Cada vez que ouve alguém tossir no comboio ou no autocarro que apanha para chegar à escola, Sara Botelho, 16 anos, até se encolhe de medo. Depois de uma hora em transportes públicos, chegando a casa descalça-se, lava as mãos e só não toma logo banho porque daí a duas horas, ao final do dia, vai para o treino de voleibol. Atleta federada no escalão juvenil, jogar foi das rotinas que mais falta lhe fizeram durante o confinamento. Agora, com as jogadoras da equipa distrai-se a rir e quebra a distância física, nada que o treinador atento não repare. Ainda assim, a preocupação é uma constante. “Não quero perder os avós por causa dos meus descuidos.”
Aluna do 11º ano da Escola Artística António Arroio, em Lisboa, Sara tem aulas presenciais de manhã, com apenas metade da turma, e aulas online à tarde. “Nunca estamos o dia inteiro na escola”, explica e é disso mesmo que sente necessidade. “Somos mais autónomos no trabalho, mas faz falta o contacto com os professores. Ainda no outro dia, na aula, a professora percebeu que eu tinha dúvidas só por causa do meu olhar. Online, ao fim de 45 minutos, disperso-me. O ambiente escolar parece que dá inspiração.”
No próximo ano letivo, Sara Botelho gostava de voltar à normalidade. “Precisamos de estar nas salas e oficinas na escola para desenvolver os trabalhos e para podermos partilhar uma ideia de criação com uma comunicação mais imediata”. Não é só a relação mais próxima com os professores que lhe faz falta; também com as colegas da turma não tem criado laços. Os intervalos de 15 minutos são passados dentro da sala e, sem grandes movimentações, só pode falar com os mais próximos.
Pelo menos há o desporto
Preocupada com a situação pandémica em Portugal, Sara Botelho, 16 anos, divide-se entre as aulas do 11º ano presenciais e online, sentindo cada vez mais falta do contacto direto com os professores e colegas. “As relações estão estranhas”, desabafa a atleta federada de voleibol, que já voltou à pratica de desporto
“As relações estão estranhas”, afirma Sara Botelho, numa evidência de que as redes sociais não chegam para substituir o convívio com os amigos. E namorar em tempo de Covid-19 “é complicado”. Sara e o namorado estão juntos menos vezes, até para prevenir eventuais isolamentos profiláticos. “Se tivesse começado a namorar durante a pandemia, não sei como seria… Não dá para iniciar uma relação agora.”
Aulas à distância, avaliações em suspenso, mercado de trabalho fechado, estágios interrompidos, desemprego, prolongamento ou regresso aos estudos, relações sociais comprometidas, ansiedade, angústia. Os jovens podem ser menos suscetíveis aos sintomas agressivos da Covid-19, mas estão a sofrer na pele, e das mais variadas formas, as consequências da pandemia. Dos 15 aos 30 anos, é toda uma geração em sobressalto – a geração Covid, como já lhe chamam –, numa fase da vida cheia de desafios: da entrada na universidade à consolidação no mercado laboral, das relações afetivas à constituição de família, dos primórdios da autonomia em relação aos pais até à independência financeira.
Desemprego a subir
Nada disso ficou mais fácil, nestes tempos dominados pelo novo coronavírus. E se é normal um certo stresse juvenil associado à incerteza quanto ao futuro, o contexto pandémico veio intensificar as emoções negativas. “Houve um autêntico burnout académico”, ilustra Bernardo Rodrigues, 27 anos, presidente da Associação Académica de Lisboa, ao citar os resultados de um inquérito nacional que promoveram, por altura da primeira vaga, na primavera, junto de mais de três mil estudantes: 70% assumiram sentir-se afetados psicologicamente pelo confinamento.
Os efeitos desse estado de espírito fizeram-se notar ao nível do “aumento de hábitos de risco” como o sedentarismo, o consumo de drogas, a fraca qualidade do sono, o vício em jogos virtuais ou o uso excessivo de aparelhos tecnológicos, revela, por seu lado, um inquérito realizado pelo Conselho Nacional de Juventude. Foi essa a resposta mais vezes repetida pelos 1 675 jovens participantes à pergunta: “Como é que a Covid-19 afetou a tua vida, durante o estado de emergência?”
“O receio de não arranjar emprego ou a precarização das condições laborais, com empregadores a exigirem, por exemplo, que os trabalhadores em teletrabalho tivessem a câmara sempre ligada para confirmarem que estavam a trabalhar, foram algumas das principais preocupações manifestadas”, acrescenta Rita Saias, que, aos 27 anos, lidera esta plataforma representativa de 44 organizações e mais de 300 mil jovens.
