Estima-se que em Portugal existam cerca de três mil doentes que sofrem de imunodeficiência primária ou secundária. Para estas pessoas, a sua vida depende de um tratamento hospitalar, prescrito mensalmente e administrado por via endovenosa ou intracutânea. Parecem poucos, se olharmos apenas para a frieza dos números. Parecem muitos, se pensarmos que, em janeiro do próximo ano, esse tratamento que lhes aumenta das defesas e, por isso mesmo, lhes salva as vidas, pode não chegar a Portugal. Parecem muitos mais, se os enquadrarmos no contexto de um vírus altamente contagioso e de uma pandemia global.
De quem é a culpa, é caso para perguntar, mas não há uma resposta linear. O maior problema prende-se com essa mesma pandemia e o decréscimo de dadores de sangue, a nível mundial e especialmente nos EUA, o principal mercado emissor desta matéria prima. “Terá impactos significativos na produção e disponibilidade de imunoglobulina humana normal”, avisa Eduardo Marques, diretor geral da Octapharma, um dos maiores laboratórios que se dedicam a fracionar plasma.
O grama de imunoglobulina compra-se a uma média de 58 euros. Por cá, os cerca de 800 quilos adquiridos por ano saem a 42 euros o grama
Em maio, as colheitas diminuíram em 37%. Em setembro, a quebra aproximou-se dos 50 por cento. Estas percentagens resultarão, no início de 2021, numa indisponibilidade de fornecimento do medicamento em questão. E especialmente a países que, como Portugal, apresentam uma diferença de preço significativa quando comparado com o verificado nos principais países utilizadores, como EUA, Canadá ou Alemanha – o grama compra-se a uma média de 58 euros (na Alemanha, por exemplo, chega aos €80). Por cá, os cerca de 800 quilos adquiridos por ano saem a 42 euros o grama.
“De salientar que alguns países como a Suécia, a Finlândia, a Noruega ou a Dinamarca tomaram antecipadamente medidas de revisão dos preços aprovados, acautelando o elevado risco de falhas de fornecimento esperado para 2021 e anos seguintes, o que ainda não aconteceu em Portugal”, denuncia Eduardo Marques.
O que se pode fazer?
Afinal, o que se pode fazer para travar este descalabro? “Proceder a uma revisão excecional de preços, obtendo por esta via um valor mais aproximado relativamente ao praticado no mercado mundial e, com isso, garantir o fornecimento do mesmo em Portugal por parte das empresas que são titulares de Autorização de Introdução no Mercado.” E ainda, continua o especialista, deve ser continuado o projeto do aproveitamento do plasma de dadores nacionais com vista à produção de imunoglobulina e assim “reduzir a dependência do fornecimento externo e adicionalmente ter uma elevada poupança económica.”
O Infarmed diz estar a avaliar todas as opções disponíveis que permitam garantir o abastecimento adequado e contínuo do mercado com imunoglobulina humana normal
O Infarmed parece consciente desta iminência de rutura de fornecimento, pois a 19 de outubro emitiu uma circular que em chamava a atenção para o facto de a imunoglogulina ser um produto escasso, proveniente de dádivas de sangue ou plasma humano e com custo elevado. “A sua utilização deve ser reservada para quando não esteja disponível outra alternativa terapêutica”, lia-se no comunicado. Aliás, o Infarmed já tinha difundido as orientações da Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica, a 8 de maio, sobre essa utilização racional de um importante recurso.
Neste momento, em resposta à nossas perguntas, o Infarmed limita-se a, laconicamente, dizer que se encontra “a avaliar todas as opções disponíveis que permitam garantir o abastecimento adequado e contínuo do mercado com imunoglobulina humana normal, quer em articulação com os respetivos titulares de autorização de introdução no mercado a nível nacional, quer com as suas congéneres europeias.”
Mais plasma português, sff
O Programa Estratégico Nacional de Aproveitamento do Plasma do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), aprovado em 2015, prevê que o fracionamento do plasma nacional contribua para a sucessiva e tendencial redução da dependência de importação. “O seu início deu-se com a realização de um Diálogo Concorrencial para o fornecimento de derivados, resultantes de processo de fracionamento de plasma humano exclusivamente nacional processado a partir de colheitas de sangue dos seus Centros de Sangue e da Transplantação”, lembra fonte do conselho diretivo do IPST. Numa segunda fase do programa, espera-se pelo contributo dos serviços de sangue hospitalares, enquanto fornecedores de plasma fresco congelado, para poder alcançar-se a suficiência nacional.
