“A pessoa que esticava a mão para um carinho era a mesma que abusava de mim”

“A pessoa que esticava a mão para um carinho era a mesma que abusava de mim”

A minha história, apesar de ser minha, é igual à de tantos homens.

Tinha 10 anos e ele era um amigo da família, um homem bem-visto na comunidade, em Setúbal. Os abusadores não passam o seu tempo a seduzir as crianças, passam-no a seduzir os adultos, para não serem vistos como uma pessoa perigosa e assim poderem aproximar-se sem qualquer tipo de suspeita. Foi o que me aconteceu.

Ele vivia perto do campo de futebol onde eu jogava à bola com os meus amigos. Aparecia lá e fazia perguntas perfeitamente inofensivas para se aproximar de mim e de outros rapazes. Aqueles que lhe dessem mais correspondência eram em quem ele investia para começar a entrar na intimidade. Dizia-nos que podíamos ir beber água lá a casa ou ver televisão enquanto descansávamos.

Somos educados para confiar nos adultos, por isso nunca estranhei a atenção que me dava. Nunca tive medo dele, nem quando começou a isolar-me dos meus amigos para poder sexualizar a conversa.

Estávamos a ver televisão e ele despia um pouco a camisa, para mostrar os pelos do peito. Noutro dia, desapertava o cinto, tentando suscitar a minha curiosidade. Fazia-me perguntas de cariz sexual: se já tinha pelos, se algumas partes do corpo cresciam quando eu me tocava… É preciso lembrar que, naquela idade, tudo o que se relacionava com a sexualidade era tabu. E ele apresentava-se como um amigo com quem eu podia falar sobre isso.

O ambiente estava criado para, quando começasse a avançar, já não fosse estranho. Era o resultado de um longo caminho de manipulação e sedução. Não se tratou do caso de um desconhecido que aparece a uma criança na rua e, do nada, começa a agarrá-la.

Fiz o que muitos homens na mesma situação fazem: tentei apagar de novo essas memórias e seguir em frente. Antes ainda o denunciei à polícia, mas estes crimes prescrevem cinco anos após a criança fazer 18 anos (até aos 23) e disseram-me: “Agora já não há nada a fazer”

Estava envolvido numa situação que tinha de ser mantida entre nós e não podia contar a ninguém. A pessoa que esticava a mão para dar um carinho, um afeto, era a mesma que abusava. Ele passava sempre uma mensagem de calma e tranquilidade e eu era uma criança carente. Outra, que tivesse mais atenção e carinho em casa, se calhar não correspondia tão imediatamente.

Começou a expor-se cada vez mais, a mostrar que estava ereto, a suscitar a minha curiosidade sobre o seu órgão sexual, dizendo-me que quando eu crescesse iria ser como ele, com pelos e pénis grande.

Um dia, que foi o último, ele tinha-me levado para a sua cama quando alguém bateu à porta. A expressão dele mudou radicalmente. Aquele homem, que se mostrava amigo, calmo e tranquilizador, estava assustado, em pânico, sem saber como reagir. Tapou-me a boca com a mão e disse-me para não fazer barulho.

Foi nesse momento que percebi que alguma coisa não batia certo. Se tudo aquilo era normal, como ele dizia, a reação dele não tinha razão de ser. Quebrou-se a confiança. Então eu, aproveitando que ele estava desarmado, vesti-me, fugi e jurei que nunca mais apareceria em casa dele. Não sabia o que se passava, mas era algo mau. Disso tinha a certeza.

Mais tarde, lembro-me de ele se cruzar comigo e com a minha mãe e de perguntar quando é que eu aparecia em casa dele – sabia que podia falar assim, abertamente em frente à minha mãe, pois nunca ninguém iria desconfiar dele.

“Foram os piores dias da minha vida”

Foram precisos 20 anos. Entretanto, o meu cérebro apagou esses momentos, num processo de sobrevivência que surge quando as memórias são demasiado fortes para uma pessoa lidar com elas. Só assim consegui seguir com a minha vida.

Mas o impacto traumático estava lá. De cada vez que um professor me dava atenção, reagia sempre de forma negativa, sem saber porquê. Não tinha confiança nas pessoas, mantinha-me à distância, pois o abusador era alguém em quem eu confiei. Tentava justificar estas atitudes como sendo parte integrante da minha personalidade, quando na verdade se deviam ao trauma.

Não significa que eu andasse por aí combalido ou sofrido. Sempre fui extrovertido, social, fazia teatro, tocava música, aprendia karaté. Quem olhasse para mim, era uma criança como as outras. Só que internamente a minha realidade era diferente. Como o lado emocional me doía, passei a ser extremamente racional.

Perto dos 30 anos, numa das vezes que vim a Setúbal visitar a minha família, há alguém que me acena, ao longe, como se fosse um amigo de infância que não via há anos e queria muito falar comigo. Era ele. Senti um murro no estômago, sem perceber a razão. Virei imediatamente as costas e fui para a minha casa, em Lisboa, muito confuso. Não consegui dormir, pois comecei a lembrar-me de tudo, do abuso, da manipulação… Passei várias noites em claro. Foram os piores dias da minha vida.

Fiz o que muitos homens na mesma situação fazem: tentei apagar de novo essas memórias e seguir em frente. Antes ainda o denunciei à polícia, mas estes crimes prescrevem cinco anos após a criança fazer 18 anos (até aos 23) e disseram-me: “Agora já não há nada a fazer.”

