No início de abril de 1996, a Provedoria de Justiça abriu um inquérito a propósito de uma rubrica humorística do programa da RTP Parabéns, da autoria de Herman José. No espaço intitulado Herman Zap, o humorista recriara, em termos demasiadamente “livres”, a Última Ceia de Cristo. Duas denúncias anónimas provocaram a intervenção da Provedoria, enquanto o episcopado, pela voz do bispo D. Maurílio Gouveia, condenava, em termos duros, a sátira – como todas as sátiras… – “ofensiva”. “O programa da RTP ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos, a Eucaristia!”, proferiu. Ao mesmo tempo, um político proeminente, que acabara de ser eleito presidente do principal partido da oposição, escolhia o cardeal-patriarca de Lisboa como anfitrião de uma das suas primeiras visitas, para apresentação de cumprimentos. Marcelo Rebelo de Sousa, entronizado presidente do PSD no congresso de Santa Maria da Feira, no último fim de semana de março, secundou, sem reservas, a posição da Igreja, na censura a Herman: “Vejo com preocupação que, num canal de serviço público, se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas para instituições particularmente relevantes como a Igreja Católica.” O humorista, esse, considerou que Deus devia estar “a rir às gargalhadas” do ridículo das reações e avisou que, provavelmente, com Marcelo no poder, a RTP se tornaria bastante “mais contida e refreada”.
Quando se trata da Igreja, o Presidente da República (PR) tende a perder os traços de racionalidade – ou de emotividade estudada – que construíram a sua reputação política. Essa faceta de um cristianismo puro e de origem – mais até do que um catolicismo ortodoxo – é acompanhada, no entanto, de um profundo respeito pela hierarquia da Igreja, cujo prestígio faz tudo para defender. Mas esse não foi o principal motivo que levou às polémicas declarações da semana passada, quando considerou que os 424 testemunhos sobre abusos sexuais de menores, praticados por membros do clero, nos últimos 70 anos, não lhe pareciam “um número particularmente elevado”. A chave da sua intervenção pode ser encontrada num vídeo do Presidente, divulgado em 2019, a partir do Panamá. Recordemos as palavras então proferidas por um eufórico Marcelo Rebelo de Sousa: “Conseguimos! Conseguimos! Portugal, Lisboa! Esperávamos, desejávamos, conseguimos! Vitória!” Marcelo tinha acabado de participar na Jornada Mundial da Juventude, decorrida naquele país, e acabara de receber a notícia de que o próximo encontro dos jovens católicos, uma das principais iniciativas globais da Igreja, ia ser organizado por Portugal. No calor do momento, e perdendo, mais uma vez, o fio da racionalidade política, Marcelo anunciou depois que, em 2022, lá estaria, para receber o Papa Francisco. Isto muito antes de se saber se teria, ou não, a intenção de se recandidatar à Presidência da República, em 2021. Foi o seu momento “Autoeuropa”… Ora, segundo a VISÃO apurou junto de fontes muito fidedignas, o Presidente, que acarinha entusiasticamente o projeto, desde o início, e que o considera quase uma aposta pessoal, receia que o evento seja ensombrado pelas revelações sobre a pedofilia na Igreja portuguesa. Marcelo desejaria ver o assunto esclarecido e arrumado antes do verão de 2023, quando – com um ano de atraso, devido a um adiamento – os jovens católicos de todo o mundo começarem a chegar a Lisboa.