Capablanca, Alekhine, Karpov, Kasparov, Spassky, Fischer, Caruana, Carlsen… São nomes que ficaram para sempre ligados à história do xadrez, muitas vezes com uma ressonância verdadeiramente mítica. Nomes de homens que carregam em si um lastro de batalhas lendárias sempre dentro dos limites de um tabuleiro de 64 quadrados. As metáforas bélicas são muito frequentes nos discursos sobre este jogo – também visto como um desporto, uma arte ou mesmo uma ciência. Jogar bem xadrez era mesmo uma competência exigida aos mais destacados e estrategas cavaleiros medievais.
Esse imaginário com muitos séculos de história (há referências a um jogo com muitas semelhanças ao moderno xadrez praticado na Ásia antes do século VI) é fortemente masculino. Durante anos, havia mesmo a crença enraizada – que ainda pode subsistir – de que as mulheres, simplesmente, não tinham tanto jeito ou talento natural para a prática deste jogo, como se houvesse mesmo uma limitação ditada pelo género. Olhando para os rankings e para o historial de competições, essa conclusão pareceria quase óbvia (atualmente, só há uma mulher na lista dos 100 melhores jogadores do mundo, a chinesa Hou Yifan, em 89º lugar). Mas será mesmo assim?
Fizemos essa pergunta ao neurocientista Rui Costa, alguém com gosto pelo xadrez (sempre como amador) e atual diretor do Instituto Zuckerman (Universidade de Columbia, Nova Iorque). Poderá, afinal, haver alguma diferenciação ditada pelo género, no pensamento estratégico, que leva a jogar xadrez ao mais alto nível? “Há, realmente, o estereótipo de que os homens jogam melhor do que as mulheres e há estudos que apontam para essa predominância dos homens na prática ao mais alto nível. Mas estes estudos não têm em conta os efeitos das diferenças na educação desde tenra idade, com os meninos a jogarem mais jogos com componentes espaciais e geométricas, e principalmente não avaliam as diferenças ao nível da confiança. Estudos acerca das capacidades matemáticas em tenra idade, por exemplo, dizem que as meninas com a mesma aptidão e o mesmo grau de conhecimentos têm menos confiança do que os meninos, precisamente porque o viés da sociedade as influencia. Assim que os níveis de confiança aumentam, a performance em testes de matemática melhora. No mundo do xadrez há, claramente, um viés sistemático, ou mesmo sistémico; um estudo que analisou 5,5 milhões de jogos revelou que as mulheres ganham mais vezes contra homens do que seria esperado [a julgar pelos rankings], o que significa que são sistematicamente subestimadas.” E se a questão assenta, sobretudo, na confiança, então há mesmo um caminho a fazer para que as coisas mudem. “Creio que a série Gambito de Dama veio expor esse estereótipo, e apostaria que, daqui a dez ou 15 anos, teremos muitas meninas de hoje a ganharem torneios por esse mundo fora só por terem um modelo para seguir.”
Hoje é, pois, praticamente consensual que a grande diferença na performance feminina na arte de bem jogar xadrez assenta em fatores culturais e sociais com muito peso nas nossas sociedades.
“Deve o jogador guardá-la bem”
É curioso que, num universo tão masculino, o papel principal no tabuleiro seja o de uma figura feminina. A dama (é essa a sua designação oficial, embora muita vezes se lhe chame, também, “rainha”) é a peça mais agressiva e valiosa. O pobre rei só pode, pachorrentamente, andar uma casa (em qualquer direção), protegendo-se dos ataques e do mortal xeque-mate, enquanto a dama percorre, rápida e altiva, todo o tabuleiro em linhas diagonais ou horizontais. Mas nem sempre foi assim…
“Há uns anos, perder um jogo contra uma mulher era muito malvisto”,diz Dominic Cross, presidente da Federação Portuguesa de Xadrez
O livro mais antigo que se conhece exclusivamente sobre xadrez moderno foi publicado em 1512, em Itália, escrito por um português: Damião, boticário nascido em Odemira que terá ido para Itália fugindo à Inquisição. Chamava-se, no original, Questo Libro e da Imparare Giocare Scachi et de le Partite, e, depois de vertido para várias línguas ao longo dos séculos, só foi editado em português em 2008 (Livro para Aprender a Jogar Xadrez, na editora Campo das Letras, com tradução e introdução de Nuno Sá). Aí podia ler-se, na descrição da dama: “É a mais nobre peça no tabuleiro. Será como a mulher do rei e o seu local é junto do rei e há tantas peças como o rei. (…) O seu caminhar é como do roque [torre] e como do delfim [bispo] e deve o jogador guardá-la bem porque perdida a dama poucas vezes se ganha o jogo.”
