Algumas palavras são contrações,
saem quentes, sofridas.
Escrevo estas na esperança de sarar alguns hematomas,
algumas feridas.
Percebê-las e querer explicar
é entrar numa hérnia prolongada de pensar.
É perceber que os partos de liberdade ainda se desfazem,
hoje.
Contraí o pensamento na vontade de ir voltar atrás no tempo,
e dizer que as mãos que tecem a liberdade são mais,
somos mais,
mulheres,
e que por aqui a sororidade continua
para lá dos programas televisivos,
que lutamos hoje,
pelos mesmos motivos.
Pensei em dizer todas as palavras dantes proibidas,
censuradas,
agora,
assim todas de seguida,
numa espécie de espasmo,
no jeito de uma ejaculação precoce,
sofrida,
porque as dores ainda se conjugam
e comungam noutros corpos,
castos, por fecundar, por libertar.
“Sou mulher”
Essa foi a primeira contração pós-parto,
quando manchada me vi em novas águas que me
escorriam,
numa realização tardia, distraída, de crescer,
porque agora era mulher,
diziam,
fora os constrangimentos e dismorfias corporais,
sexuais,
que de seios pouco fartos ainda andei despercebida,
mas ali estava, mulher feita,
pronta,
nos olhos de quem quisesse ver,
pronta,
para gerar uma vida.
Só que faltou preparar para as estrias,
as marcas de cesariana,
do que nos tiram, na incompatibilidade de gestar
um filho, uma carreira, ou um sonho,
é preciso escolher, se houver essa opção.
Contração.
Em dois mil e vinte e dois, algures parado no tempo
é dito a uma mulher que a saia está curta,
é dado um assobio numa esquina por um decote
e se os piropos dão multa
nenhum caso me chegou,
sem culpar a provocadora
que tais vestes vestir ousou.
Mulheres tidas como “vasos de receber”,
onde se planta a semente,
lia algures no memorial.
Mas as sementes que plantaram
Levaram, no total,
a longas matemáticas de (des)igualdades
a que se somarmos os retrocessos e subtrações
de direitos que caem por terra
em certas situações
incertas, de guerra,
essas contas por mais se estenderiam,
estenderão.
Falando em estender,
para quando as folgas dos aventais?
O fim dos papéis sociais?
Dos homens que ajudam na vida doméstica?
Para quando o esvaziamento?
O fim das imagens das mulheres sem embarcações?
Molhadas nas lágrimas femininas
que escorrem no rosto,
e caem na bacia, nas humidades impróprias,
Dos monólogos da vagina.
Sim, as mulheres são vistas como mais frágeis,
como “meninas”
Propensas a eternas convulsões,
de sentimentos,
e uma mulher forte
também consegue: chorar, gozar e lutar,
já viram,
ao mesmo tempo.
“Minha querida, tenha calma”
A calma de reparar em como mesmo que esteja eu a falar,
se houver um homem em conversa,
é para lá que a conversa costuma gravitar,
ou quando aparecem, a despropósito,
a explicar por trás,
“O que ela queria dizer”…
Contração.
E bom, com isso, iria se pensar
que em tantos silêncios ensaiados
nos iríamos conseguir expressar,
sem alguém nos interromper,
sem engolir o caroço do Adão,
em ter de explicar que um não
significa e continua a significar,
não.
Mas as situações continuam.
E por mais públicas que sejam as marcas,
as histórias surgem mais veladas, ensaiadas,
“O que te aconteceu?”
“Tropecei, bati com a cara,
na porta,
sabes como é que são
as portas.”
Contração,
Contração.
Pensei em dizer todas as palavras dantes proibidas,/ censuradas,/ agora,/ assim todas de seguida,/ numa espécie de espasmo,/ no jeito de uma ejaculação precoce,/ sofrida
Reouço a voz do desabafo gasto de uma mulher
A explicar-me que temos de saber a quem nos dar,
no custo de uma incompreensível devoção.
Mesmo depois de cheirar outro perfume,
Um batom no colarinho,
Justificado nas serpentes que abanam as ancas,
Que um homem nunca trai,
sozinho.
Ah, e quando chegas aos trinta
e vem aquele membro da família
perguntar
“Olha, não estás casada porquê?”
Escondeste a fingir tentar apanhar um bouquet.
“Ainda estás solteira?”
“Está a chorar outra vez?”
“Deve estar naquela altura do mês”
“Isso é coisa de homem”
“Devia se dar ao respeito”
“Tens de fazer a depilação”
“Andas sem soutien?”
“Devias cobrir o peito.”
Contração,
contração,
contração.
É um pouco instável, isso de uma mulher,
ser mulher, e querer gerar uma opinião,
é caso de cadeira elétrica,
fogueira, ou até… prisão,
prisão de guardar no ventre o que temos dentro,
de excretar o sentimento, fora da pia,
sem ser acusada de estar doente,
insana, em histeria,
sem ser chamada louca,
Porque anda uma poeta à solta
a lavar a roupa, suja
dentro de um poema.
E garanto-vos,
Esta última contração,
Com que parto,
é a mais serena.
A de intuir
que quase todas as mulheres
têm uma história assim para contar,
E que estes versos que vos escrevo,
só por isso,
nem precisavam de rimar.
Algumas palavras são contrações,
Eu sei,
saem quentes, sofridas.
Desculpem vir causar estes hematomas,
Desculpem vir abrir estas feridas.
17-04-2022
Alice Neto de Sousa
28 anos
Nasceu em Lisboa e tem raízes em Angola. Fez a sua primeira leitura pública enquanto aluna do mestrado de Psicomotricidade, numa aula do escritor Gonçalo M. Tavares. No princípio de 2022, no programa Bem-Vindos, da RTP África, deu nas vistas com Poeta, um texto sobre uma criança que se apercebe de que chamam “cor de pele” ao lápis que se prepara para usar. Já depois disso, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, foi convidada para escrever um poema (Março) para integrar a cápsula do tempo que será aberta em 2074. Assina poemas para o jornal digital Mensagem de Lisboa e também integra a bolsa de poetas e dizedores da associação cultural A Palavra.
PARA LER AQUI:
A Nova Carta Portuguesa de Capicua – “Liberdade”
A Nova Carta Portuguesa de Filipa Martins – “O que fazer com estas mulheres?”
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As escritoras-coragem
As Novíssimas Cartas portuguesas, 50 anos depois. Três textos em exclusivo para a VISÃO de Alice Neto de Sousa, Capicua e Filipa Martins