Quando se apercebeu de que não sabia como iria ser capaz de pagar a renda de junho do apartamento onde mora, em S. Pedro do Estoril, a atriz Liliana Leite esteve três dias seguidos a chorar. “Sentia-me completamente impotente e até me fotografei naquele estado, para não me esquecer”, lembra. Foi como se batesse com os pés no fundo de um poço para voltar à tona com o impulso. Estava há dois meses sem ver quase nada a entrar na sua conta bancária, quando antes ganhava mil a dois mil euros mensalmente. Isto quando acumula 800 euros de despesas fixas só da casa. Tinha de reagir.
“Não podia estar à espera que a Covid passasse, até porque não é do meu feitio ficar de braços cruzados”, diz, antes de desfiar um currículo que começa no lugar de mascote da marcha da Mouraria aos 6 anos e inclui uma licenciatura em Direito, o curso do Conservatório, uma passagem pela Actors Connection, em Nova Iorque, e o prémio de melhor atriz no festival internacional Cinéma et La Mer, em 2016.
Liliana conta isto a sorrir e por uns segundos parece que a sua situação económica melhorou entretanto. Mas não. O pouco dinheiro que tinha de lado já se esgotou há muito e, por estes dias, desespera com a demora em receber cerca de 400 euros do curso de teatro intergeracional que começou a dar online. Se fosse em presença e patrocinado por câmaras municipais, render-lhe-ia 2 500 euros; em tempo de pandemia, pediu apenas 5 euros por mês a cada aluno (10 euros no caso do pack família) porque partiu do princípio de que toda a gente está vulnerável. “Não era para ganhar dinheiro, era só para não morrer em casa e acreditei que seria por pouco tempo.”
Liliana Leite
Ir ao fundo e reagir
A crise de choro aconteceu em meados de maio. No dia seguinte, a atriz decidiu concorrer a empregos em supermercados e contactou o canal de televisão com o qual já estivera em conversações por causa de um projeto. Depois, candidatou-se ao cartão de compras que a GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas) disponibiliza aos cooperadores que declarem necessidade e abriu inscrições para ter mais alunos nas suas aulas. Era preciso reagir.
Agora, são apenas essas aulas que a mantêm à tona. Mesmo assim, Liliana diz-se otimista. “Sobretudo não tenho parado, é ver o que acontece.” Na manhã em que a entrevistámos, gravara um vídeo de casting para um anúncio, após mais uma noite quase em branco. Como não consegue dormir, aproveita para fazer cursos online – o último foi de Psicologia Positiva e visivelmente está a ter resultados.
Vencer a vergonha
António Lourenço, 44 anos, também não tem conseguido conciliar o sono e torna-se fácil perceber porquê. É vidraceiro numa empresa em Lisboa que entrou em layoff em março, e a página que criou no Facebook para anunciar que está disponível como faz-tudo em casa (AZBimbiArranjos, porque é tão jeitoso que o conhecem por Bimby) ainda não deu grandes frutos.
António Lourenço e Sandra Rosa
Lutar pelos filhos
Já vai fazer 21 anos que António e Sandra se casaram. A vida de ambos teve altos e baixos, mas nunca descera tanto como agora. O consultório dentário onde Sandra trabalha reabriu e fechou ao fim de dois dias, ao confirmar-se uma infeção por coronavírus. A sua vida profissional está, por isso, num compasso de espera. “Mas haja saúde e consegue-se tudo!”, observa António, que trabalha como vidraceiro, depois de contar que o apoio alimentar da Refood vai “felizmente” passar a ser diário, É também pelos três filhos, entre os 8 anos e os 17, que não desistem.
Encontramo-lo ao final do dia, ao virar da esquina do Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Mora ali perto com a mulher, Sandra Rosa, 40 anos, e os três filhos, todos rapazes, entre os 8 e os 17 anos. Também ali muito perto fica a paróquia de Nossa Senhora de Fátima, onde os dois foram pedir ajuda alimentar quando perderam a vergonha. Ou quase.
“Ir fisicamente buscar o cabaz à Refood ainda me custa, parece que estou a pedir e penso sempre que há pessoas que ainda estão pior do que nós”, há de confessar Sandra, ajudante de dentista há 18 anos e em layoff desde 12 de março. “Tínhamos a vida organizada, sem luxos mas dentro do normal, por isso nunca pensámos chegar a esta situação.”
Antes da pandemia, Sandra ganhava 690 euros e António quase €800, a que se juntavam os €500 pelas limpezas que ambos faziam numa clínica médica e num prédio. Era “um bom bolo”, sublinham, sendo que a renda da casa é de apenas 460 euros. Agora, ela recebe €590 e ele 670 euros. Mesmo assim, conseguiram manter as despesas fixas em dia, mas quando gastaram os 700 euros das poupanças deixaram de poder pagar as prestações do carro em segunda mão que compraram a uma pessoa conhecida.
Casos como este não deixam indiferente Hunter Halder, o fundador da Refood, um movimento de solidariedade que nasceu em Portugal após a crise de 2010. O americano arrepiou-se quando os restaurantes fecharam e mais ainda ao assistir à chegada de novos beneficiários. Só descansou no dia em que entraram na equação empresas de distribuição de comida.
“Já calculávamos que a procura ia aumentar”, diz Hunter, pragmático, “na Covilhã, por exemplo, antes da pandemia apoiávamos 40 famílias e agora temos 700 pessoas a receber cabazes”. Com o aumento da procura veio o constrangimento de quem nunca tinha precisado de ajuda, nota Alexandra Carvalho, coordenadora do núcleo de Nossa Senhora de Fátima. “Há uns dias, apareceu-nos um casal da zona da Estrela que teve vergonha de ir à Refood da sua freguesia.”