Entre julho e setembro, o desemprego jovem aumentou 26,5% em relação ao período homólogo do ano anterior, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística. São mais 18 500 desempregados, num universo de 88 mil, entre os 15 e os 24 anos. E a estes juntam-se 762 mil inativos (mais 9% do que em 2019), que não estudam nem trabalham nem estão à procura de emprego. Na faixa etária seguinte, que o INE define entre os 25 e os 34 anos, há outros 103 mil desempregados e 116 mil inativos. Contas feitas, mais de um milhão de pessoas, no total.
“As famílias vão ter de funcionar como almofadas financeiras”, sublinha o sociólogo Amílcar Moreira, lembrando que grande parte dos jovens “não tem contribuições acumuladas para receber subsídio de desemprego”, até porque muitos acabaram agora os estudos. Quando chegar o tempo da retoma económica, e a manter-se a tendência de “criação de empregos precários”, à imagem do que aconteceu após a crise da dívida soberana, esta geração arrisca pagar caro a instabilidade vivida na transição para o meio laboral, nota o docente universitário do ISEG. “A sociologia do trabalho sugere que as condições de entrada no mercado têm grande impacto no valor dos salários e no risco de desemprego ao longo da carreira. A muito longo prazo, obviamente, isso também terá influência no valor das pensões.”
A 4 de janeiro, Madalena Nogueira despedia-se da família com abraços fortes e embarcava no avião para S. Tomé e Príncipe. Esperavam-na seis meses de voluntariado numa missão com crianças e jovens, a quem deu aulas de Português e de Matemática. Aos 27 anos, morar em casa dos pais foi fundamental para conseguir amealhar dinheiro durante o ano e meio em que esteve empregada.
Em casa dos pais
Licenciada e com mestrado em Gestão, Madalena Nogueira, 27 anos, sabe que terá de descer de nível para depois voltar a subir. Começou a dar explicações online, de várias disciplinas, a alunos do 3º Ciclo. O que receber vai dar para pagar o empréstimo que pediu para tirar o mestrado, mas continua a morar com os pais
Licenciada e com mestrado em Gestão, Madalena convenceu-se de que, no regresso, teria facilidade em arranjar novo emprego. Até queria mudar de área e apostar na organização de eventos. Quando chegou, percebeu que não havia pior setor para investir. “Aterrar e ver o aeroporto vazio, cheio de polícia, e depois ter o meu pai à espera e não o poder abraçar foi muito duro”, lembra.
Com vontade de ingressar numa ONG ou na área social de uma empresa, tem recebido respostas em que só aceitam trabalho voluntário. Abrindo mais o leque de opções, concorreu a vagas para gestora de projeto e vendas. “Talvez tenha de voltar a descer de nível para depois voltar a subir, pois não há imensa oferta.” No imediato, começou a dar explicações online. O que receber vai dar para pagar o empréstimo para tirar o mestrado, mas tão depressa não será independente.
Investir nos estudos
Também Pedro Pincho, 26 anos, não perde o foco num futuro mais promissor. Em fevereiro, este licenciado em Gestão terminou um estágio profissional de um ano numa seguradora, sem que o vínculo tenha sido renovado. Ainda procurou novo emprego nas semanas seguintes, mas não demorou a perceber, com a chegada da pandemia, que as portas se fechavam. Uma vez que não queria entrar nas estatísticas dos inativos, decidiu voltar à universidade para tirar uma pós-graduação seguida de mestrado, que conta concluir em janeiro de 2023. “Vou enriquecer o meu currículo para depois voltar ao mercado de trabalho com uma formação mais robusta”, afirma. “Não penso que está tudo perdido.”
Em linha com os dois anos letivos anteriores, o número de estudantes no Ensino Superior voltou a aumentar em cerca de seis mil, ultrapassando pela primeira vez, em 2020/21, a barreira dos 150 mil matriculados, de acordo com dados da Pordata. “Existia muito receio do abandono escolar, mas houve muito mais gente a procurar mestrados e doutoramentos, à espera que a pandemia passe”, constata Gustavo Cardoso, professor catedrático no ISCTE-IUL. “Na crise anterior, a emigração foi um escape natural, mas nesta não é possível ir para lado nenhum porque a pandemia está em todo o lado. A opção é entre não fazer nada ou investir em si próprio”, salienta o sociólogo.
