Sair para rua e socializar por aí. Abraçar, beijar, flirtar. Ir a festas como se não houvesse amanhã. Algo que se fazia sem reservas e que, há pouco mais de um ano, se tornou uma missão arriscada ou impossível. Ainda que o kit de proteção contra o inimigo viral – máscara, distanciamento social e lavagem / desinfeção das mãos – continue a ser o nosso companheiro de estrada e apesar da vacinação e a imunidade de grupo já estiveram mais longe, palavras como “pandemia”, “risco”, “infeção” infiltraram-se nos nossos circuitos cerebrais e só vamos perceber o seu impacto quando desconfinarmos, outra vez.
“Aprendemos com o passado recente; a euforia que existiu desde Novembro saiu-nos cara”, começa por dizer a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva, lembrando que no verão tivemos uma amostra de como pode vir a ser esta nova fase: usufruir da experiência de estar num restaurante, numa esplanada ou num espaço público, mas não como era costume antes da pandemia. “Interiorizaram-se novas regras de higiene nos locais de trabalho e de lazer, como a etiqueta respiratória e a manutenção do uso de máscara em espaços fechados e isso vai continuar nesta fase de transição”.
O confronto com “a nova temporada” da sequela pandémica traz consigo um paradoxo: nem se volta ao “velho normal” nem se sai do “novo normal”. Esse “normal”, ainda sem estatuto de “norma”, é outra coisa, inteiramente nova, que nos cabe configurar, porque já sabemos que a fantasia que tínhamos, “para o ano voltamos a ser o que éramos” se traduziu, depois, na contagem de estados de emergência, quais prisioneiros de cela ansiando o dia da liberdade condicional. Nada como ir devagar, porque é grande a pressa. Vejamos quais as fantasias da estação Primavera /Verão que podem tornar-se reais num futuro próximo.
Misturar-se com outros
Imersos na multidão, num jogo de futebol, num festival ou numa noite de copos. Uma fantasia ainda não passa disso, por agora. Talvez nem seja assim tão mau, pois estaremos um pouco enferrujados no que toca a práticas sociais mais simples e marcar um encontro ao vivo pode revelar-se um desafio. Com quem? Com quantas pessoas? Onde?
A liberdade pode começar a passar por aqui, mas “a possibilidade de circular pode trazer alguma inquietação sobre as opções que antes não se tinham e há novas métricas de tempo para gerir”, observa Filipa Jardim da Silva. E acrescenta: “Querer viver num mês aquilo que não se viveu num ano e estar com toda a gente ao mesmo tempo pode ser desorganizador.”
Talvez o mais sensato seja “estar em modo de auto-observação, perceber o que sente e agir em conformidade”, de forma sensata. Isto aplica-se aos programas que planear com terceiros, mas também à gestão de situações que não se controlam, como ajuntamentos indesejados. Aqui, o ideal é respirar fundo antes de dar por si a ter reações agressivas porque alguém se distraiu e ficou demasiado próximo na fila da caixa do supermercado ou da farmácia, por exemplo.
Meu querido local de trabalho
Para quem não teve o azar de ficar sem emprego e espera voltar ao ativo, ou para quem se habituou ao teletrabalho e está prestes a voltar ao batente no sítio do costume, é esperado que tenha “mixed feelings”, ou seja, ora queria, mas por outro lado, talvez não tenha tantas certezas. Como vai ser estar outra vez num open space, passados os primeiros dias de alegrias, mas com os cuidados protetores que conheceu no ano passado? A chave para evitar conflitos passa por uma comunicação eficaz. A psicóloga exemplifica: “A pessoa que tinha o hábito de deixar lenços de papel usados na secretária pode deixar o colega do lado desconfortável”. Uma dica para resolver o problema: “Abordar a pessoa colocando o foco em si e nas suas necessidades, de forma assertiva e empática, sem apontar o dedo nem culpabilizá-lo, criando espaço para um desfecho que envolve um espírito de colaboração.”
Presença sim, mas q.b.
O mote é descontrair, mas aos bocadinhos, Para quem já era hipocondríaco, germofóbico ou obsessivo, não será num piscar de olhos que deixará de continuar a sê-lo, só porque as autoridades deram ordem de soltura para encontros sociais nos espaços públicos, com os devidos cuidados.
E mesmo quem não padece destas condições poderá surpreender-se com a sua própria reação, assim que deixar o Zoom e estiver face a face com conhecidos. Há automatismos que ficaram e vão dar sinal, na hora do aperto de mão, do contacto visual e, até, da partilha de objetos, sem aquele “à vontadinha” de outros tempos do “ficaste com o meu isqueiro”, a caneta ou a colher para misturar o açúcar no café.
Até mesmo para ajudar alguém a atravessar a passadeira ou ajudar uma criança que caiu no parque será diferente do que era. Mais uma vez, não há receitas. O barómetro é aquilo que cada um sente e o exercitar a regulação de comportamentos, com diplomacia (perguntar, pedir ou afirmar na primeira pessoa).
