O local é discreto. As paredes exteriores e as janelas estão pintadas de branco e a porta está sempre aberta para quem quer e precisa, desde as nove da manhã. No interior a azáfama é notória: alguns dos utentes da sala de consumo fixa, enquanto esperam pela sua vez, ajudam a decorar a árvore de Natal do espaço que já consideram seu. Riem, dançam ao som dos Backstreet Boys, e alguns fumam tabaco na sala perto da entrada, onde se lê “Café Conforto” na parede.
Aberta desde maio deste ano, a única sala de consumo vigiado de Portugal já recebeu mais de 900 utentes. “Antes de este espaço abrir houve um diagnóstico que foi feito pelas equipas que estavam no terreno e estimou-se que ao fim de um ano teríamos mais ou menos 300 pessoas inscritas neste projeto. Hoje, estamos abertos há mais ou menos seis meses e temos mais de 900 pessoas”, conta Roberta Reis, psicóloga e coordenadora técnica do espaço.
Rui, nome fictício, de 45 anos, é uma das pessoas que frequenta a sala de consumo regularmente. Conta que nunca teve medo de entrar neste espaço porque “é muito melhor do que consumir na rua, ao frio, ao vento e à chuva”. “Quando tenho tempo, venho cá duas ou três vezes por semana, mas esta casa é muito boa”, diz acrescentando que “foi principalmente bom para a malta do bairro porque tirou as pessoas que consumiam da rua. Agora temos um sítio para estar”.
O utente vai ter de esperar meia hora para entrar numa das salas de consumo que existem no espaço. Lá dentro já estão seis pessoas a fumar, sempre vigiadas por uma psicóloga e por um enfermeiro. Do total de pessoas inscritas, 86% são do sexo masculino e a idade média dos utentes é de 44 anos. No espaço é-lhes permitido o consumo por via fumada – a técnica mais usual (72% do total) – ou intravenosa, havendo uma sala dedicada a cada método.
“Esta sala é um serviço de apoio integrado, o que significa que para além das salas de consumo, temos o serviço de lavandaria, os balneários – onde as pessoas podem fazer a sua higienização-, um espaço de convívio onde fazemos atividades com os utentes e onde se pode fazer pequenas refeições”, começa por descrever Roberta. “Disponibilizamos apoio psicossocial – onde tentamos identificar a problemática de cada pessoa, fazemos rastreios, e vem cá um médico de clínica geral uma vez por semana”. O receio inicial era de que as pessoas rejeitassem este serviço, “mas a verdade é que as pessoas sentem-se seguras aqui, não só em termos de saúde, mas porque na rua eles estão completamente expostos e aqui existe essa proteção.”
Apesar de Rui elogiar os serviços que existem disponíveis para quem precisar – “Não é o meu caso, graças a Deus, mas eles ajudam muitas pessoas: dão banho, lanche, pequeno-almoço e roupa” – diz que o espaço é pequeno e que já devia ter aberto há mais tempo, dando o exemplo de locais como a Cova da Moura ou da Bela Vista. “Só dá para fumar seis pessoas de cada vez e às vezes a ânsia é tanta que as pessoas não aguentam, arranjam um buraco qualquer e fumam”, conta. “Eu vou aguardar aqui meia hora e está tudo bem, mas há gente que não aguenta e por isso acho que deviam de arranjar um local com mais espaço ou alargar este”.
“Um espaço como este era possível existir desde 2001”
“Em 1998, Portugal enfrentava uma grande crise de drogas e, na altura, foi feito um questionário à população e chegou-se à conclusão de que a principal preocupação dos cidadãos era o excessivo consumo de drogas, sobretudo com heroína”, começa por explicar Daniela Gomes, autora da tese “Salas de Consumo Assistido: O que dizem os profissionais?” e especialista em consumo vigiado.
Foi nesta altura que se descriminalizou o consumo de droga, o que resultou numa estratégia nacional de luta contra a droga. Mais tarde saiu o decreto de lei 183/2001 de 21 de Junho. “Isto quer dizer que o consumidor tem liberdade de escolha e se quiser continuar a consumir tem estruturas que o apoiam e que vão reduzir riscos. Portanto, um espaço como este, como sala de consumo, era possível existir desde 2001”.
“Não havia educação para o consumo logo o nível de dependência não descia. Todas as pessoas que consumiam eram vistas como criminosas, a toxicodependência era considerada um crime. O que aconteceu é que esta forma de lidar com o problema não estava a funcionar então começou a olhar-se para o problema como uma doença e deixou de ser um crime”, explica a Roberta. “A criação desta lei é fundamental para que se possa criar todo este espaço e acompanhamento e tratamento, redução de danos, a educação para o consumo e diminuição das taxas por HIV”, algo que já existe no resto do mundo há 30 anos.
