Um relatório lançado este domingo pela KoreaFuture reúne 259 depoimentos de testemunhas do sistema prisional norte-coreano, num resumo daquelas que serão as violações cometidas pelo governo de Kim Jong-un contra os direitos humanos. Neste momento, estão já identificados 597 criminosos ligados a mais de 5 mil violações contra 784 ex-detidos em 148 instalações prisionais diferentes.
A Coreia do Norte é conhecida por ter um dos regimes mais repressivos do mundo. O seu líder, Kim Jong-un, é o terceiro de uma ditadura que dura há cerca de 70 anos. Antes dele, o seu pai e avô governaram o país enquanto membros do partido da República Popular Democrática da Coreia (DPRK). A ditadura que a família Kim impôs no país foi o começo de uma história de opressão e medo que isolou a Coreia do Norte do mundo, fechando as suas portas tanto a quem entra como a quem sai.
Apesar da forma idealista como se apresenta ao mundo, a Coreia do Norte vive sob um regime opressor que proíbe a liberdade de expressão dos seus cidadãos e os restringe de um conjunto vasto de direitos. Segundo o relatório de 2022 da Humans Right Watch, o governo de Kim Jong-un “não tolera o pluralismo, proíbe os media independentes, organizações da sociedade civil e sindicatos e nega sistematicamente todas as liberdades básicas, incluindo liberdade de expressão, reunião pública, associação e religião”. O governo é ainda responsável por “extrair sistematicamente trabalho forçado e não pago dos seus cidadãos” e aplicar fortes castigos a todos aqueles que forem contra as diretrizes fornecidas pelo governo.
No território governado por Kim Jong-un, a palavra liberdade perdeu sentido e muitos veem diariamente a sua voz silenciada. Vários apelos têm sido feitos ao longo dos anos para que os direitos humanos no país sejam assegurados, mas o seu líder nega todas as acusações feitas e pinta um cenário de felicidade e prosperidade dentro das suas fronteiras, uma história que tenta vender não só ao mundo, mas aos seus cidadãos, forçados a aceitá-la sob a pena de anos de prisão – um local onde a agressão física e psicológica ganha forma.
Estar preso num país de presos
Pouco se sabe sobre o que acontece dentro das quatro paredes das cadeias, num país em que todos estão presos às correntes de um líder opressor, aqueles que escolhem fugir do padrão. Na Coreia do Norte, muitas ações constituem fugir do padrão imposto: desde criticar o governo a tentar sair do país ou mesmo ver séries ou filmes internacionais.
Lee Young-joo, nascida na Coreia do Norte, foi detida e submetida a horas de interrogamento depois de, em 2007, ter tentado abandonar o seu país. Passou três meses no centro de detenção Onsong na Coreia do Norte, perto da fronteira chinesa, enquanto aguardava sentença, segundo conta à BBC.
Onsong é apenas um dos 148 centros de detenção da Coreia do Norte identificados pelo relatório. Num vídeo publicado pela KoreaFuture, o grupo de investigadores que tem procurado recolher informações sobre a realidade prisional da Coreia do Norte apresenta uma simulação 3D daquela que será a realidade vivida dentro destas instalações.
O centro de detenção Onsong, onde Young-joo passou três meses da sua vida, é uma das infraestruturas descritas no relatório. Gerido pelo Ministério de Segurança das Pessoas (MSP), este centro é responsável por deter pessoas que estão ou a ser alvo de exames prévios ao julgamento ou que já foram sentenciadas e estão à espera para serem transferidas para outra instalação.
Pouco era conhecido sobre esta ou qualquer outra instalação prisional da Coreia do Norte, resultado do secretismo que envolve o país e que tem sido fomentado durante anos pelo governo da família Kim. A simulação foi, por isso, desenvolvida com recurso a “técnicas de investigação inovadoras” que combinam “modelagem digital, testemunhos de sobreviventes, diagramas com base na memória e imagem de satélite”.
As descobertas incluem a violação de um conjunto vasto de direitos humanos quer pelas condições das instalações em si como pelo tratamento dado aos presos. “Nós fomos capazes de documentar independentemente provas que mostram que oficiais do MSP e agentes penitenciários detiveram cidadãos ilegalmente no centro detenção Onsong e os submeteram a múltiplas e sobrepostas violações dos direitos humanos, incluindo tortura física brutal, fome, celas com demasiadas pessoas e condições não higiénicas que põem em rico a saúde dos detidos”.