Foram precisos mais cinco ou seis anos para procurar ajuda, quando voltei a sentir muita raiva, muito nojo, muita culpa. Vivia em Manchester na altura e recorri a uma associação que me acompanhou no processo de recuperação do trauma, de desconstruir a narrativa de uma vida, em que me considerava culpado pelo abuso. Só então percebi que ele é que seduziu, manipulou e abusou.

Quase no final do meu processo, pensei que se vivesse em Lisboa não teria nenhuma associação a que recorrer. Foi então que voltei para Portugal e fundei a Quebrar o Silêncio para dar apoio a outros homens que passaram por situações semelhantes e que precisam de ajuda para ultrapassar as consequências do abuso.

Palavras-chave:

Mais na Visão

Mais Notícias

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

Toca a dançar!

Toca a dançar!

Netos de Carlos Gustavo foram os grandes protagonistas do 78.º aniversário do rei

Netos de Carlos Gustavo foram os grandes protagonistas do 78.º aniversário do rei

Lloyd Cole em digressão acústica: As canções como elas são

Lloyd Cole em digressão acústica: As canções como elas são

Nova carta do The Yeatman: Ricardo Costa volta a navegar do mar ao rio (com um desvio à Bairrada)

Nova carta do The Yeatman: Ricardo Costa volta a navegar do mar ao rio (com um desvio à Bairrada)

Vencedores do passatempo ‘A Grande Viagem 2: Entrega Especial’

Vencedores do passatempo ‘A Grande Viagem 2: Entrega Especial’

Cristina Ferreira volta a mostrar vestido de noiva que a inspira

Cristina Ferreira volta a mostrar vestido de noiva que a inspira

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

Teranóstica: O que é e como pode ser útil no combate ao cancro?

Teranóstica: O que é e como pode ser útil no combate ao cancro?

Casas sim, barracas não. Quando o pai de Marcelo Rebelo de Sousa ajudou os ocupantes do Bairro do Bom Sucesso

Casas sim, barracas não. Quando o pai de Marcelo Rebelo de Sousa ajudou os ocupantes do Bairro do Bom Sucesso

25 peças para receber a primavera em casa

25 peças para receber a primavera em casa

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

Cláudia Vieira e as filhas em campanha especial Dia da Mãe

Caras conhecidas atentas a tendências

Caras conhecidas atentas a tendências

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Os

Os "looks" de Zendaya na promoção de "Challengers", em Nova Iorque

Tesla introduz novo Model 3 Performance

Tesla introduz novo Model 3 Performance

Vacheron Constantin traz celebrações a Lisboa

Vacheron Constantin traz celebrações a Lisboa

Em “Cacau”: o reencontro emotivo de Justino e Cacau no hospital

Em “Cacau”: o reencontro emotivo de Justino e Cacau no hospital

Meta perde 3,8 mil milhões de dólares em Realidade Aumentada e Realidade Virtual

Meta perde 3,8 mil milhões de dólares em Realidade Aumentada e Realidade Virtual

Prepare a mesa para refeições em família

Prepare a mesa para refeições em família

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

TAG Heuer Formula 1 acelera para 2024 com Kith

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

Regantes de Campilhas querem reforçar abastecimento de água e modernizar bloco de rega

JL 1396

JL 1396

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Receita de Bolo de maracujá, por Fabiana Pragier

Receita de Bolo de maracujá, por Fabiana Pragier

Protótipo do Polestar 5 'abastece' 320 quilómetros de autonomia em apenas dez minutos

Protótipo do Polestar 5 'abastece' 320 quilómetros de autonomia em apenas dez minutos

Atualizações suspeitas no Google Chrome? Não se deixe enganar pelo trojan Brokewell

Atualizações suspeitas no Google Chrome? Não se deixe enganar pelo trojan Brokewell

Ensaio ao Renault Scenic E-Tech, o elétrico com autonomia superior a 600 km

Ensaio ao Renault Scenic E-Tech, o elétrico com autonomia superior a 600 km

O 17.º aniversário da infanta Sofia em imagens

O 17.º aniversário da infanta Sofia em imagens

Portugal: Cravos que trouxeram desenvolvimento

Portugal: Cravos que trouxeram desenvolvimento

TVI estreia série baseada em caso que chocou o país: saiba tudo sobre “A Filha”

TVI estreia série baseada em caso que chocou o país: saiba tudo sobre “A Filha”

Equipe a casa no tom certo com aparelhos eficientes e sustentáveis

Equipe a casa no tom certo com aparelhos eficientes e sustentáveis

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

Decoração: a liberdade também passa por aqui

Decoração: a liberdade também passa por aqui

Capitão Salgueiro Maia

Capitão Salgueiro Maia

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra "seis prioridades para próximos 60 dias"

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

Os melhores sapatos para usar com calças de ganga flare

Os melhores sapatos para usar com calças de ganga flare

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Liliana Campos celebra aniversário no Lago Como

Liliana Campos celebra aniversário no Lago Como

25 de Abril, 50 anos

25 de Abril, 50 anos

A inspiração de que precisa para as suas unhas de primavera

A inspiração de que precisa para as suas unhas de primavera

Grafologia: o que a sua letra diz sobre si

Grafologia: o que a sua letra diz sobre si

Apple tem seis meses para ‘abrir’ o iPadOS

Apple tem seis meses para ‘abrir’ o iPadOS

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites