Cada decisão tem os seus ganhos e, claro, os seus custos. No caso dos duques de Sussex, o príncipe Harry e Meghan Markle, o afastamento do Palácio de Buckingham significou a renúncia de algumas benesses. Tudo estaria bem, nessa separação amigável, até estalar o verniz, um mês depois (onde é que já vimos isto?), numa entrevista dada a Oprah Winfrey e transmitida na CBS.
A vida na família real britânica, descrita por Meghan, tem todos os ingredientes de um drama pouco nobre, onde nem faltam insinuações racistas e misóginas que terão levado a mulher de Harry a desejar o suicídio. O casal apontou o dedo à “firma”, classificando a instituição de disfuncional, um pouco na linha da tese apresentada na série The Crown, da Netflix, onde se ressuscita o fantasma da Princesa Diana, mais as suas perturbações alimentares e condutas autodestrutivas, sintomas de uma clausura indesejada e profundamente infeliz. Nas palavras de Harry, “a minha maior preocupação era a história repetir-se”.
No meio da terapia familiar é sabido que, num sistema doente, a cura passa pelo restabelecimento do equilíbrio no jogo de forças desse sistema. Reparados os danos e resolvida a dinâmica disfuncional, o portador do sintoma, ou “paciente identificado” (vulgo, “ovelha negra”), deixa de ter lugar. Caso tal não aconteça, o “vírus” que permanece na engrenagem tende a atualizar-se na geração seguinte. Um quarto de século depois, é tentador admitir que o fardo transgeracional da “Princesa do Povo” passou para a “Pequena Sereia” (designação da própria Meghan), o novo rosto do “terceiro excluído”, que pede justiça e não quer perder a voz (nem a vida).
Verdades, mentiras e entrelinhas
Os dados estão lançados e o drama dos protagonistas, individuais e coletivos, dá pano para mangas: de um lado, uma monarquia em apuros, a braços com o Brexit; de outro, os Estados (des)Unidos, no rescaldo de um assalto à Casa da Democracia, com problemas de racismo endémico e uma nova Presidência. Como um drama nunca vem só, o cenário traçado pelo novo coronavírus deixou todos num pandemónio que não dá tréguas a ninguém, pondo a nu um mal-estar psicológico sistémico que carece de intervenção urgente.
Não por acaso, é de saúde mental (ou falta dela) que mais se tem falado, por intermédio de protagonistas famosos. As suas questões fraturantes assemelha-se às dos comuns mortais, espetadores e participantes – nas redes sociais – numa “guerra dos tronos” em que nem falta a chamada “cancel culture”: grupos que formam em torno de uma emoção partilhada (geralmente negativa) em nome de uma verdade supostamente mais verdadeira que as outras, embora nunca se vá saber ao certo se o é, de facto.
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Essa é a pedra de toque da controversa minissérie documental de Kirby Dick e Amy Ziering, Allen v. Farrow, emitida na HBO: uma investigação de três anos, em quatro episódios, sobre a batalha pela custódia dos filhos com a conhecida atriz Mia Farrow, o casamento com Soon-Yi Previn, filha adotiva dela, e as acusações de abuso sexual, proferidas por mãe e filha, Dylan Farrow (hoje com 35 anos), contra Woody Allen, e que envolveram processos judiciais, relatórios de psicólogos, assistentes sociais e baby sitters.
O visado não falou. Na imprensa, têm vindo a surgir teses contraditórias que fazem jus à expressão “volta-se o feitiço contra o feiticeiro”, destacando-se as do blogue do filho Moses Farrow, há três anos, em que defende o pai e apresenta a mãe como a verdadeira vilã, capaz de vários tipos de maus tratos e uma história familiar com telhados de vidro. Na versão da verdade de Moses, Mia falava-lhe do avô materno ser alcoólico mulherengo, de ter sido vítima de tentativas de abuso sexual na família, do irmão dela que está a cumprir pena pela mesma razão e um outro suicidou-se, além de outros detalhes que não abonam a favor da respeitável mãe de 14 filhos que queria ter uma família feliz. “A minha mãe, é claro, tinha sua própria escuridão”, escreveu Moses Farrow. “Pelo que vejo – como terapeuta licenciado e também como testemunha ocular – é fácil ver as sementes da disfunção que viriam a florescer dentro da nossa própria casa.”