Afetos: versão ‘gourmet’
Os psicólogos sociais falam de “campo vital” para referir o espaço que cada pessoa sente como a sua “bolha” (por exemplo, numa aula de grupo feita no ginásio, o intervalo que sente ser o certo entre si e os outros; ou numa conversa presencial com alguém, a distância que percebe como sendo segura para não se sentir invadido).
Com as restrições impostas pela pandemia e a seletividade nos contactos presenciais, rituais e gestos que simbolizavam afeto e nos eram familiares, agora podem ser só estranhamente familiares e precisar de uma moratória para se nivelar.
Os cumprimentos da praxe não serão só com cotovelos, vénias ou abraços de borboleta no próprio corpo, mas será pouco provável entrar sem reservas no registo “um beijinho, dois ou três”, ou voltar a franzir o sobrolho à criança por furtar-se aos abraços apertados da tia e aos beijinhos repenicados da avó. O meio termo está em fase de atualização.
Sabendo que ”55% das mensagens são veiculadas pela linguagem corporal”, segundo o bestseller americano Dale Carnegie (“Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas” e “A Arte de Comunicar com Sucesso”), esta será uma oportunidade para dar pistas aos outros, através do seu próprio movimento e gestos, acerca do grau em que está disponível para avançar ou recuar e alterar esses limites em função do que achar recomendável.
Decidir por si
Depois de tantas celebrações adiadas e de tantos cancelamentos de atividades sociais, desportivas e lúdicas, a espontaneidade entrou em pausa e retomá-la sem medos, ao sair da toca, não é coisa pouca. “Jovens adultos que nos ligam-nos, com crises ansiosas e ataques de pânico, percebem que têm pensamentos automáticos do tipo ‘não sou capaz de lidar com isto’, ou ‘tenho medo de ficar infetado’ que ultrapassam o limiar da razão”, afirma Sónia Cunha, psicóloga do Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise (CAPIC), do INEM. Retomar o contacto social parece estar a ser igualmente complicado “para os jovens pais, com idades entre os 20 e os 30 anos”, que além do regresso à vida ativa no plano laboral, têm questões como “quem pode ou não pode pegar no bebé e outras imposições na partilha de afetos com a criança por parte de outros familiares”.
Como se explicam estes receios todos, quando começam a existir sinais de abertura com riscos calculados? Sónia Cunha avança com uma explicação possível: “No confinamento os limites eram claros; com o alívio progressivo das restrições e o aumento da liberdade, o estabelecimento desses limites passa a ser da responsabilidade de cada um.”
Não haver uma resposta única pode ser perturbador, pelo menos numa primeira fase, por não se saber exatamente o que fazer com a liberdade que se passou a ter. O que quer que decida fazer, seja voltar a marcar uma massagem, passar um fim-de-semana fora, fazer compras ou ir a festas, estabeleça os parâmetros de segurança que não são negociáveis e quais as circunstâncias em que tem margem de risco suficiente para se sentir ok a entregar os pontos e confiar no processo.
Arriscar e petiscar
Se um não quer, dois não dançam. Ser convidado para um encontro a dois ou para continuar o flirt e as conversas virtuais picantes ao vivo é toda uma revolução. Para início de conversa, os preliminares podem incluir perguntas como “com ou sem” (a máscara, o preservativo, ambos?) ou “já fizeste o teste?” ou, ainda, “quando vais levar a vacina?”
Para quem tem um relacionamento estável, as fantasias de juntar amigos lá em casa outra vez podem ser realizadas, finalmente, e de comum acordo quanto aos mínimos a infringir ou a manter. Já as fantasias de ver o cônjuge a combinar encontros com os grupos que já tinha, sem ser só pelo WhatsApp, podem dar pano para mangas.
“Temos desejo e temos vontade mas o receio está lá”, afirma Jorge Cardoso, docente no Instituto Universitário Egas Moniz. A este respeito, o psicoterapeuta faz menção a uma frase de Dostoiévski, “O medo é o maior castigo da vontade humana” para sintetizar o estado da arte na esfera íntima pós-confinamento. Na sua prática clínica tem acompanhado casos em que lhe dizem “vou manter-me no registo online porque ainda tenho medo de sair, de concretizar”. É que “embora a perceção de risco seja menor do que há um mês atrás, o receio leva a questionar se se recua ou se avança pé ante pé”.
Nada melhor do que falar sobre isso e por as cartas na mesa com tato e sem deixar a vontade à porta. É sabido que após períodos de privação, repressão e constrangimentos nos planos sexual e relacional, se seguem fases de abertura, de libertação e de procura de afetos, porque se viveram perdas. A fantasia que pode tornar-se real num futuro sem data marcada. Jorge Cardoso reconhece que tudo é possível e conclui: “Tenho curiosidade em saber o que vai acontecer depois de estarmos vacinados ou de atingirmos a imunidade de grupo.”