No Japão, o aluguer de pessoas, que podem ser atores, para se fazerem passar por namorados, amigos e até pais é uma realidade. Existem empresas especializadas nesse serviço, alugar todos os tipos de parentes, para todos os tipos de situações. Podem ser precisos pais para apresentar à noiva, amigos para ir às comprar ou companhia para ir a um casamento.
Agora, a novidade ao nível dos relacionamentos passa por um nível ainda maior de ficcionalidade: há pessoas a contraírem matrimónio com personagens fictícias, uma indústria com uma cultura de fãs que serve o novo negócio.
Em Tóquio, Akihiko Kondo é o típico japonês de classe média, afável, com amigos e emprego fixo, no qual usa fato e gravata. A única exceção à normalidade da sua vida é ser casado com a boneca Hatsune Miku, uma pop star virtual. O holograma desta cantora pop, com o cabelo azul-turquesa, já abriu um concerto de Lady Gaga, uma verdadeira estrela de carne e osso. Na verdade, Miku é um software, uma “cantora dentro de uma caixa” digital que vem emparelhada com um avatar de desenho animado que apareceu em concerto em forma de holograma.
A união entre Kondo e Miku concretizou-se, depois de ele ter tido um namoro de uma década, mas que no fim lhe causou uma depressão profunda. A boneca de peluche engalanou-se de branco, a combinar com o smoking preto chique do nubente. Apesar de os convidados, familiares e colegas de trabalho, não terem marcado presença na festa, a cerimónia contou com 39 pessoas, entre estranhos e amigos online.
Miku não é única, tem uma variedade de outras Miku com quem Akihiko Kondo come, dorme e vê filmes. Juntos, fazem algumas escapadinhas românticas e ele publica fotografias da saída a dois no Instagram.
Aos 38 anos, Akihiko Kondo reconhece, num artigo publicado no The New York Times, a estranheza que possa causar nos outros, algo até prejudicial. Ele sabe que a boneca não é real, mas os seus sentimentos por ela são. “Quando estamos juntos, ela faz-me sorrir. Nesse sentido, ela é real.”
Felizes para sempre
Kondo não é único. Há milhares de pessoas no Japão que, nos últimos anos, se casaram, sem ser de forma oficial, com personagens fictícios. Espalhados por todo o mundo, existem grupos online para discutir este tipo de compromisso com personagens de anime, mangá e videojogos. Mas, nem todos têm o mesmo grau de seriedade de Kondo, que há muito tempo que sabia que não queria uma companheira humana, não só porque rejeita as rígidas expectativas da vida familiar japonesa, mas porque sente uma forte atração por personagens fictícias.
As maiores vantagens, face a um ser humano, são ela estar sempre presente para ele, nunca o trairá, nem ele terá de tratar dela quando estiver doente ou vê-la morrer. Assim, é seguro que serão felizes para sempre.
As pessoas como Akihiko Kondo identificam-se como fictossexuais, termo que junta as palavras ficção e sexualidade. Com os avanços da robótica e da inteligência artificial a permitirem, cada vez mais, maiores e mais reais interações com seres inanimados, o movimento continuará certamente a crescer.
O fenómeno de desejar algo ficcional não é exclusivo do Japão, mas a ideia de um boneco inspirar afeto e amor parece ter alcançado o seu expoente máximo no Japão moderno. E, se no Ocidente ganharam o género de fictossexuais, no Japão é a palavra “moe” que traduz tudo o que seja visceralmente adorável.
Em torno do casamento não oficial com personagens fictícias tem crescido uma força económica, tornando possível que mais pessoas vivam fantasias em comum com os seus personagens favoritos. “As pessoas colecionam os comics, os cartoons, os jogos construídos numa espécie de infraestrutura em que os personagens se tornam mais importantes para as pessoas”, explica Patrick Galbraith, professor da Escola de Comunicação Internacional da Universidade Senshu, em Tóquio.
Na capital japonesa, dois dos distritos transformaram-se em mecas para realizar estes sonhos: Akihabara (para os homens) e Ikebukuro (para as mulheres). As lojas são especializadas e cheias de mercadorias para personagens de jogos populares e animes.
As mulheres podem comprar cartas de amor dos seus mais-que-tudo, reproduções das suas roupas e até perfumes. Os hotéis oferecem pacotes especiais, com tratamentos de spa e refeições, para quem comemora o aniversário do seu personagem favorito. As redes sociais enchem-se de hashtags com a palavra “oshi”.
“Para as pessoas em geral, pode parecer um disparate gastar dinheiro, tempo e energia com alguém que nem está vivo. Mas, para os amantes de personagens, essa prática é vista como essencial. Faz com que se sintam vivos, felizes, úteis e parte de um movimento com objetivos mais elevados na vida”, justifica Agnès Giard, investigadora da Freie Universität Berlin, no projeto do Conselho Europeu de Pesquisa, Máquinas Emocionais: A Transformação Tecnológica da Intimidade no Japão.
Nas explicações da investigadora, as mulheres, em vez de ficarem mais isoladas consoante os seus relacionamentos, beneficiam de um certo empoderamento, como forma de desafiar as normas de género, matrimoniais e sociais.
Ciúmes reais, afeto de verdade
Depois de abrir uma pequena empresa de registos de casamentos fictícios, Yasuaki Watanabe passou a aconselhar centenas de fictossexuais e emitiu cerca de uma centena de certidões de casamento, incluindo uma para ele e Hibiki Tachibana, personagem da série de anime Symphogear, uma espécie de amor ao primeiro episódio. Divorciado, percebeu que neste relacionamento tudo era mais fácil, sem obrigações, nem cedências, e sem esperar nada em troca. Mas, nem tudo é um mar de rosas nesta união. Yasuaki Watanabe sente falta de ser tocado e por causa dos direitos de autor, não pôde fazer um boneco em tamanho real.
Alegre e extrovertida, Kina Horikawa, uma mulher de 23 anos, gasta parte do seu dinheiro, ganho a trabalhar num call center, com Kunihiro Horikawa, um galã do jogo Touken Ranbu. Os ciúmes do namorado real, levaram ao fim da relação.
Com a sua espada, Kunihiro Horikawa junta-se à família para jantar, na maioria das noites, na forma de um pequeno retrato de acrílico empoleirado ao lado da sua tigela de arroz. O casal costuma sair com amigos que também têm os seus pares fictícios, para tomar chá e postando fotografias no Instagram.
O pior que podia ter acontecido ao casamento de Akihiko Kondo, foi quando a Gatebox, uma máquina do tamanho de um abajur de mesa, que permitia que aos humanos interagir com os personagens fictícios representados por um holograma, anunciou que iria descontinuar o serviço. Nesse dia, ao chegar a casa, Kondo viu a imagem de Miku ser substituída pelas palavras “erro na rede”. Foram felizes até que a rede se desligou.