Acredita-se que, num desenvolvimento humano saudável, a mente está preparada para aceitar todas as verdades, mesmo aquelas que não são consensuais nos diferentes ambientes que fazem parte da vida dos mais novos. Quero com isto dizer que, enquanto muitas vezes os pais se esforçam por manter incólume o mito associado ao velhinho de barbas brancas e vestes vermelhas, que traz os presentes da Lapónia, a verdade mais crua e dura poderá surgir, quando e de quem menos se espera, da catequista, do professor, do treinador, do irmão ou mesmo de um colega na escola – “O Pai Natal não existe!”
Quando é mais propício contar que o Pai Natal não existe? Quando o segredo é revelado, os pais devem ser facilitadores, isto é, devem contar sempre o necessário, em consonância com o que a criança já sabe. A família deve auxiliar as crianças enquanto elas esclarecem e elucidam as dúvidas pelos seus próprios meios, orientando-as na descoberta da verdade por elas próprias, devolvendo as perguntas e possibilitando que expressem as suas explicações. As dúvidas e questões colocadas pela criança acerca da existência do Pai Natal são indicativas de um bom desenvolvimento cognitivo. Manter a mentira pode ser pior, quando as crianças têm já o seu sentido crítico apurado e escutam os outros e desconfiam. Outras há que alteram a forma como acreditam, mas preferem continuar mais algum tempo agarradas à felicidade e à magia do velhinho simpático e rechonchudo, quanto mais não seja, com receio de não receberem mais presentes.
Geralmente, tudo começa não no Natal do primeiro ano de vida, mas sobretudo no segundo, quando as crianças já dão valor aos presentes, em conformidade com o motivo pelo qual os estão a receber: “É o meu aniversário”; “É o presente da madrinha”; “É Dia da Criança”; “Consegui alcançar uma meta.” Nessa altura, cabe aos pais explicarem à criança se foi a família que se incumbiu de colocar os presentes na árvore ou na chaminé, se foi o Menino Jesus… ou se foi o Pai Natal! Desde bastante cedo, a criança começa a acreditar em seres irreais, personagens imaginárias, que acredita serem dotados de poderes sobrenaturais. Fazem parte do seu mundo de fantasia, a partir do qual a criança se vai relacionando com a realidade e se apropria dessa mesma realidade. Assim, a história do Pai Natal evolui conjuntamente com a evolução do seu mundo de fantasia. A história do Pai Natal foi sendo composta ao longo dos anos, impulsionada pelo cinema, pela literatura, pela televisão e até por marcas como a Coca-Cola. O imaginário infantil foi-se traçando. Hoje em dia, cabe aos pais a nem sempre fácil tarefa de o alimentar e gerir.
A criança vai apreender o assunto através da maneira como a mensagem lhe é transmitida. A partir desse momento, na mente da criança vai-se formando um conjunto de crenças associado à festividade natalícia e à existência dessa figura simbólica e imaginária. Tal como existem outras, com as quais, naturalmente, cada um de nós vai crescendo: o monstro do escuro ou o bicho-papão, o amigo imaginário, os dragões, as bruxas, os gnomos ou a fada dos dentes.
Ao longo do desenvolvimento humano, observa-se a ascendência do pensamento racional em detrimento de uma menor predominância do pensamento imaginário. É sadio e benéfico criar e vivenciar sonhos e fantasias, brincadeiras e jogos mentais inventados – são condição de uma infância fecunda. O prazer e a alegria são fundamentais para um adequado crescimento da afetividade. Assim, acreditar no Pai Natal é inofensivo porque o “faz-de-conta” possibilita o desenvolvimento psíquico, cognitivo e social. Tais crenças ilusórias associadas ao imaginário infantil estimulam a imaginação e a criatividade, e favorecem a construção de uma estrutura emocional cada vez mais complexa, pela habilidade de realizar inferências, ora concretas ora abstratas, que preparam para novos e seguintes patamares progressivos de compreensão do mundo ao nosso redor. Permitir que as crianças acreditem que existe um senhor que dá presentes a cruzar os céus de todos os continentes favorece, no futuro, a sua capacidade de criar cenários hipotéticos, que reforçam o raciocínio. Deixarmo-nos guiar pela lenda do Pai Natal não é genuinamente mentir às crianças, mas subliminarmente erguer valores aliados à idade, à velhice, à sabedoria, ao altruísmo, ao respeito, ao bom comportamento, à família. Algo muito diferente é quando a mentira é usada pelos pais para evitar assumir culpa e responsabilidade.
