“Corpos com vaginas”, foi assim que a revista médica Lancet se referiu a metade da população humana ao publicar estas palavras na capa da edição do passado dia 25 de setembro, em detrimento da palavra “mulheres”. “Historicamente, a anatomia e a fisiologia dos corpos com vaginas têm sido negligenciadas”, lê-se. Não tardaram as indignações e reclamações sobre uma linguagem que desumaniza o ser humano.
A escolha de palavras foi criticada por Claire Heuchan, escritora feminista negra, que questionou porque é que os homens não são chamados de “corpos com pénis”. “A misoginia médica existe e recusar-se a reconhecer as mulheres só a perpetua”, acrescentou a ativista nascida na Escócia. Também David Curtis, psiquiatra já reformado, se fez ouvir, após a credibilidade da publicação científica com os artigos revistos pelos pares ser posta em causa. “É realmente difícil imaginar os investigadores quererem enviar os seus artigos para a Lancet, quando acham correto referir-se às mulheres com uma linguagem que seria considerada inadequada até no Red Light District”, escreveu no Twitter. David Robertson, pastor evangélico, acusou a revista de “negar a humanidade dos seres humanos, separando-nos dos nossos corpos. Note-se que não são pessoas com vaginas, são corpos”, analisou.
Em pouco tempo, Richard Horton, editor-chefe da Lancet, veio a público com um pedido formal de desculpa, admitindo que aquelas palavras deram “a impressão de que desumanizamos e marginalizamos as mulheres”, mas “ao mesmo tempo, quero enfatizar que a saúde dos transgéneros é uma dimensão importante dos cuidados de saúde modernos, mas que permanece negligenciada.” Richard Horton ainda defendeu o conteúdo do artigo como “um apelo convincente para reforçar o poder das mulheres, juntamente com pessoas não binárias, trans e intersexuais que sofreram menstruação, e para abordar os mitos e tabus à volta da menstruação.”
Mas, nos últimos tempos, esta não foi a primeira vez que o sexo e a linguagem se confundiram num jogo de palavras que em vez de abranger, afinal discrimina. Num hospital britânico os funcionários das enfermarias da maternidade foram instruídos para usar a expressão “nascimento de pessoas” (birthing people). No início de setembro, a congressista democrata nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez foi ao Anderson Cooper 360, programa da CNN para discutir as declarações do governador do Texas sobre a proibição do aborto após seis semanas de gestação e disse: “Nada disso tem a ver com a defesa da vida. Trata-se de controlar o corpo das mulheres e controlar as pessoas que não são cisgéneros. Trata-se de garantir que alguém como eu, como mulher ou qualquer pessoa menstruada neste país não possa tomar decisões sobre o seu corpo.”
A 18 de setembro, a União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union) republicou uma citação da juíza Ruth Bader Ginsburg, em defesa do direito da mulher poder fazer um aborto. Mas a versão desta organização não governamental, há 100 anos em Nova Iorque, substituiu todas as “mulheres” por “pessoas”. Na Grã-Bretanha, o deputado do Partido Trabalhista Keir Starmer disse estar errado dizer que apenas as mulheres têm colo do útero.
Estas mudanças linguísticas acontecem tanto por compaixão, como por medo. As organizações, instituições, médicos e políticos não querem ser vistos como os que excluem todos aqueles cujo género não corresponde a um sexo, como as pessoas trans ou não binárias, e assim atrair os olhares dos mais irados, principalmente, nas redes sociais.
A maioria dos dicionários define mulher como “ser humano do sexo feminino ou do género feminino depois da adolescência”. Mas, essa definição é para alguns ativistas uma provocação grosseira, pois consideram-na uma negação para os homens que querem ser mulheres, questionando porque não trocar a palavra “homens” por “portadores de próstata”, “ejaculadores” ou “corpos com testículos”.
No contexto médico toda e qualquer dúvida de compreensão da língua pode ser prejudicial. Veja-se o exemplo: um estudo realizado por uma instituição de caridade britânica que trata o cancro do colo do útero aponta que cerca de 40% das mulheres não têm a certeza sobre o que é exatamente o colo do útero. Por isso, pedir às “pessoas com colo do útero” que compareçam nas consultas de triagem pode não ser claro, especialmente para mulheres que têm o inglês como segunda língua.
Quanto mais estranhas e dúvidas suscitarem as palavras, mais difícil será a discussão de questões que afetam apenas ou desproporcionalmente meninas e mulheres, como sejam a mutilação genital feminina, a violência doméstica, o casamento infantil, a pobreza menstrual ou a desigualdade salarial. Mas, outras questões vão sendo postas em cima da mesa, como por exemplo, sobre se a segurança e a justiça devem triunfar face à inclusão. Devem os prisioneiros do sexo masculino, mesmo os mais violentos, mas que se identificam como mulheres irem para prisões femininas, como pode acontecer nos EUA, Grã-Bretanha ou Canadá? Os desportos femininos devem ser reservados para mulheres biológicas, ou qualquer atleta que se identifica como mulher deve ter permissão para ingressar numa equipa feminina, tal como já aconteceu, este ano, nos Jogos Olímpicos de Tóquio?
Por cá, há cinco anos, o Bloco de Esquerda trazia para a discussão pública a possível mudança do nome do Cartão de Cidadão para Cartão de Cidadania, por considerarem não respeitar a identidade de género de mais de metade da população portuguesa e por uma formulação masculina não ser neutra.