A tecnologia assume-se como uma área em constante desenvolvimento. Hoje já existem aglomerados de neurónios, ou células cerebrais, a serem incorporadas no chip de um computador, um avanço pioneiro na tecnologia. Estes chips híbridos criados a partir de uma combinação de tecido humano, neste caso células cerebrais, e silício, um dos materiais base da construção de um computador, parecem promissores, mas não deixam de se acompanhar por um conjunto de fragilidades éticas.
Numa publicação lançada o mês passado, o The Conversation focou-se em explorar a novidade tecnológica de uma ponto de vista ético. Estaremos prontos para humanizar os computadores? E será esse o rumo certo a tomar?
No site oficial de uma das empresas pioneiras da área levanta-se a questão: “E se tivesses um chip de computador que pudesse auto organizar-se e reestruturar-se para melhor resolver um problema?”. O objetivo dos novos chips são, exatamente, melhorar o desempenho dos computadores, permitindo-lhes “aprenderem, conectarem-se e influenciarem” a experiência do utilizador, explica, numa publicação, a mesma empresa.
As vantagens são, aparentemente, óbvias: um sistema mais autónomo capaz de se adaptar ao seu utilizador e oferecer-lhe uma experiência única, um aumento na rapidez das operações e ainda um consumo de energia significativamente mais reduzido. O que pode correr mal? A questão dá aso a muitas especulações até porque, e como refere a própria empresa na publicação referida, sendo um projeto inteiramente novo, é difícil fazer previsões concretas.
Até agora existe apenas uma única certeza: o primeiro chip de computador híbrido, constituído parcialmente por células humanas, existe e a tecnologia irá desenvolver-se nesse sentido.
Como funcionam os chips híbridos?
Os chips de computador comuns, feitos em grande parte por silício, partilham uma característica com os neurónios humanos: a sua linguagem, a eletricidade. Tanto os chips como os neurónios comunicam entre si através de sinais elétricos, um aspeto essencial para que os novos chips híbridos sejam possíveis. No caso dos computadores de silício, os sinais elétricos viajam ao longo de fios de metal que ligam os vários componentes, como descreve o The Conversation. No cérebro, os neurónios comunicam através de sinais elétricosque dependem das sinapses, junções entre células nervosas.
Os neurónios utilizados não são, no entanto, retirados diretamente de um cérebro humano, mas antes desenvolvidos artificialmente a partir de pele ou sangue humano recorrendo a um processo que permite cultivar células cerebrais a partir de células comuns. Neste projeto concreto, os laboratórios ocupam-se de desenvolver os neurónios em chips de silício, criando chips híbridos capazes de, tal como os próprios neurónios humanos, criarem diferentes respostas a diferentes estímulos, adaptando-se à realidade, neste caso virtual, em que habitam. “Nunca existiu nada como isto antes… É uma maneira completamente nova de ser. Uma fusão de silício e neurónio”, admitiu, de acordo com o The Conversation, um dos cientistas que integra o projeto da Cortical Labs, uma das empresas focadas em incorporar neurónios em chips.
Os chips híbridos têm o potencial de revolucionar os sistemas de inteligência artificial e mesmo de ter implicações em áreas como a agricultura, saúde, tecnologia militar e segurança aeroportuária, de acordo com uma outra empresa do mesmo ramo, Koniku, conhecida por desenvolver drones capazes de sentir cheiro.
Não há dúvida de que os computadores de silício trouxeram grandes avanços à sociedade, mas existem ainda limitações à inteligência artificial que, apesar de tudo, permanece incapaz de se assemelhar ao cérebro humano. Como destaca o artigo do The Conversation, o cérebro de um gato consegue conter, por exemplo, até cerca de mil vezes mais armazenamento do que um iPad comum, sendo capaz, inclusive, de utilizar essa informação um milhão de vezes mais rápido. Já o cérebro humano atinge um nível de rapidez e eficácia que ultrapassa vários milhões de vezes estes números.
Atualmente, a simulação mais próxima do cérebro humano é feita por computadores de grandes dimensões que exigem quantidades de energia semelhantes às produzidas por 24 usinas de carvão, enquanto que, para realizar as mesmas tarefas, um cérebro humano utiliza níveis de energia semelhantes aos utilizados por uma única lâmpada.
Unir computadores a humanos, o que pode correr mal?
Há muito que o mundo brinca com o limbo entre a inteligência artificial e a inteligência humana, não só explorando os benefícios que daí viriam, mas também os malefícios. Em 2004 o filme “I, Robot” traçou um mundo controlado por robôs, um receio que, embora distante, continua hoje a ser relembrado na discussão dos limites da tecnologia, nomeadamente no momento atual quando os computadores são cada vez mais capazes, potentes e eficazes.
Uma das questões levantadas, segundo o The Conversation, pelo próprio diretor científico da Cortical Labs, Brett Kagan, foi exatamente a aproximação entre a inteligência artificial e a inteligência humana e a forma como a combinação dos chips de computadores e neurónios poderiam provocar no sistema estímulos semelhantes aos humanos, nomeadamente do ponto de vista da sensibilidade e consciência.
No projeto desenvolvido pela Cortical Labs, foram aplicados estímulos auditivos ora negativos ora positivos ao sistema no decorrer do jogo Pong à medida que este ia errando ou acertando, respetivamente. O objetivo era perceber se o sistema com chips híbridos seria capaz de se adaptar e melhorar o seu desempenho no jogo. Seria possível que, no processo, e uma vez que o sistema inclui neurónios humanos, o computador desenvolvesse respostas associadas à dor ou ao prazer?
“Como discutido recentemente num estudo, não há evidências de que os neurónios numa placa tenham qualquer experiência qualitativa ou consciente, de modo que não se podem sentir angustiados e, não tendo recetores de dor, não podem sentir dor. Os neurónios evoluíram para processar informações de todos os tipos – ficarem completamente sem estímulo, como feito atualmente em laboratórios de todo o muno, não é um estado natural para um neurónio. Tudo o que este trabalho faz é permitir que os neurónios se comportem como a natureza pretende, ao seu nível mais básico”, acrescentou Kagan.
Outras problemáticas envolvem o consentimento do doador. As amostras de tecidos a partir das quais se desenvolvem, depois, em laboratório, os neurónios, têm necessariamente de ser doados por um dado indivíduo. A questão que se impõe é: As pessoas têm consciência do fim que será dado às suas amostras, ou seja, que serão utilizadas para o desenvolvimento de computadores com chips híbridos? A questão é feita depois de Henrietta Lacks, uma mulher cujas células foram usadas extensivamente em pesquisas médicas e comerciais, não ter sido informada dos fins para os quais as suas amostras tinham sido utilizadas e não ter recebido qualquer tipo de compensação.
É também de conhecimento comum que o cérebro aloja não só a nossa personalidade, como os nossos níveis de QI. Nas suas investigações a Cortical Labs já havia descoberto que os neurónios dos ratos eram mais lentos na aprendizagem tornando também, e consequentemente, os chips mais lentos. Significa isso que, dependendo da pessoa que doa a sua amostra, o computador pode ser mais rápido ou lento? Existirá preferência por indivíduos com QIs superiores? As questões ficam, por agora, sem resposta, mas provam-se essenciais na garantia de que a tecnologia e os avanços científicos continuam a responder, também, à ética.