Da mesma forma, colocar em causa ou deixar de acreditar na existência dessas representações fantasiadas faz também parte de um desenvolvimento ajustado. Nada de mal irá acontecer, quando a criança deixar de acreditar no Pai Natal. Crê-se que o abandono do mito ocorre antes de a criança ingressar no 2º ciclo de estudos, na escola. Aquando da entrada no 1º ciclo, desponta a racionalidade que permite diferenciar as evidências da fantasia. A determinada altura, as crianças questionam a fabulação do enredo complexo composto por elfos, renas, trenó e entrega noturna de presentes individualizados nos lares dos meninos bem-comportados de todo o planeta. Há factos que não podem ser verdadeiros, dado determinados elementos da fantasia entrarem em contradição com a realidade. Estreia-se aí essa película de aventuras no desvelar da verdade, trata-se de um processo de amadurecimento. Por diversas razões, crianças ou pais podem escolher conservar esta personagem natalícia idealizada, enquanto outros podem, desde cedo, decidir dedicar explicações diretas aos filhos para que eles transitem para uma perceção realista e desconstruam qualquer alegoria que lhes seja sugerida. Muitos pais ficam hesitantes e inseguros, ou até mesmo receosos, por não saberem qual a melhor estratégia a seguir: continuar a alimentar a fantasia ou contar a verdade? Será que já cresceram o suficiente e está na altura de saberem que o Pai Natal não existe? Os pais têm a legitimidade de optar por qualquer uma das opções, mas sempre aquela que vai favorecer a harmonia familiar e o nível de aceitação da criança, do ponto de vista psicológico.
Assim, não está sob o controlo dos pais quando desvendar este evento crucial do crescimento infantil, e essa ocasião será sempre mais tranquila do que aquilo que se anseia. Geralmente, são os adultos que ficam demasiado preocupados com o impacto que a desmitificação da fantasia do Pai Natal pode ter. A infância é essa transição gradual de um estado de fantasia que, de forma progressiva, se vai aproximando da realidade. Descobrir a verdade pode afetar a confiança das crianças nos pais? Condenam-se e atrapalham-se mais os pais pelo embuste conservado ano após ano, do que se ressentem os filhos quando descobrem que foram enganados. A confiança nos adultos não é afetada por esta situação, nem a honestidade dos mesmos, ainda que possam ficar zangados ou desapontados. Qualquer desilusão rapidamente dá lugar à resignação positiva. A criança adota uma consciência social e aceita que não era apenas ela que acreditava, percecionando que há todo um envolvimento num contexto cultural. A imagem fantasiosa do senhor das barbas brancas irá dar lugar ao espírito de Natal e isso, sim, deve permanecer e ser cultivado. Esta época festiva continuará a ser de grande alegria para os mais novos, mesmo que o Pai Natal não apareça à meia-noite do dia 24 de dezembro, ou exista um imaginário coletivo a onde ele chega carregado de prendas. A mentira do Pai Natal é considerada uma “boa mentira”, em prol do bem-estar das crianças, asseverando por isso que não existem distúrbios psicológicos ou traumas irremediáveis de mentiras bem-intencionadas.
Se o seu filho sabe que o Pai Natal não existe mas existem a união familiar e a missão de ajudar os outros, ser solidário e ter compaixão, então pode ter a certeza de que cumpriu bem o seu papel de educador e que valeu a pena revelar o mistério, aos pouquinhos, Natal a Natal.