Regresso aos estudos
Formado em Gestão, não renovaram o estágio profissional e Pedro Pincho viu–se desempregado, no momento em que a pandemia empurrou o País para o primeiro estado de emergência. Perante a dificuldade em encontrar trabalho, optou por voltar a estudar, aos 27 anos, de modo a estar mais habilitado quando a retoma chegar
Num contexto de escassez de empregos, Gustavo Cardoso sugere aos responsáveis políticos um programa de incentivos à frequência universitária, traçando um paralelo com o exemplo dos Estados Unidos da América no pós-Segunda Guerra Mundial. “Como não havia trabalho para todos, criaram bolsas de estudo para abrir as universidades a mais gente. Precisamos de um Plano Marshall para dar uma nova esperança aos mais novos e este é o momento para o fazer”, defende.
Além disso, as universidades são o grande palco do convívio entre pares. Mas as notícias de festas privadas e ajuntamentos de jovens a desafiarem as regras da Direção-Geral da Saúde são uma constante. Os excessos acabam por ser inevitáveis, considera o sociólogo Gustavo Cardoso. “É na juventude e nos primeiros anos de atividade profissional que as relações de amizade e amor se formam. Entre os 16 e os 30 anos, conhecem-se muitas pessoas e fazem-se as experiências que vão permitir testar os nossos limites. É por isso que a mudança de comportamentos é mais difícil nos mais jovens”, argumenta o professor do ISCTE-IUL, condescendente face à irreverência natural da idade: “Há uma fatia da vida deles que está a ser adiada e isso tem um custo emocional, ao nível do crescimento e da afirmação. O sentimento de perda é semelhante ao de alguém que fica sem emprego.”
Apesar de habituados a comunicarem através das plataformas tecnológicas, os jovens sentem falta de estar uns com os outros. “Somos todos superdigitais, mas não há nada melhor do que um café ou um copo com um amigo”, enfatiza Rita Saias. “Os jovens viram o seu mundo ficar mais pequeno e têm noção das consequências que daí podem resultar ao nível das competências sociais”, garante a dirigente associativa.
Saudades da vida leve
Os recentes avisos da mãe lembram Leonor Maltez, 16 anos, que quanto mais cuidado tiver agora, mais possibilidades há de as restrições do estado de emergência serem levantadas a tempo do Natal em família. “Tenho medo de que as avós passem o Natal sozinhas”, confidencia a adolescente.
Farta da pandemia
Aos 16 anos, Leonor Maltez, aluna do 11º ano está saturada de crescer em tempo de pandemia. Leonor “odiou” as aulas online e estava habituada a sair à sexta-feira à noite, quando de repente se viu fechada em casa. “Tenho saudades de viver sem a noção do risco”
Preocupações que não teve durante o verão, terminadas as aulas online da estudante do 11º ano. Em junho, já desconfinada, Leonor começou a ir a festas em casa de amigos e à praia. “Houve alturas em que pisámos o risco, sem máscara e muito próximos”, admite. Em agosto, as férias com a família alargada, incluindo as avós, fizeram com que redobrasse cuidados e até usasse máscara dentro de casa.
Um misto de sensações estranhas que tem deixado Leonor saturada de crescer em tempo de pandemia. Leonor “odiou” as aulas online, achou-as desgastantes, pois tinha de ter o triplo da atenção. Estava habituada a sair à sexta-feira à noite quando, de repente, se viu fechada em casa e passou a sentir uma tensão muito grande. As festas e as discotecas deixaram muitas saudades, mas sobretudo sente a falta de viver sem a noção do risco tão presente.
As restrições impostas pelo Governo são dos assuntos que Afonso Fernandes, 18 anos, mais comenta entre amigos, principalmente pelo facto de não poder jogar futsal. No grupo, que no fim das aulas continua à conversa, quatro a quatro no café, quem tinha namoros manteve-os, mas não há novos casais. “Não conhecemos ainda o estilo de vida das pessoas e o vírus faz duvidar e ter medo”, explica. O mesmo medo que fez com que deixasse de almoçar e de passar fins de semana com o avô e também de o abraçar, como sempre fez.
Maioridade sem festa
Fazer 18 anos em 2020 ficará, para Afonso Fernandes, como uma data marcada pela ausência de celebrações com os amigos, mas também pelo fim do Secundário sem baile de finalistas ou entrega do diploma, e sem praxe académica ao entrar na universidade, no curso de Educação Física e Desporto
Este será, por todas as razões, um ano marcante para o debutante universitário. Para trás ficaram oito anos passados num colégio privado. Ficou a faltar-lhe o baile de finalistas e a entrega do diploma, tal como a praxe académica ao entrar na universidade no curso de Educação Física e Desporto.
No seu imaginário, as aulas na universidade decorriam em grandes auditórios com muita gente; afinal, as turmas dividem-se por salas pequenas como no Secundário, exceto às terças com professores e colegas no Zoom. Entusiasmado por ter disciplinas como Futebol, percebeu que vai continuar sem a prática. Também em Anatomia ficam por manusear os ossos do esqueleto-modelo e a Ginástica torna-se mais cansativa por ser praticada com máscara.