De ídolos a “companheiros”
De novo, o fardo da disfunção familiar, herdado pela geração seguinte. No caleidoscópio enlouquecedor em que se pode converter, por vezes, a vida real, o reality show Big Brother parece uma brincadeira de crianças. Neste contexto, ganha fôlego o registo documental (informação ou entretenimento?), como atesta o também recente Framing Britney Spears (em Portugal foi exibido em fevereiro, no canal Odisseia), apresentado como um trabalho de investigação do jornal The New York Times e realizado por Samantha Stark. Aqui, relata-se a tragédia da cantora americana, uma menina prodígio que alcançou o estrelato na música pop e, após uma fase marcada por distúrbios de comportamento, acabou refém da tutela do pai (que a mantém cativa, desde 2008). O movimento de fãs #FreeBritney, que luta pela libertação da artista, acolheu com agrado a decisão do juiz do tribunal de Los Angeles, poucos dias depois, negando a Jamie Spears o poder exclusivo sobre a fortuna da filha.
Estamos longe dos estudos realizados há duas décadas, sobre o culto das celebridades (idolatrar pessoas famosas), que assumia a forma de empatia quase cega face aos sucessos e fracassos de uma figura pública. Essa adoração doentia seria mais provável em pessoas ansiosas, deprimidas ou com outras vulnerabilidades psicológicas, cuja excessiva identificação aos ídolos seria uma forma de procurar neles um amparo para os desastres da vida. Agora, que todos somos “publishers” e que os intocáveis se afiguram pessoas como nós – são alvos de ordálias, revezes e capazes de exibir facetas sombrias – ficar ao lado delas será, mais do que um consolo, uma validação da sua própria humanidade (como muitos dizem, “eles também fazem cocó!”), mas o seu oposto também acontece, consoante a “verdade” de cada um. Haverá um meio termo?
O que pensam os especialistas
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Contactado pela VISÃO, o psicólogo humanista e coach americano Scott Barry Kaufman, autor do livro Transcend: The New Science of Self-Actualization e do Psychology Podcast, confirma que a validade destes estudos permanece atual: “Somos seres complexos, obcecados com a verdade sobre as coisas, sabendo que, no fundo, ninguém é totalmente santo ou demónio”. E conclui: “Queremos ver a humanidade nos outros e confirmar essa crença, de que não somos tão lineares; depois, há também a schadenfreude (“schaden” significa dano e “freude” quer dizer alegria).”
Kaufman a trazer à luz uma emoção estudada há mais de um século por Sigmund Freud – o filósofo Nietzsche designou-a de “vingança dos impotentes” – e que está bem viva no novo milénio. Confirma-o a publicação do livro Schadenfreude: The Joy of Another’s Misfortune, da historiadora cultural britânica Tiffany Watt Smith. Quando se deslocou à Universidade Nova de Lisboa para falar dele, em 2019, Smith fez saber que “os sentimentos de inveja ou inferioridade e a necessidade de se sentir melhor consigo mesmo levam a esse congratular-se pelo que corre mal aos outros”. Trata-se de um mecanismo compensatório, ampliado pelo grupo e as redes sociais, com os efeitos de polarização que conhecemos.
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Paulo Vitória, psicólogo da Universidade da Beira Interior, afirma que estes temas não aparecem na clínica da terapia familiar, mas na comunicação social, nas redes sociais, na literatura e na produção de telenovelas, séries e filmes. “São fenómenos sociais que, não sendo novos, podem assumir outras formas de descrição e de debate.”
O interesse pelos conflitos e perturbações ligados a pessoas ou famílias famosas, que são modelos sociais, intensifica-se pela “interatividade na relação com os media que permite a expressão pública e o anonimato”, sendo expectável que “desperte também o interesse dos media, que os explora de forma mais ampla e diversificada”.
O terapeuta familiar refere-se, nomeadamente, a “processos que usam a vergonha pública como estratégia de influência e de controlo social para manter a ordem pública ou, pelo contrário, para pervertê-la e promover mudanças”. E remata: “A grande diferença é que hoje estes processos são mais abertos, mais participados e mais caóticos.”