“Não faz mais porque não quer, falta-lhe ambição.” Esta é uma das afirmações que permanece atual e esconde uma verdade sombria. A imperiosa necessidade de mudar, de estar na linha da frente, de aperfeiçoar formas de fazer, de estar e de ser, parece fazer parte do paradigma social que nos governa a todos, embora uns sejam mais vulneráveis que outros a esse ditame. Se é certo que não há evolução sem mudança, também o é admitir que as vias para lá chegar são diversas e raramente controláveis. A busca incessante de melhoramento tem um nome: perfeccionismo. E isso é bom?
Depende do quanto lhe dermos espaço nas nossas vidas. Associado a bons resultados naquilo que se faz em diversas áreas da vida, este traço de personalidade é visto como um atributo adaptativo mas que tem um lado sombra: quem se rege por ele tem mais probabilidade de sentir-se infeliz.
“Está bem, mas podia estar melhor; portanto, está tudo mal”
Estar sempre a olhar para o espelho ou recorrer à balança para monitorizar à lupa pequenas imperfeições físicas, da ruga à borbulha, da estria à pequena zona de flacidez de uma parte do corpo. Guiar-se pelo lema “tem de ser ótimo ou excelente”. Refazer uma tarefa vezes em conta porque ainda não está bem e é imperativo corrigir, mesmo que tal implique ultrapassar prazos limite. Criticar, desqualificar e, até, coagir ou punir o desempenho de outros (familiares, subordinados), encarados como medíocres ou sem ambição. Assim se define, com diferenças de grau, a mente de um perfeccionista. Difícil de medir, esta variável não entra nas classificações psiquiátricas, em parte por ser transversal a várias categorias de diagnóstico como as perturbações ansiosas, depressivas e alimentares ou a doença obsessivo-compulsiva.
Até que ponto se passa ao lado da vida que se tem ao tentar fazer dela algo que se idealiza, a qualquer custo?
Ter isto, ser aquilo e ir ainda mais além, é uma demanda infernal que se alimenta da comparação e avaliação constantes, trazendo consigo o sentimento de estar numa enorme maratona sem perceber como e os fantasmas do fracasso e da desilusão. “E se eu falhar da próxima vez?”, perguntará a si mesmo alguém que atingiu a fama. “Como vou conseguir superar o resultado que obtive?”, questiona-se quem acaba de ser premiado pelo excelente trabalho com visibilidade pública. Como se sai deste filme?
Num ensaio publicado recentemente no The Economist, intitulado “A armadilha do Perfeccionismo”, o psicanalista e autor inglês Josh Cohen sugere que esta maneira de ser tem base numa versão idealizada de si que surge logo na infância, sobretudo quando o meio familiar reforça positivamente comportamentos e atitudes orientados para o sucesso, elegendo-os como a principal medida de valor pessoal. E se a felicidade estiver no caminho e não na meta? Dito de outra forma, até que ponto se passa ao lado da vida que se tem ao tentar fazer dela algo que se idealiza, a qualquer custo?
A diferença está no sal
Aspirar a ser a melhor versão de si mesmo tem um lado adaptativo. A ideia de que o esforço compensa e de que a exigência traz a excelência funcionam como ingredientes de uma receita para a realização pessoal, no rendimento escolar, nas atividades extracurriculares, na vida social e profissional. Porém, definir-se exclusivamente com base nos objetivos fixados, por si ou por outrem, e no desempenho escrupuloso dos mesmos, querendo ser sempre o melhor, é algo que pode correr mal. À semelhança de um vírus que se propaga sem freio e toma conta das funções do organismo, o perfeccionismo conduz a uma espiral de deveres que se avolumam para cumprir um ideal de perfeição. Se não for alcançado, é o fim do mundo, a humilhação, o descrédito. Para que serve, então, insistir nesse caminho?
Filipe Fernandes é psicólogo no Centro de Intervenção Psicológica e Pedagógica de Angra do Heroísmo, nos Açores, e exerce funções no Centro de Saúde local. Lembrando que o ótimo é inimigo do bom, vale-se da metáfora do sal para ilustrar o que sucede com o perfeccionismo: “Na medida certa, torna a refeição saborosa, mas se for a menos ou a mais, ela fica insossa ou estragada.”
O especialista em psicologia clínica e da saúde reconhece que “parte do problema está na ditadura da comparação e na pressão para atingir certos ideias”, a que se acrescentam “estilos parentais com níveis de exigência excessivos e rígidos na avaliação do desempenho, sem levar em conta o empenho dos filhos no processo.”
Balizar metas
A obsessão com as boas notas na escola é um bom exemplo de como os adultos podem limitar, sem se darem conta, aquilo que acham ser melhor para os mais jovens. Uma vez que as crianças são diferentes e não têm o mesmo ponto de partida, a interpretação dos resultados escolares, por parte de pais e professores, deve ter em conta que “uma nota média pode implicar mais resiliência e esforço para ultrapassar dificuldades do que uma nota elevada”.