O IPST está a desenvolver um concurso público internacional para fracionamento de mais 60 mil litros de plasma e de 11 serviços de sangue dos hospitais com maior colheita de sangue no País
“O atual contexto pandémico, com uma possível escassez mundial desta matéria-prima, nos EUA e na Europa, e consequentemente dos medicamentos derivados do plasma, nomeadamente da imunoglobulina, exige a continuidade do programa estratégico de fracionamento com reforço nacional, quer da consecução de condições necessárias dos centros de colheita, quer do incremento da dádiva voluntária e não remunerada, por forma a que o país contribua, progressivamente para a satisfação das necessidades nacionais destes medicamentos e reduza a dependência do mercado externo”, assume a direção do IPST.
Haja “soluções eficientes”
“Neste enquadramento, em 2020, o IPST lançou um concurso público internacional para fracionamento de 15 mil litros de plasma para obtenção de medicamentos, correspondentes aos de maior consumo nacional: imunoglobulina humana normal, albumina e Factor VIII, que serão entregues ao IPST no final do ano”, revela a mesma fonte. A intenção é a integração de todos os serviços de sangue nacionais com colheita, à medida que vão conseguindo aprovação, pela Agência Europeia do Medicamento, como centros de colheita para as empresas fracionadoras. O IPST está a desenvolver agora outro concurso público internacional para fracionamento de mais 60 mil litros de plasma e de 11 serviços de sangue dos hospitais com maior colheita de sangue no País, para disponibilizar aos hospitais imunoglobulina, albumina e fator VIII, em 2021 e2022.
Além da Octapharma, existem mais cinco empresas que fornecem esse tratamento aos hospitais portugueses: Grifols, Kedrion, Takeda e CSL Behring. Esta última é a principal, mas nem por isso escapa à regra – à semelhança do que ocorreu com outros grandes fornecedores deste sector, está com os stocks em baixo e em risco de não conseguir fornecer os hospitais portugueses. “É difícil prever a duração de qualquer potencial interrupção ao fornecimento de imunoglobulina devido à incerteza da duração e gravidade da pandemia”, nota David Ventura, diretor de marketing da empresa. “Temos trabalhado em estreita colaboração com reguladores e autoridades com o objetivo de debater a questão do fornecimento de plasma para a produção de produtos contendo imunoglobulina humana e defender iniciativas para expandir o fornecimento. Estamos também cuidadosamente a monitorizar o nosso volume de recolha de plasma e a trabalhar para garantir a segurança dos dadores, enquanto aumentamos o volume de recolha a nível global”, esclarece. Além de medidas para potenciar a afluência de dadores em todo o mundo, continuam a “trabalhar de perto com o governo e as autoridades com o objetivo de encontrar soluções eficientes”.
Ricardo Pereira, 33 anos, agarra-se a estas duas palavras – “soluções eficientes” – para acreditar que o medicamento de que depende há três décadas não vai falhar no lisboeta Santa Maria. Ele, que preside à Associação Portuguesa de Doentes com Imunodeficiências Primárias, pode falar por todos os que representa: “Estamos muito preocupados, ainda mais com a Covid e a nossa vulnerabilidade a infeções.”
De que estamos a falar? A imunoglobulina humana normal (IgGN) é um medicamento hemoderivado sujeito a receita médica, que contém imunoglobulina G (IgG) com pureza mínima de 95% e um amplo espectro de anticorpos presentes na população normal. Trata-se de um fármaco proveniente de dádivas de sangue ou plasma humano. “A sua principal função é restaurar níveis anormalmente baixos de imunoglobulina do sistema imunitário, trazendo-os para valores normais”, explica Eduardo Marques, diretor geral da Octopharma. Usa-se para o tratamento de uma diversidade de doenças, mas muito particularmente em Imunodeficiências Primárias e Imunodeficiências Secundárias. As primeiras são um grupo de mais de 350 doenças raras e crónicas nas quais parte do sistema imunitário está severamente afetado ou funciona mal e são causadas por defeitos hereditários ou genéticos (muitas das doenças revelam sintomas nos primeiros meses de vida, como o possível aumento da frequência ou gravidade das infeções, sobretudo com impacto no desenvolvimento da criança). As secundárias são muito mais comuns e ocorrem devido a fatores externos, como por exemplo leucemia linfocítica crónica e mieloma múltiplo.