O dia é 30 de Abril de 1982. Dom António Ferreira Gomes, bispo resignatário, recebe a medalha de ouro da cidade. A companhia Seiva Trupe estreia A Dama de Copas e José Carlos Ary dos Santos declama até que a voz lhe doa no João Sebastião Bar.
O Coliseu anuncia boxe profissional a 250 escudos o bilhete, para maiores de 14. Mas o Porto, que amanhece solarengo, tem a noite pendente dos meses de brasa vividos à conta de uma guerra inflamada por dirigentes sindicais, políticos e editores de jornal: pela primeira vez, e com a cumplicidade do Governo Civil, a UGT vence a CGTP na batalha pela primazia da Baixa nas comemorações do dia do trabalhador.
Risco de confrontos, berra-se nas primeiras páginas. Prevenindo, a Polícia de Choque, dita de Intervenção, avança de Lisboa para o Porto munida de escudos, bastões, G-3, pistolas e gases lacrimogéneos. Vai sedenta, levando homens ignorantes, do mais inculto e agressivo que o País pariu, há-de dizer-se publicamente. Há comícios marcados de véspera e na Avenida dos Aliados desenham-se as trincheiras: os apaniguados de Torres Couto, que hão-de manter-se em contacto permamente com a PSP, instalam-se junto à Câmara, protegidos por um cordão policial. A CGTP ocupa a outra fatia da sala de visitas da cidade. Um braço humano de “intersindicais” insulta e protesta pelo aparato, junto ao evento da UGT. A Baixa é do povo, gritam. É noite, nove horas. A RTP transmite Plantão de Polícia, O Estrangulador da Praça Tiradentes. E anuncia, para dali a pouco, o concurso Toma Lá, Da Cá. O boxe já começou no Coliseu.
‘Comem todos’
O comando distrital da PSP assume as operações. Dispersa à bastonada, sem grandes escaramuças, alguns agitadores. Às 23 horas, Ramos Rocha, comandante das forças no terreno, adivinha um resto de noite calmo: “Não deve haver mais problemas”, diz. Mas Magalhães Teixeira, comissário e responsável directo pelos pelotões da “polícia de choque” em diversas artérias de acesso à Baixa, tem outros planos. Sem fazer caso da aparente tranquilidade e das ordens superiores para actuar apenas em “caso extremo”, ordena a carga policial. Rua a rua.
Para o que se seguiu, a Procuradoria-Geral da República não poupou nas palavras: “Agrediram indiscriminadamente todas as pessoas que se encontravam à sua frente, à bastonada e a pontapé, e às vezes com obscenidades, independentemente do sexo e da idade; quer arremessassem pedras ou nada fizessem; quer fossem em fuga ou simplesmente estivessem paradas, mormente abrigadas em paragens de autocarros ou nas soleiras dos prédios. Todos eram agredidos, muitas vezes de forma selvática e por mais de um elemento policial contra a mesma pessoa, mesmo que esta se encontrasse prostrada no chão e indefesa.” Durante duas horas, batem sem parar e disparam.
Os jornalistas “comem como os outros”. Estavam ali “para bater e não para chamar ambulâncias”. Entram pela urgência do Hospital Santo António, carregam sobre familiares de feridos. Foram precisos vários médicos e enfermeiros para acabar com a violência. “Pareciam cães”, lembra uma manifestante.
A maioria dos polícias que se disseram igualmente feridos, acabaram por ser tratados a “torsões lombares” causadas pela brutalidade com que usaram os bastões.
A morte saiu à rua
Passa da meia-noite. Pedro Vieira, 24 anos, operário têxtil, dirigente sindical, sai do cinema com a namorada. É apanhado pelos acontecimentos e vê-se obrigado a fugir à sanha policial. Os amigos também. Corre a caminho da ponte D. Luíz, em direcção a Gaia, onde mora.
Um polícia dispara, pelas costas, ia a perseguição no início da avenida da ponte.
Alvejado, Pedro corre ainda alguns metros, os amigos amparam-no. Por pouco tempo. Cai minutos depois, inerte, em consequência de lesões no tórax.
Quase duas horas mais tarde, Mário Gonçalves, 17 anos, olha, incrédulo, para as cenas que se desenrolam à sua frente. É vendedor ambulante, não é manifestante, observa apenas, enquanto conversa com os amigos, bem perto da Estação de São Bento. A agitação amedronta-o. Os amigos correm e ele, detrás de um muro, espreita. Um polícia dispara. E corre a confirmar o feito: um rosto de sangue olha já para lado nenhum. “Foi uma coisa horrível. O meu filho mais pequeno até se mijou com os nervos, de medo”, conta uma vizinha da vítima ao jornalista Manuel António Pina. Mário não estava a fazer nada. Era filho de gente simples, humilde. Uma das famílias que, anos depois, se há-de contentar com uma indemnização, “a primeira vez que o Estado assumiu, de algum modo, a responsabilidade por excessos da polícia”, precisa o advogado José Afonso. A 1 de Maio de 1982, a morte saiu à rua. Feridos, às dezenas. E podia ter sido pior: “Ninguém me contou. Vi um polícia tentar atingir uma pessoa pelas costas. E só não o fez porque a arma encravou no momento do disparo”, recorda Alfredo Mendes, jornalista do DN, repórter na noite sangrenta do Porto. Inquiriu-se, investigou-se, nada. Só as balas extraídas dos cadáveres têm nome: calibre 7,65 milímetros, usadas apenas por graduados (comissários, chefes de esquadra e subchefes) do Corpo de Intervenção. O País indignou-se. O Governo AD “lança a polícia na rua, deixa que agentes enfurecidos persigam gente desarmada”, escreve-se no editorial do semanário O Jornal, reclamando apuramento de factos até às últimas consequências.
Ramalho Eanes, Presidente da República, indigna-se. Pede-se a demissão de Angelo Correia, ministro da Administração Interna, então figura do anedotário nacional, por causa de rocambolescas e mal explicadas investigações. Ele não se demite.
Maio adentro. Intersindical e UGT responsabilizam-se mutuamente. Rui Oliveira e Costa acusa a Inter de utilizar trabalhadores “como carne para canhão”.
O Governo lava as mãos. O Papa João Paulo II chega dali a dias. A CGTP pede uma audiência a Sua Santidade para relatar os acontecimentos. “Agenda carregada”, respondem do Vaticano. O bispo também não recebe. O pároco da Sé recusa dizer missa em homenagem aos mortos do 1.° de Maio. O funeral das vítimas entope as principais artérias da Baixa do Porto. Irrigam-se de indignação as ruas. O País veste de luto. Torres Couto comenta: “Foi uma passeata de dois caixões pela cidade.”
Quando a CGTP derrubava governos
Maio de 1982. Sucedem-se as crises no seio da coligação, o País arde em greves, manifestações. As notícias dão conta das dificuldades de Ramalho Eanes, inquilino de Belém, para deitar água nas fervuras. Pinto Balsemão preside ao Governo da AD. Mário Soares é o líder da oposição. Álvaro Cunhal é o secretário-geral do PCP. Mas a esquerda nem sequer admite falar de pontes para a convergência. UGT e CGTP radicalizam acusações.
A crise económica é um facto. Noticia-se o saneamento de dirigentes sindicais, o despedimento de mulheres grávidas. Os acontecimentos do Porto, quase poderia dizer-se, são um retrato da época. Carregado nas tintas. Um ex-dirigente sindical remata: “A sociedade portuguesa está, felizmente, mais distendida. Isso era no tempo em que a CGTP ainda derrubava governos.”