Nas suas origens asiáticas, essa peça não era tão poderosa. Com a chegada à Europa e as transformações do xadrez na Idade Média, passou-se duma peça com cariz masculino (o “conselheiro” ou “vizir”) e limitada nos seus movimentos para a poderosa dama. “A rainha Isabel I, de Espanha, teve uma grande influência nessa importância da dama”, diz-nos Dominic Cross, atual presidente da Federação Portuguesa de Xadrez. Os reis católicos, D. Isabel I de Castela e D. Fernando II de Aragão, eram grandes aficionados do jogo e terão sido corresponsáveis pelas novas regras, já muito semelhantes ao jogo moderno, espalhadas a partir de então por toda a Europa. No início da história do xadrez europeu, Itália e Espanha destacavam-se na qualidade e quantidade de jogadores.
Dominic Cross, 44 anos, nasceu na Alemanha, mas vive desde os 8 em Portugal. Reconhece que cada vez há mais “boas atletas femininas” e acredita que Portugal até está bem classificado: “Recentemente estávamos em nono lugar, num total de 54 países, quanto à proporção de jogadoras no total de federados.” O primeiro campeonato nacional feminino aconteceu, por cá, apenas em 1977/78. Por todo o mundo, a maioria das competições e torneios são mistos e há, depois, paralelamente aos resultados gerais, uma classificação por géneros (ou seja: uma jogadora pode até ficar mal classificada no torneio, mas vencer na categoria feminina por ser a melhor mulher em prova).
O estereótipo continua a estar muito marcado, mas tem havido uma evolução nos últimos anos, sobretudo devido ao aparecimento de cada vez mais jogadoras federadas. “Ninguém gosta de perder, mas há uns anos perder um jogo contra uma mulher era muito malvisto… Isso está a diluir-se rapidamente, mas acredito que ainda seja sentido dessa maneira por alguns jogadores mais velhos.”
A importância de ser “maria-rapaz”
Catarina Leite, 37 anos, é, de longe, e há muito tempo, a melhor jogadora de xadrez portuguesa. “Tenho orgulho nisso, claro, mas ao mesmo tempo sinto alguma tristeza e pena por ainda não ter aparecido em Portugal nenhuma xadrezista melhor do que eu; é sinal de que não tem havido grande evolução…”, diz-nos, ao telefone, a partir da República Checa, onde vive desde 2013, depois de se ter casado com o xadrezista (Grande Mestre) checo Tomáš Oral.
Catarina é a única Mestre Internacional portuguesa, está no top 100 dos melhores jogadores nacionais e foi campeã feminina oito vezes (entre 1999 e 2006). Ouvindo as suas primeiras recordações do xadrez, é fácil imaginarmos que, por vezes, se sentiu identificada com a personagem ficcional Beth Harmon: “Tenho quatro irmãos, três mais velhos, que jogavam; eu também aprendi mas nem me entusiasmava muito com o jogo… Um dia, os meus irmãos tinham um torneio na escola, em Odivelas, e o meu pai disse que só podiam ir se me levassem também (eu tinha 8 anos e eles costumavam ficar comigo à tarde). Fui, joguei, tiveram de me avisar para não estar sempre a falar das jogadas dos outros, porque eu não fazia ideia do que era um torneio e as suas regras… E nem sabia que era uma competição nacional! Ganhei e, um ano depois, fui representar Portugal a Duisburg, na Alemanha, no campeonato mundial sub-10.”
A jogadora admite que o facto de ter três irmãos, e de ter sido uma “maria-rapaz” que gostava de jogar à bola, a pode ter ajudado a lidar bem com o ambiente masculino de todos os torneios. Aliás, vê aí uma boa razão para a grande desproporção geral que continua a haver entre homens e mulheres, no xadrez. “Há muitas jogadoras que desistem na adolescência porque sentem um ambiente hostil; não é fácil ser, muitas vezes, a única rapariga num torneio, ali a um canto, a apanhar grandes secas. E há aquela fase em que as meninas amadurecem mais rápido do que os rapazes e isso acentua-se ainda mais; elas passam a ter outras ambições, mesmo ao nível da convivência, da vida social.”
