Largos milhares de telespectadores conhecem-no como comentador de casos de crimes e de assuntos de Justiça nos programas de Cristina Ferreira. Mas António Teixeira é muito mais do que isso. Talvez seja o investigador da Polícia Judiciária (PJ) que mais homicídios resolveu ou ajudou a resolver, durante os 33 anos, de 1978 a 2011, em que trabalhou no ex-libris da averiguação criminal, sempre na Diretoria de Lisboa. Ele, porém, recusa-se a entrar em tal contabilidade – até porque, como diz nesta entrevista à VISÃO, perdeu a conta aos casos que deslindou. Também se percebe nas suas respostas que tinha a estoicidade psicológica para aguentar, durante três décadas, uma profissão tão tremenda, na qual caiu de pára-quedas, como revela. Hoje, aos 67 anos, mantém-se sereno e humilde. E, para o ver feliz, perguntem-lhe pelos netos, de quem é “avô a tempo inteiro”.
Quando começa a sua carreira na PJ?
Em 1978. Tinha saído da tropa dois anos antes e regressado à faculdade, para concluir o curso de Românicas, de que me ficaram a faltar duas cadeiras. Estaria destinado a ser professor de Francês ou de Português. Ao mesmo tempo, empreguei-me numa firma de um amigo que vendia perus. Foi-me dada como tarefa a disseminação do consumo de peru, pelo que corria supermercados, cantinas de universidades…
Disseminação?…
Estávamos num tempo em que a carne de peru apenas se comia no Natal e na Páscoa, basicamente. Cabia-me fazer com que as pessoas se interessassem pelo produto, para depois o encomendarem à empresa. Era um trabalho bem remunerado, devo dizer.
E, no entanto, acabou na PJ…
Houve uma amiga minha que me disse que a PJ tinha aberto um curso de acesso. Era hipótese em que nunca tinha pensado. Mas ponderei melhor e decidi fazer os testes iniciais, em 1977, que já na altura eram bastante difíceis. E passei.
Começou logo pelos homicídios?
Após completar-se o curso, fazia-se um estágio em que passávamos uns tempos em cada setor da PJ. Até que passei pela Secção de Homicídios e lá fiquei.
Por vontade própria ou mera colocação?
Foi uma conjugação das duas coisas. Tinha antes manifestado a minha preferência por aquele tipo de investigação e as chefias convidaram-me para ficar nos homicídios. A investigação de homicídios é a mais clássica, que tem, por exemplo, a ver com os policiais que lemos de Agatha Christie e por aí adiante. Era esse o fascínio – embora não lidasse bem com sangue, cadáveres e tudo o mais. Mas com o tempo habituei-me.
No seu primeiro caso, qual foi a principal sensação que sentiu?
Nas primeiras vezes em que se está perante um cadáver, e mesmo que o corpo se encontre numa sala grande, ocupa o espaço todo. E perguntamo-nos: “O que é que vou fazer com isto?”
“A casa era pequena e pingava sangue e tecidos do teto. Tinha de ter cuidado para não pisar partes de corpos”
E o que fazia?
Tinha de observar as lesões e realizar o exame do hábito externo, que consiste em verificar o que está por detrás do cadáver, se há suspeita de intervenção criminosa ou não. Se o corpo, por exemplo, está vestido, é preciso ver se as roupas têm manchas, se há rasgões, que podem levar a pensar no uso de uma faca ou de objetos contundentes. É crucial observar o cadáver com olhos de ver, mesmo em homicídios evidentes. No início era difícil. Mas com o tempo e a experiência começa a fazer-se de outra forma e com maior facilidade.
Tinha uma ligação próxima aos peritos de Medicina Legal?
Muito próxima. Quando tinha dúvidas fazia-lhes perguntas, queria assistir, e é assim que se aprende.
Assistia às autópsias?
Assisti muitas vezes.
Mas durante muitos anos o apoio laboratorial à investigação foi fraco…
No princípio da minha carreira, o laboratório fazia apenas a análise do grupo sanguíneo, e depois verificava-se se existia suspeita de envenenamento, porque nessa altura havia bastantes casos, na maior parte com a utilização do 605 Forte. Mas no caso mais grave deste género que tive, e que ocorreu numa família de Santarém, a mulher, a filha e até o namorado envenenaram o marido e pai com um formicida composto à base de arsénico. Davam-lho às colheradas e ele não morria. Até que morreu, claro.
Afirmou que, com o tempo, se habituou a lidar com o lado repugnante, digamos assim, da sua profissão. Isso é mesmo possível?
Habituar-me, habituar-me… Ainda hoje me lembro de entrar numa casa em que um indivíduo tinha morto à queima-roupa a filha, com um tiro de caçadeira. Havia sangue e miolos por tudo quanto era lado. Depois deu dois tiros na mulher e, a seguir, disparou contra ele próprio. A casa era pequena e pingava sangue e tecidos do teto. Parecia um filme de terror. Tinha de ter cuidado para não pisar partes de corpos. É impossível, de facto, lidar bem com isto.
Quantos homicídios resolveu ou ajudou a resolver?