Uma das primeiras soluções encontradas foi a das unidades móveis, que, como explica Daniela, “tinham o benefício de se deslocarem junto dos necessitados. Mas a desvantagem é que estas carrinhas apenas disponibilizam um local para consumo injetável, não havendo apoio para os que fumam – a técnica mais comum nos dias de hoje”. Por isso, afirma, as soluções fixas são um mecanismo mais completo, quando distribuídas pelo território. “Haver uma sala de consumo é ótimo, mas nós também sabemos que são precisas mais porque as pessoas mais desfavorecidas não se conseguem ou não querem deslocar muito do seu ambiente”.
No entanto, este não é um projeto só destinado aos consumidores: é para a comunidade em si. “Este é um tema sempre muito controverso porque as pessoas só acreditam que a sala serve para consumir, fomentando o consumo de substâncias. Mas na verdade não é isso, é exatamente o oposto”, explica a coordenadora técnica. “O consumo já existe, só faz sentido haver salas onde há problemas com o consumo e esta sala está localizada num bairro que historicamente tem essa condicionante e necessidade”.
Na sala, por dia, existem cerca de 100 a 110 atos de consumo, com uma média diária de 200 pessoas que passam pelo espaço. Muitas das pessoas que chegam ao local têm como objetivo consumir, mas muitas – as que não consomem ativamente no momento – passam pelo conforto e pela segurança que lhes é dada, visto que 18% está em situação de sem abrigo.
Roberta reforça que o objetivo é promover a educação para a saúde, trabalhando na perspetiva de redução de danos. “Queremos devolver a dignidade às pessoas que consomem drogas, prevenir as overdoses e as mortes a ela associadas, assim como reduzir a transmissão de doenças infeciosas, quer do consumidor ou da comunidade em geral”.
“Percebemos a necessidade deste espaço e esperemos que nunca fique sem financiamento”
Este é um projeto-piloto, o que significa que tem duração de um ano. “Neste momento o projeto é suportado pela Câmara Municipal de Lisboa e que depois será também da responsabilidade do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências]”, explica Roberta. Passado o ano de teste, “vai a concurso público e qualquer IPSS pode se candidatar para o financiar”.
Questionada sobre a possibilidade de falta de financiamento, a coordenadora técnica não prevê esse cenário: “Pela procura, nós percebemos a necessidade deste espaço, e por isso esperemos que ele nunca fique sem financiamento”. Mas para isso, é preciso que também o bairro perceba da importância da sala. “No início a comunidade local tinha outras questões que achavam que eram mais importantes antes da sala. Por exemplo, achavam que era primeiro necessário mais transportes porque eles estavam presos, ou até mesmo o saneamento e o tratamento da água”, conta. Depois de esses problemas serem respondidos, a população aceitou melhor a ideia.
“No início previu-se que seriam abertas três salas: aqui, no Loureiro e no Lumiar”, explica Roberta. Por normal, e como explicou, os processos são mais complicados quando a comunidade não concorda com as salas, o que acontece nas outras regiões. “Acham que não é necessário, mas o problema está lá. Sabemos que são necessários mais espaços destes em Lisboa, mas por enquanto somos a única em Lisboa e em Portugal”.
Até à abertura destas salas, Rui e os outros utentes usufruem da sala da Rua Quinta do Loureiro Nº14. Aqui sabem que estão “completamente seguros”, que são bem recebidos e que “não nos falta nada”. “Isto já é como se fossemos todos amigos e uma família”, diz o utente, a sorrir. “Este espaço é nosso”.
“Não se sabe quando é que a sala do Porto vai abrir”
A abertura da sala de consumo do Porto, perto de Serralves, estava prevista para Setembro. Daniela Gomes explica que, numa fase inicial, foi aberto um consórcio com várias associações que trabalham na área das dependências no Porto. “O que aconteceu é que uma das associações, a meio do processo, acabou por desistir e criar um outro consórcio”, o que acabou por atrasar o processo. “E por isso, não se sabe quando é que a sala do Porto vai abrir”. Segundo o Jornal Público, a Santa Casa da Misericórdia do Porto é a líder de um dos grupos que concorrem à gestão do programa. “As propostas dos dois consórcios concorrentes foram entregues no final de Julho e estão neste momento na fase final de análise por um júri presidido por Henrique Barros. O gestor do programa eleito firmará um contrato com a Câmara do Porto, que irá assegurar 270 mil euros para operacionalizar o projeto-piloto, com a duração de um ano”, lê-se no artigo. Na última semana, Cristina Pimentel, vereadora da Ação Social da Câmara do Porto, disse que espera “em breve” revelar a decisão do júri sobre o consorcio. “Decorreu o concurso e está, neste momento, em audiência prévia”, afirmou, na reunião do executivo da Câmara do Porto.