Como este, existem muitos outros centros que podem, inclusive, ter diferentes funções. Um campo de prisioneiro políticos, por exemplo, é dedicado unicamente a indivíduos acusados de crimes políticos, um campo para o treino de mão de obra é, por sua vez, dedicado a detidos condenados entre 6 a 12 meses de prisão. Neste último, os prisioneiros são forçados a trabalhar sob condições extremas sem qualquer tipo de pagamento.
(Sobre)viver na prisão
A simulação desenvolvida pela KoreaFuture inclui uma explicação da disposição e funcionamento do centro de detenção de Onsong, um de muitos. A instalação conta, segundo os dados disponibilizados, com apenas 10 celas, embora os detidos sejam mais de 90. Por cela encontram-se 9 ou 10 pessoas, podendo atingir as 20, o que constitui uma violação do direito internacional para o número máximo de detidos por metro de cela.
A simulação vai ao encontro das memórias de Young-joo, que recorda ter rastejado por uma porta com apenas 1 metro de altura para poder entrar na sua cela. A pequena porta constitui a única entrada e saída da cela, que inclui uma casa de banho “que os detidos estão proibidos de usar sem a autorização de um agente penitenciário”. Alguns itens básicos de higiene pessoal como “sabão, papel higiénico e escovas de dentes” não são fornecidos e ex-detidos reportaram à organização que as celas estavam “infestadas de piolhos e com um cheiro forte proveniente da casa de banho aberta”. Lavar a roupa não era uma opção, assim como não o era também, muitas das vezes, lavar o próprio corpo. Condições “desumanas e proibidas pela lei internacional”, como explica o relatório.
Ainda assim, e apesar das fracas condições, a grande maioria do tempo dos detidos é passado nesta divisão com direito a apenas uma a duas visitas ao espaço exterior, sendo que, e segundo os testemunhos dados por ex-detidos à organização, nem sempre essas visitas eram cumpridas. O resto do tempo é passado na cela e durante 12 horas diárias – desde as cinco ou seis da manhã, quando são acordados, até às dez da noite, quando devem dormir – os detidos são forçados a manter-se sentados, de pernas cruzadas, com as mãos sobre os joelhos. Aos olhos da lei internacional, esta obrigação “constitui uma tortura e pode ter consequências duradouras na saúde”.
Young-joo recorda-se de ouvir o barulho das botas do guarda afastar-se e de rapidamente sussurrar algo para um dos seus companheiros de cela. Na prisão onde se encontrava, como em muitas outras norte-coreanas, é estritamente proibido para um detido mexer-se ou falar sem autorização de uma figura superior e Young-joo sofreu as consequências do risco que cometeu: “O guarda pediu-me para ir até as grades da cela e colocar as mãos para cima e depois começou a bater nas minhas mãos com as chaves até elas incharem e ficarem azuis. Eu não queria chorar de orgulho”, conta.
As agressões eram frequentes e ao longo do dia era habitual ouvirem-se os sons da tortura numa outra cela. “Conseguias ouvir as outras pessoas a serem espancadas porque as celas compartilham um corredor. Eu estava na cela 3, mas conseguia ouvir os castigos da cela 10″, acrescenta.
As refeições resumem-se a três tigelas diárias de milho moído ou uma tigela de água fervida com couve salgada, nenhuma delas suficiente para cumprir o valor nutricional mínimo imposto pelo direito internacional. A água raramente se encontra disponível para os detidos. Segundo o relatório, testemunhos de 2013 terão reportado que cada cela tem um único balde de água para todos os prisioneiros com cerca de 10 litros para todos os fins necessários incluindo beber, lavar ou despejar dejetos. Um testemunho adicional em 2019 informou que os detidos recebem ainda, por cela, uma garrafa de 1 a 2 litros unicamente para beber, mas que devem pedir permissão para o fazer, algo que muitas vezes lhes é negado ou só é permitido durante momentos de exercício.
“Eu pesava 32 quilos quando fui libertado da detenção. Era apenas um fina camada de pele e ossos”, conta à organização KoreaFuture um ex-detido.