É, também, nesse confronto com um mundo muito masculino que nasce a falta de “confiança” de que falava Rui Costa. “Pessoalmente, nunca senti muito isso e recordo que, no início, nos mais jovens, há uma força de jogo praticamente equivalente entre rapazes e raparigas, sem grandes diferenças… Depois, há um abandono muito maior por parte das raparigas.”
Dominic Cross confirma a grande taxa de abandono feminino. Quase sempre são outros interesses que se impõem: profissionais e familiares. Afinal, como diz Catarina, “a profissionalização de uma jogadora em Portugal é impossível, só pode acontecer se se tiver, à partida, uma grande capacidade financeira para viajar muito e participar em torneios internacionais, porque os que há em Portugal, obviamente, não chegam para fazer uma carreira e pagar as contas…”. Ela estudou Animação Sociocultural na Escola de Educação de Lisboa; já na República Checa, fez uma requalificação profissional e dedica-se à informática, como programadora. “Conheci várias jogadoras com grande potencial mas que, simplesmente, não podiam dedicar-se a sério ao xadrez; é preciso abdicar-se de várias coisas e, sem grandes apoios, mesmo institucionais, sente-se facilmente que o esforço não é, de todo, recompensado.”
Nos torneios internacionais nunca sentiu condescendência ou discriminação por ser mulher. “A esse nível estudamos bem o nosso adversário, a base de dados com os jogos dele, não interessa a idade, nem ver as fotografias ou saber se é homem ou mulher…” Em Portugal, recorda alguns episódios, mas nada que lhe tenha tirado o sono. “Num certo clube de xadrez percebi que havia uma espécie de praxe: quando um rapaz perdia um jogo com uma rapariga, os colegas passavam um mês a chamá-lo pelo sobrenome dessa jogadora. Às tantas, chamavam-se todos Leite…”, recorda, rindo.
E as jogadoras mais jovens? Mariana Silva, 22 anos, do clube de xadrez Didaxis-A2D (de Vila Nova de Famalicão), campeã nacional em 2019, não hesita em dizer que o xadrez ainda “é um mundo discriminatório.” Frequenta um mestrado em Linguística na Universidade do Minho e começou, como quase todos os jogadores, a praticar num clube escolar, influenciada pelo pai, que era jogador federado. Recorda algumas frases muito comuns no contexto de jogo contra rapazes. “Uma das coisas que, às vezes, dizem, até pretende ser elogiosa, mas não é nada: ‘Com tanta beleza nem me conseguia concentrar…’; também acontece muito terem de arranjar justificações para perderem com uma mulher, do género: ‘Sim, perdi, mas não estava no meu melhor.’”
Mariana acredita que, como em muitas áreas em que se discutem as quotas por género, o universo do xadrez feminino como um mundo à parte é um “pau de dois bicos”: “Permite haver mais jogos e competição, mas cria uma certa separação e um teto diferente nos objetivos.” Acredita que neste desporto que é, também, “uma luta de intelectos”, sujeito a vários “preconceitos”, o contexto só poderá ser alterado com mudanças sociais profundas, “e essas demoram muitos anos a acontecer”.
Ser genial dá muito trabalho
Rita Santos, 21 anos, representou Portugal recentemente no Campeonato Mundial Universitário de Mind Sports (online, pandemia oblige). Motivada por um irmão jogador, “nem gostava muito” de xadrez, até as coisas começarem a correr bem em competição. Estuda Desporto na Universidade do Porto e dedica-se, também, ao atletismo em competições universitárias. Acredita que a maioria das mulheres “não se sente muito cativada para jogar xadrez, tem outras prioridades.” O facto de haver prémios específicos femininos foi uma motivação, mas acredita que há cada vez mais jogadoras a chegarem às classificações gerais, entre homens. Identifica-se com Beth Harmon pelo facto de ser uma jogadora muito intuitiva, menos dada às horas de estudo dos jogos dos grandes mestres. “Só queria mesmo jogar… Mais do que em livros, e no estudo de jogos, aprendo com os meus erros. Claro que sei que, se estudasse mais, podia ser melhor.”
