado. Tenho de apanhar um destes animais e comê-lo, mesmo embora saiba que são venenosos. Os índios usam certas espécies para envenenar as suas flechas, mas o efeito destes sapos é demasiado fraco para matar um adulto. Ainda assim, não tenho a certeza de como vou suportá-los no meu estado enfraquecido”, escreverá.
Mais do que uma vez, Juliane tentou mesmo apanhar um sapo, sem sorte. A certa altura, um deles estaria sentado a menos de quinze centímetros da sua boca, mas no momento em que o agarrou, fugiu. “Isso deprime-me mais do que qualquer outra coisa”, contará.
Até que um dia, o décimo desde que caiu do avião, dá com um barco na margem do rio e um trilho de terra batida com pegadas recentes. Segue-o a custo, de tão cansada que está, até chegar a uma barraca construída com troncos e folhas de palmeira. Tem de haver pessoas por perto, pensa.
Lá dentro encontra o motor fora de borda do barco e um pequeno bidon com gasolina. Lembra-se, então, das larvas de mosca que nasceram no corte profundo que tem num braço e decide fazer o mesmo que o pai fez com querosene numa ferida do Lobo.
“Levo um tempo infinitamente longo a abrir a tampa de rosca. Com um pequeno pedaço de mangueira, que encontro junto dela, aspiro a gasolina e deixo-a pingar na minha ferida”, escreve nas suas memórias. “No início, isso dói excruciantemente, pois as larvas tentam escapar e enterram-se ainda mais na minha carne. Mas finalmente vêm à superfície e consigo tirar umas trinta.”
Depois disto, Juliana adormece, exausta, e só acordará no dia seguinte, 3 de janeiro, com a chegada de Beltrán Paredes, Carlos Vásquez e Nestor Amasifuén, três trabalhadores florestais que a encontram na sua barraca.
“Por tudo o que é sagrado”, confessar-lhe-á mais tarde Beltrán, “no primeiro momento pensei que eras Yacumama.” Juliana sabia que Yacumama é o nome que os índios dão a uma deusa da natureza que vive na água. As mulheres grávidas têm de evitar olhar para ela a todo o custo, ou então ela virá mais tarde e levará a criança.
Beltrán pensou isso por ela ser tão loira e porque não havia ninguém a viver ali “tão longe”, muito menos brancos. “Ainda bem que nos falaste logo”, disse-lhe o homem.
Os três dão-lhe a comer fariña, uma mistura de mandioca assada e ralada, água e açúcar, a comida típica dos trabalhadores florestais, caçadores e mineradores. Tratam como podem das suas feridas, tirando mais larvas do seu braço. E contam-lhe que nem sequer o avião foi encontrado.
Já vestida com umas calças e uma camisa, Juliane é apresentada a mais dois homens, Amado Pereira e Marcio Rivera, que se oferecem para no dia seguinte a levarem de barco até à aldeia de Tournavista, distante muitas horas dali.
À chegada à aldeia, algumas crianças fogem aos gritos e uma mulher afasta-se com horror, de mão na boca. “Os olhos! Não consigo olhar para eles! Oh, Deus, que olhos terríveis!” Amado e Marcio explicam-lhe, então, que ela está com os olhos completamente vermelhos. Aparentemente, todos os vasos sanguíneos rebentaram, e até a íris está vermelha de sangue.
Nessa mesma noite, o comandante da Força Aérea do Peru, Manuel del Carpio, responsável pela operação de busca, convoca uma conferência de imprensa. Confirma o salvamento de Juliane, mas proíbe qualquer contacto, argumentando que está em estado de choque. Quando menciona que ela tem apenas feridas ligeiras, as famílias dos restantes passageiros ficam cheias de esperança. Haverá mais sobreviventes?
Pouco depois, chega o pai de Juliane. “Como estás?”, pergunta-lhe, simplesmente. “Bem”, responde a miúda. Os dois abraçam-se, sem mais uma palavra. Koepcke senta-se na cama da filha e ficam os dois em silêncio um tempo infindo.
Os dias seguintes são gastos pelos militares e voluntários a penetrar na selva. Uns saltam de pára-quedas, muitos abrem clareiras a corte de manchete para que os helicópteros possam aterrar. Os destroços estão muito espalhados, e só no dia 8 são encontrados os primeiros vinte cadáveres. A maioria está desmembrada e desfigurada.