Imaginemos um aluno com tendência para controlar tudo o que lhe acontece: ele sentir-se-á bem melhor se “tiver a noção de que tem direito aos seus limites e filtrar aquilo que lhe é exigido como ideal sem cair na comparação, que é lesiva para a autoestima.”
Sendo o perfeccionismo um conceito que envolve três dimensões – a avaliação própria, a que se faz dos outros e do desempenho propriamente dito – importa estar atento, desde cedo, aos sinais vermelhos (ver caixa) e reduzir a carga emocional envolvida, mal ela se faça sentir em doses incomportáveis.
“Os pais de crianças e jovens com um radar sensível à falha podem ajudá-los a balizar um patamar saudável de exigência”, esclarece o psicólogo.
Quando este trabalho não é feito, a probabilidade de as fragilidades escondidas virem à tona na idade adulta é grande: uma candidatura ou um trabalho cuja entrega se foi adiando por não estar “no ponto” até ser tarde demais, uma relacionamento que se desejava muito mas, por receio de falhar na hora H ou ser alvo de crítica, nunca chegou a acontecer, um projeto em que se investiu muito de si e depois de alcançado soube a pouco, ou nem se desfrutou por estar já a pensar no seguinte.
Situações como estas podem ser a gota de água que traz à superfície sintomas de mal-estar psicológico que permaneciam ocultos ou quadros psicopatológicos instalados.
Desconstruir o carrasco interno
Uma vez que se interioriza essa voz castigadora para ser mais apto, mais bem sucedido ou mais feliz, passando essa mensagem nas redes sociais, o sofrimento é quase certo.
À medida que se torna adulto, o perfeccionista critica-se a si mesmo por não corresponder às expetativas sociais do que deve ou não deve fazer ou ser. Inevitavelmente, o superego castigador – recorrendo à terminologia freudiana – acaba por estender os seus tentáculos a quem está à volta, impondo os elevados padrões de perfeição aos outros. Como se dissesse “se não forem como eu estão contra mim” ou “são menores, mais fracos, etc.”
Mesmo sem o quererem, tendem a blindar-se na sua inflexibilidade, criando dificuldades adicionais no relacionamento com familiares, amigos e colaboradores. Para muitos, o foco excessivo no trabalho e na competitividade para manter tudo sob controlo que lhes traz, com frequência, aquisições diversas e sucesso, acaba por, ironicamente, levá-los a sentirem-se vazios.
Como não ser desmancha-prazeres
Filipe Fernandes tem uma leitura para o filme em que muitos de nós, possivelmente, já entrámos: “Em vez de se aceitarem naquilo que têm de bom e de menos bom e no potencial para serem melhores, ficam centrados numa versão plastificada e dicotómica de si e da vida, sem lugar aos tons de cinzento que nela cabem.”
Só matando ideais que se revelam disfuncionais ou não adaptativos é possível restaurar o sentimento de apreço por aquilo que se tem, sem fazer depender o valor próprio de fatores externos
O que fazer quando o perfeccionismo toma conta de todas as esferas do quotidiano? “É importante perceber aquilo que é capaz de controlar e aquilo que não se controla quando se é confrontado com cascatas de exigência”, adianta o especialista.
E aqui entra a tão debatida separação entre o profissional e o pessoal e a avaliação subjetiva do desempenho: “Quando os objetivos se afiguram inatingíveis é preciso promover o diálogo interno e aprender a relativizar o valor do trabalho, pois se o seu volume não é controlável, mas o valor que se lhe atribui sim.” Ou seja, é recomendável que não se perca o pé ao ponto de ficar afetado na forma como uma pessoa se vê ou se sente na sua pele e na relação com os outros.
O mesmo se aplica a outras áreas da vida, como a esfera íntima (os melhores momentos costumam ser aqueles em que nenhuma das partes está concentradíssima na sua performance). Só matando ideais que se revelam disfuncionais ou não adaptativos é possível restaurar o sentimento de apreço por aquilo que se tem, sem fazer depender o valor próprio de fatores externos. O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade sabia-o: “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”
Você é perfeccionista se…
- rege a sua vida por padrões elevados de exigência (sem lugar a meio termo)
- concentra as atenções no erro, mais do que na tarefa em si
- duvida das suas capacidades e se condena por isso
- tem medo de ser insignificante ou julgado pelos outros
- precisa de controlar tudo o que faz (e o que os outros fazem)
- reprova quem não partilha dos seus ideais e forma de ser
Pode dar mais sal à vida se…
- ter metas mais realistas (menos propícias à desilusão)
- definir prazos para terminar projetos ou tarefas (mais vale feito do que perfeito)
- colocar o foco naquilo que faz, sem olhar para o resultado
- apreciar os momentos imperfeitos (e surpreendentes, por vezes)
- experimentar aceitar algumas coisas como elas são
- satisfazer-se com aquilo que tem/é sem ter de comparar-se