“É nas derrotas que mais aprendemos”, diz Catarina Leite, a única jogadora portuguesa com o estatuto de Mestre Internacional feminina
Uma fragilidade que Catarina Leite aponta ao realismo da série Gambito de Dama é o facto de se focar demasiado nas vitórias de Beth: “Faz falta haver mais derrotas; são muito importantes para nós, porque é nas derrotas que mais aprendemos, tenho a certeza de que o Magnus Carlsen, que não perdia um jogo há mais de dois anos [aconteceu em outubro passado, contra o polaco Jan-Krzysztof Duda] se recorda muito bem de algumas das suas derrotas…”
Apesar dos problemas pessoais da personagem interpretada por Anya Taylor-Joy, há um certo charme que atravessa o caminho ascendente da jogadora – que visualiza as suas jogadas mortíferas em peças que tomam forma, como num sonho, à frente dos seus olhos, no teto – em vários palcos mundiais. A realidade, lembra Dominic Cross, é, por norma, bem mais dura, sobretudo quando estamos a falar de jogadores de topo a nível mundial. “Os grandes jogadores não podem chegar a um alto nível sem um estudo diário de cinco ou seis horas, pelo menos”, diz.
É preciso, também, um grande investimento. Os pais de Magnus Carlsen, por exemplo, alugaram a própria casa e venderam o carro para apostarem tudo na carreira do filho, que deixou a escola normal muito cedo (onde nem era um aluno excecional) para se focar no xadrez. “Nesse aspeto, é parecido com o que acontece, por exemplo, no ténis, com um grande investimento dos pais e a possibilidade de competir em vários torneios importantes em todo o mundo.” O caso maior de sucesso do xadrez feminino, as irmãs húngaras Polgar (Judit Polgar chegou ao top 10 e foi, até hoje, a única mulher a vencer um nº 1 mundial: Kasparov, em 2002), também resultou de um extraordinário investimento familiar. O pai, o pedagogo László Polgar, nascido em 1946, estava empenhado em provar que qualquer criança saudável pode tornar-se um génio prodigioso, em várias áreas, com a estratégia de educação certa.
Para responder à questão de fundo deste artigo – porque não há mais mulheres no historial dos jogadores de topo de xadrez? –, Catarina Leite responde, também, com outra pergunta: “Até há pouco tempo quem decidia educar as suas filhas para serem grandes desportistas?”. E voltamos aos fatores culturais e sociais.
Para quando, afinal, uma Beth Harmon no mundo real? O campeão do mundo, imbatível desde 2013, Magnus Carlsen, imaginou a cena. Na sua conta de Instagram colocou uma fotomontagem em que aparece a jogar contra a protagonista da série Gambito de Dama. “I think it would be close”, escreveu. Seria renhido.
Grandes damas
Quatro mulheres que fizeram história no xadrez
Hou Yifan
n. 1994 China
É, neste momento, a melhor jogadora do mundo. Mas está em 89º no ranking geral, sendo a única mulher no top 100.
aleksandra goryachkina
n. 1998 Rússia
Com apenas 22 anos, é a segunda melhor jogadora do mundo. Num país com grandes tradições no xadrez, tem já o estatuto de melhor jogadora russa de sempre.
humpy koneru
n. 1987 Índia
Em 2002 tornou-se a mais jovem Grande Mestre de sempre (com 15 anos, 1 mês e 27 dias; recorde depois batido por Hou Yifan). É a terceira melhor jogadora da atualidade.
Nona Gaprindashvili
n. 1941 Geórgia
Em 1978 foi a primeira mulher a conseguir o estatuto de Grande Mestre dado pela FIDE (Federação Internacional de Xadrez).
Príncipes e princesas
Não é só a questão do sexismo que é levantada pela série Gambito de Dama. Muitos espectadores devem questionar-se sobre as reais hipóteses de alguém como Beth Harmon (jovem órfã problemática que nunca tinha tido qualquer aula de xadrez) conseguir entrar rapidamente em torneios, vencendo jogadores muitíssimo mais experientes. Na verdade, isso não é assim tão raro. Afinal, uma das maravilhas deste velho jogo é mesmo essa: há sempre caminhos por explorar e cada nova geração vai sabendo encontrá-los. Investigações recentes provam que há uma melhoria na qualidade do jogo de década para década e que os grandes jogadores atingem o pico muito cedo nas suas carreiras (a partir dos 30 anos é incomum haver grandes melhorias). No xadrez é possível um miúdo imberbe (ou uma miúda!) ainda desconhecido/a bater-se de igual para igual com um prestigiado mestre. Foi isso que aconteceu, afinal, com o melhor jogador da atualidade, o norueguês Magnus Carlsen, 29 anos, o mais jovem de sempre a atingir o primeiro lugar no ranking da FIDE (aos 19 anos). Desde que, em 2013, ganhou ao indiano Viswanathan Anand (21 anos mais velho do que ele) nunca mais deixou de ser o campeão mundial.