A primeira entrevista a Juliane seria publicada logo em janeiro, na Stern. O pai concordara em conceder um exclusivo aquela revista alemã, acreditando que assim afastaria os outros jornalistas. Enganou-se. As atenções não esmoreceriam tão cedo, mesmo tendo sido retratada como arrogante e sensível.
Uma repórter chegou a fingir-se enfermeira, para conseguir entrevistá-la, mas o que mais a aborreceu foram os erros factuais que leu aqui e ali. Escreveram que construira uma jangada com vinhas e ramos, o que seria impossível, e que o corte no seu braço ficara infestado de vermes, quando eram larvas de moscas.
Muitos anos depois, Juliane iria lembrar-se do aspeto do panettone que encontrou entre destroços do avião e que, segundo a Stern, teria comido nos dias seguintes. “Era uma papa. Encharcada. Impossível comer aquilo”, contou ao The Telegraph.
Juliane percebia o interesse na sua história e até a insistência na expressão “milagre de Natal”. Em 1974, colaborou no guião do filme foleiríssimo I Miracoli Accadono Ancora (os milagres ainda acontecem, no original), do realizador italiano Giuseppe Maria Scotese, acabando a ver a atriz Susan Penhaligon a interpretá-la como uma adolescente cabeça de vento e histérica. Ao fim de um ano, a atenção dos media esmagou-a. “Pensei: ‘É como se fossem cães a perseguir-me’”, recordou ao mesmo jornal britânico.
Decidiu, então, desaparecer do radar dos jornalistas até que, em 2011, publicou na Alemanha as suas memórias, entretanto traduzidas em vários países.
O trauma do acidente, porém, nunca a abandonara. Durante anos, tinha um sonho recorrente: “Estou a correr furiosamente a uma altura baixa através de um espaço escuro, correndo incessantemente ao longo de um muro sem nunca lhe tocar. Há um zumbido muito forte nos meus ouvidos, como se eu própria estivesse equipada com um motor, o que é uma sensação muito estranha, e depois acordo coberta de suor”.
Nunca faria qualquer terapia. Ficou sozinha com os seus problemas, e ao fim de dez anos afundou-se na tristeza pela morte da sua mãe. “Tive um momento terrível”, contou ao The Telegraph. “Chorei durante horas e horas, durante todo o dia, e pensei na minha mãe e em todas as coisas e assuntos importantes que não discuti com ela.”
Ir para o terreno, a pedido de Werner Herzog, que em 1998 quis realizar um documentário para a televisão alemã, acabaria por ser terapêutico. Para as filmagens de Julianes Sturz in den Dschungel (a queda de Juliane na selva, à letra) ela regressou, então, ao local do acidente e teve várias surpresas.
Anos antes, tinha sido construída uma ponte de ferro no rio Shebonya, o mesmo rio que ela seguira até encontrar o barco e a cabana. A alguns quilómetros dessa ponte, uma mulher abrira um quiosque onde exibia uma porta intacta do avião da Lansa.
Num espanhol imperfeito, a dona do quiosque escrevera “A porta de Juliana”. Claro que Herzog a filmou lá. E, sempre que ela passa por lá, há alguém que lhe pede uma fotografia.
Por causa do documentário, Juliane regressaria também a Panguana, onde não ia há catorze anos. Mas só em 2000, quando o pai morreu de cancro, aos 87 anos, decidiu assumir o cargo de diretora e organizadora principal das expedições internacionais à reserva.
“Na minha caminhada solitária de onze dias de regresso à civilização fiz uma promessa”, relembrou no ano passado, ao The New York Times. “Jurei que se sobrevivesse dedicaria a minha vida a algo importante para a Natureza e a Humanidade.”
A morar com o marido (de quem usa o apelido Diller) em Munique, onde trabalha na Coleção Zoológica do Estado Bávaro, como bibliotecária-chefe e diretora-adjunta, Juliane passa uma temporada em Panguana de dois em dois anos.
Em 2011, viu o recém-criado Ministério do Ambiente peruano declará-la área de conservação privada. Mas, ainda assim, sempre se preocupou por não estar a fazer o suficiente. “São grandes palavras, mas só palavras e até agora tenho pensado, consegui isto ou não? E essa é outra forma de me sentir culpada”, escreveu nas suas memórias.
Na última década, porém, Juliane veria Panguana crescer em tamanho e em notoriedade. E é lá que se sente em casa. “Para os meus pais, a estação era um santuário, um lugar de paz e harmonia, isolado e belo de uma forma sublime”, diria ao NYT. “Sinto-me igual.”