Frustração e angústia
A mudança de rotinas associada a emoções negativas é rastilho de desequilíbrios emocionais, e neste campo não há faixa etária mais penalizada do que a dos jovens, assegura Pedro Morgado, psiquiatra no hospital de Braga e docente na Universidade do Minho. “Ao convidá-los a ficar em recolhimento, estão a ir contra o que seria o seu desenvolvimento natural”, justifica o médico, sem esconder alguma surpresa perante os resultados do estudo que conduziu durante a primeira onda da pandemia. Mais do que os adultos ou os idosos, foram os jovens a acusar mais stresse e ansiedade. “Isso refletiu-se numa maior irritabilidade, frustração, revolta e em sintomas físicos como o cansaço, as palpitações ou agitação interior”, concretiza.
Não existem razões para alarme, ainda assim. Além de terem revelado, à medida que as semanas passavam, uma capacidade de adaptação semelhante à dos outros grupos etários, os jovens não estão necessariamente doentes por experimentarem aquelas sensações. Na maior parte das vezes, esse sofrimento significa apenas “o início da resposta fisiológica do organismo para se adaptar à situação”, esclarece Pedro Morgado.
Na primeira fase da crise sanitária, os pedidos de ajuda à Linha de Apoio Psicológico da Universidade do Porto, criada no final de março, relacionaram-se, sobretudo, com episódios de ansiedade. A incerteza quanto às avaliações, o medo de ficar prejudicado, o estudo longe dos colegas ou o regresso a casa dos pais, no caso de estudantes deslocados, surgiram entre os motivos na origem desse estado mental, adianta Sílvia João, coordenadora do serviço.
A partir de setembro, porém, o quadro alterou-se. “Agora, predomina o sentimento de angústia”, faz saber a psicóloga, descrevendo um panorama “de muita tristeza e solidão”, relacionado com a pandemia e o futuro profissional incerto. “São os problemas normais nestas idades, mas ampliados pelo atual contexto social”, avalia, acrescentando que a falta de atividades em conjunto com colegas e amigos é tema mais presente do que as relações amorosas. Apesar de todos os obstáculos trazidos pela Covid-19, a médica mostra-se convicta de que estamos perante “uma geração muito resiliente”.
Novo emprego
Há três semanas, Beatriz Martins, 22 anos, assinou o seu primeiro contrato de um ano. O teletrabalho faz agora parte da rotina desta licenciada em Marketing. Para trás fica um ano de procura insana de emprego, em que viu recusada por inúmeras vezes a oportunidade de ter ideias e de concretizá-las
Há exemplos disso. Licenciada em Marketing, Beatriz Martins, 22 anos, não descansou enquanto não encontrou emprego, tarefa hercúlea nestes tempos. “O problema é que as empresas querem pessoas com experiência, mas pagam como se fosse um estágio”, constata. “Até fui às opções de emprego do Facebook, que por ser uma rede social não achava muito credível”, continua. Ora, foi precisamente aí que a contrataram para técnica de comunicação numa IPSS que trabalha com refugiados. Gostaram da sua iniciativa e criaram empatia com a jovem, que nunca questionou quanto iria receber de ordenado. Só perguntou no dia em que a escolheram e ficou muito satisfeita com o valor bem acima do ordenado mínimo.
Há três semanas, Beatriz assinou o seu primeiro contrato de um ano. Entretanto, já foi à empresa conhecer todos os colegas do seu departamento, escolheu a secretária onde se sentará quando não estiver em teletrabalho e também vai receber um telemóvel e um computador.
“O que mais gostava era de pensar no que vou vestir de manhã. Não sei se é um ambiente formal, se posso usar calças de ganga…”, questiona-se. Começar a vida profissional em teletrabalho tem a sua dose de incerteza. Nem que seja nas mais pequenas coisas.
Vidas incertas
Os jovens portugueses são dos que ficam mais tempo em casa dos pais
26,4%
Percentagem de jovens desempregados em Portugal (dos 15 aos 24 anos), no final do terceiro trimestre de 2020, segundo o INE. Uma subida de 8,5 pontos percentuais em relação a igual período do ano passado.
29 anos
Em média, é com esta idade que os jovens portugueses saem de casa dos pais, segundo o Eurostat. Portugal é o sétimo país da União Europeia onde os jovens se tornam independentes mais tarde.
65%
Percentagem de alunos que dizem ter aprendido menos nas aulas online, de acordo com um inquérito da Organização Internacional do Trabalho, que envolveu 11 mil estudantes de 112 países.