Violência sem limites
Num desabafo, Young-joo admitiu que, durante os três anos e meio a que depois foi sentenciada, se sentiu “como um animal, não um ser humano”. “Eu estava preocupada a pensar se ainda estaria viva quando terminasse a minha sentença”, acrescentou a ex-detida. “Quando vais para estes lugares, tens de deixar de ser humano para resistir e sobreviver”.
Como Young-joo, muitas outras pessoas viram as suas vidas profundamente marcadas por tudo aquilo que experienciaram entre as quatro paredes dos centros de detenção da Coreia do Norte. Também em resposta à BBC, o codiretor da KoreaFuture, acusou o sistema prisional do país de “reprimir uma população de 25 milhões de pessoas” e de traumatizar as pessoas que sobrevivem aos seus maus-tratos. “Em todas as entrevistas que fazemos, testemunhamos como isto impactou a vida humana. Uma entrevistada chorou quando disse que tinha testemunhado o assassinato de um recém-nascido”.
O padrão de violência tanto física como psicológica é transversal não só a todo o sistema prisional como a todas as suas vítimas. As histórias dos testemunhos recolhidos pelo relatório vão desde agressões físicas a agressões sexuais e a abortos forçados. Uma entrevistada relatou ter testemunhado uma companheira a ser forçada a fazer um aborto quando a gravidez ia já nos oito meses. O bebé, ainda assim, sobreviveu, mas terá sido depois afogado pelos oficiais numa tigela de água, segundo a BBC.
Crimes e julgamento
Em 2014, a ONU lançou um relatório sobre a preocupante situação vivida no sistema prisional norte-coreano, que denunciava como um “crime contra a humanidade da escravidão”. Desde então, segundo a Koreafuture, “vários esforços têm sido feitos para reunir provas para uso futuro em mecanismos de defesa”. O relatório lançado a 27 de março não só vem juntar-se a esses ditos esforços, como reúne as provas necessárias para lhes dar o formato de uma acusação legal.
O relatório, que contou com o contributo de peritos do Tribunal Penal Internacional, reúne provas suficientes para ser admitido em tribunal, onde os responsáveis pelas múltiplas violações cometidas no contexto prisional norte-coreano poderão ser julgados. Não é claro exatamente quem seria julgado, nomeadamente porque “as instituições responsáveis pela gestão de instalações penais onde violações dos direitos humanos foram sistematicamente documentadas (…) não formam cadeias de comando independentes”, existindo um conjunto de fatores adicionais que devem ser considerados, embora a organização em si não se dedique a essa análise.
Ao longo do relatório são apresentados vários exemplos de razões pelas quais diferentes indivíduos foram detidos, sendo que um deles se repete continuamente no curso de toda a análise feita pela organização: “liberdade de expressão”. Os acontecimentos concretos que levaram as pessoas a serem detidas pela polícia são diferentes, mas todos eles constituem uma forma de liberdade de expressão que é por si só, e aos olhos do governo de Kim Jong-un, um crime.
A maioria dos detidos também não beneficiou da presença de um advogado ou teve a oportunidade de se defender perante a justiça. Além disso, grande maioria dos oficiais, responsáveis por gerir os centros prisionais e vigiar os detidos, eram homens e a grande maioria dos detidos mulheres.
Saerom, uma outra sobrevivente do centro de detenção de Onsong, relembra, em resposta à BBC, o que viveu quando ainda se encontrava no seu país de nascença. “Eles batem na tua coxa com um pau. Sais a rastejar. Não podia olhar para as outras pessoas a serem torturadas e se virasse a cabeça eles obrigavam-me aolhar”, conta.
“Se houver uma maneira (de serem punidos), quero que sejam punidos”, disse Saerom, agora em segurança na Coreia do Sul. É exatamente nesse sentido que a KoreaFuture tem procurado trabalhar e, embora ainda muito do que acontece dentro das fronteiras da Coreia do Norte não seja do conhecimento do mundo, a verdade tem consigo escapar escondida nas mãos das vítimas que encontram forma de se fazer ouvir, apesar de um regime que silencia.
Na conclusão do seu relatório, a organização resume: “O nosso objetivo é simples: investigar, analisar e preservar provas que possam ser utilizadas por atores da justiça nacional e internacional que procuram responsabilizar os criminosos da Coreia do Norte numa jurisdição por todo o mundo”.