Essa é uma pergunta de resposta impossível. Os homicídios são sempre muitos. Mas já ocorreram em Portugal com muito maior frequência do que hoje acontece. Em termos comparativos europeus, nunca atingimos registos assustadores. Na década de 1980 talvez tenhamos chegado a 170 homicídios num ano, mas hoje estamos em cerca de 90. Também a génese dos homicídios mudou. Dos assaltos violentos e dos ajustes de contas relacionados com o tráfico de droga, que caracterizaram, por exemplo, aquela década, hoje em dia grande parte dos homicídios ocorre no interior de famílias – por violência doméstica ou vingança. E temos índices de sucesso, na resolução de crimes, muito bons.
Qual é o tipo de homicídio mais difícil de investigar?
Aquele em que não há relação entre a vítima e o autor. Perante um homicídio, a lógica do investigador é a de chegar a quem tinha a oportunidade e a quem “lucrava” com essa oportunidade. O grande problema surge quando não se sabe porque aquilo aconteceu. Esses casos são excecionalmente complicados.
E qual foi o caso que mais o chocou?
Foi o de um miúdo de nove anos que se enforcou porque os pais estavam num divórcio litigioso e, naquela altura, cada um deles puxava-o para um lado, para que o filho passasse o Natal na respetiva casa. Com aquela idade, o miúdo se calhar pensou: “Eu enforco-me só para chamar a atenção, mas depois ressuscito.” Tive um baque no coração.
Que espaço há para a vida particular de um investigador de homicídios?
Tinha muito pouco tempo para estar em casa. A zona da Diretoria de Lisboa ia das Caldas da Rainha até ao princípio do Algarve. Em determinada altura houve uma faixa que foi retirada para a investigação criminal de Setúbal, mas era uma área pequena. Estava de prevenção e de repente havia uma suspeita de um homicídio em Casa Branca, no Alentejo. Hoje chega-se lá num instante, mas naquela altura não era assim. E lá íamos nós por aí abaixo numa carrinha Peugeot 504, o que havia no princípio da minha carreira, e tínhamos de ficar por ali uns dias. Mais tarde, cheguei a estar como único inspetor-chefe nas três brigadas de Homicídios da Diretoria de Lisboa. Foram largos meses naquela situação e aí é que não tinha mesmo tempo para nada. Estava sempre de prevenção.
“Já tinham percorrido uns 20 km e um deles lembrou-se de que não tinha tirado o relógio ao taxista que haviam assaltado, espancado e baleado. Voltaram atrás”
Qual foi o seu recorde de noites sem ir à cama?
Não sei, mas durante muitas e muitas noites não fui à cama. Quantas vezes, por causa de buscas, levantávamo-nos de madrugada e depois passávamos a noite a examinar o material apreendido. Nunca houve horários. A minha mulher não contava comigo para nada. Nunca sabia quando eu vinha para casa ou não. Telefonava-lhe a dizer: “Olha, hoje não posso.” E ela: “Quando é que voltas?” E eu: “Sei lá…” A minha mulher e o meu filho pagaram caro a profissão que escolhi. Mas agora sou avô a tempo inteiro – tomo conta do neto e da neta sempre que posso.
Somos um povo mais violento do que parece?
Não. Durante os últimos dez anos, segundo as contas dos relatórios de segurança interna, a criminalidade violenta desceu imenso. Estamos a falar de assaltos à mão armada, de raptos e por aí adiante. É preciso ler com atenção aquilo que acontece.
Mas há sempre exceções à regra…
Claro. Participei, por exemplo, numa investigação a um grupo de três indivíduos, que faziam assaltos por todo o lado e atuavam nas zonas das Caldas da Rainha e de Santarém. A investigação começou com a morte de um taxista. Pegaram no homem em Vila Franca de Xira, disseram-lhe que iam para a Nazaré e, a meio do caminho, mandaram-no parar. Tiraram-no do carro, espancaram-no, deram-lhe um tiro, roubaram-lhe tudo o que tinha, e foram-se embora no táxi. Já tinham percorrido uns 20 km e um deles lembrou-se de que não tinha tirado o relógio ao taxista. Voltaram atrás, viram que o homem tinha-se arrastado uns metros, e deram-lhe mais um tiro, agora na cabeça. Veja-se como às vezes a mente humana pode funcionar.
Em tantos anos na PJ, nunca fez uma “perninha” noutra secção?
Às vezes, nas férias, substituía a coordenadora dos crimes sexuais. E numa dessas alturas houve uma participação de uma violação, um caso de pessoas com alguma cultura. A violação levou à separação do casal porque o marido entendia que a mulher não tinha resistido o suficiente ao agressor. Como se ela fosse culpada! Isto é terrível, num crime que marca uma pessoa para o resto da vida.
Como correu a passagem do remoinho dos homicídios para uma vida normal, quando se reformou?
Pensei nisso tão seriamente que, quando saí, fui trabalhar como voluntário, todos os dias, com crianças e jovens autistas e com trissomia 21, numa cooperativa de solidariedade social. Fazia com eles tarefas do género de mudar plantas de um lado para o outro, de lhes mostrar como se plantava, para saberem que os feijões ou as batatas não eram criados no supermercado.
Isso soa a uma espécie de terapia também para si…
Sim, foi.