A rede da família
Quando a pandemia chegou, o mundo de João Marques, 28 anos, parou. Literalmente. Pela primeira vez ao fim de muitos anos de sacrifícios, o motorista da Uber desfrutava de um cenário sem “ses” nem “mas”, desanuviado. De repente, veio a curva apertada e ele viu-se estacionado a meio de um túnel sem fim à vista. “Cheguei a trabalhar doze horas por dia, mas ganhava mais de dois mil euros líquidos. Começava a ter a minha a vida organizada, mas entrei num filme de terror”, conta o angolano de nascença, residente no Porto.
João Marques
Da Uber à lesão
João Marques, 28 anos, angolano e residente no Porto, ainda não acredita no “filme de terror” em que a sua vida se transformou. De motorista da Uber, com bom ordenado mensal, passou a fazer contas a tudo. Reequacionou o pagamento da casa, pediu ajuda a familiares e tem como plano B usar a sua formação como vigilante para procurar emprego. O problema é que foi operado a um tendão de Aquiles e estará vários meses sem poder trabalhar. As poupanças que juntou voaram e agora é esperar.
João Marques encontrara casa há meses, um T2 para viver com a namorada, por 300 euros. Pagava uma mensalidade de €400 pelo carro e conseguia poupar algum dinheiro. A namorada tinha a promessa de um contrato para uma loja de sapatilhas. Veio então a lesão num tendão de Aquiles. E o inesperado fez-se desespero. “Fui operado, vou andar com gesso até julho e depois são mais uns meses de recuperação. Tenho de arranjar um plano B rapidamente.”
Para já, os familiares do casal vão ajudando no que podem. O senhorio também foi relativamente compreensivo, embora já tenha avisado de que precisa daquela renda certinha. Vale a João Marques a circunstância de o pagamento do carro ter sido suspenso. E de a namorada ter mantido o emprego. Ele encontra-se de baixa. Da Uber já recebeu notícias de que o negócio é para reconfigurar. Pelo menos até ao final do ano, uma vez que o turismo será escasso. E o dinheiro que ele guardara para uma emergência, foi-se. “Esse setor vai levar muito tempo a recuperar e eu não posso esperar. Como tenho também formação como vigilante, estou a ponderar procurar emprego nessa área.
Isabel Oliveira
O apoio da família
De um dia para o outro, foi dispensada de fazer as limpezas de um grande hotel do Porto. A revolta e a tristeza não dão descanso aos pensamentos de Isabel. “Sempre vivi para o trabalho, nunca disse que não à empresa quando precisou de mim… não mereço que me façam isto, por isso denunciei o que me aconteceu”, desabafa. Vive na casa da filha e do genro, para a qual costumava contribuir com as despesas. “Não gosto de estar dependente de ninguém, sempre trabalhei e, agora, são eles que me têm sustentado.”
Quem também não gosta de depender de ninguém é Isabel Oliveira, 63 anos, que se viu sem trabalho em meados de março, quando a empresa de prestação de serviços para a qual trabalhava a informou de que escusava de voltar a aparecer num hotel do Porto onde fazia limpezas. Como não quis assinar o acordo de cessação do contrato que lhe puseram à frente, que não a ressarcia devidamente, voltou a apresentar-se nas instalações. Não lhe abriram a porta, nem lhe deram mais explicações, conta. Do salário de março, de €635 (com as horas extra, costumava ganhar mais €100), recebeu cerca de metade. “Passados uns dias enviaram um papel para o fundo de desemprego, mas até agora não recebi nada”, diz. Do Instituto do Emprego não sabem explicar o que aconteceu e aguarda novidades.
Os rendimentos não lhe permitiam grandes poupanças. O facto de se ter mudado, há quatro meses, para Vila Nova de Gaia, para viver com a filha e o genro, ambos a trabalhar, aliviou-lhe os encargos, mas não está tranquila porque teve de parar com as contribuições mensais para as despesas de casa e, na farmácia, a medicação para a diabetes e para a hipertensão ficou por pagar.
Uma tristeza de verão
Para Célia Correia, técnica de luz de 40 anos, o frenesim dos festivais de música e dos concertos começava em março e perdurava até início de outubro. Fora dessa época, o trabalho era sempre mais incerto, mas contava com as poupanças para enfrentar a escassez. Não estava era à espera do corte abrupto de atividade, exatamente quando se preparava para retomar a vida de saltimbanco, pelos palcos deste País. “Estou a pagar o preço da minha liberdade.” Célia habituou-se a viver com pouco, mas nunca lhe faltou nada. Agora, com as poupanças no limite, teve de recorrer à ajuda de familiares para conseguir pagar a renda do apartamento no Porto, que divide com dois amigos. “É a primeira vez que me vejo nesta situação, sempre dei a volta e consegui arranjar trabalho, mas neste momento está tudo bloqueado”, conta.
Célia Correia
Vida de “formiguinha”
Enquanto trabalhadora independente como técnica de luz, estava habituada a um ritmo de “formiguinha”, com festivais e concertos seguidos durante a primavera/verão, e escassez de serviços durante o resto do ano. A pandemia trocou-lhe as voltas e todos os trabalhos previstos foram cancelados. Teve de recorrer a familiares para pagar a renda e à ajuda alimentar da União Audiovisual, um grupo solidário do setor artístico.
A candidatura aos apoios financeiros extraordinários, concedida pela Segurança Social aos trabalhadores a recibos verdes que viram a sua atividade drasticamente reduzida (com um teto máximo de €438,81), não foi bem-sucedida. “No ano passado fiz três contratos que duraram apenas três dias e, por essa razão, fui considerada não elegível”, justifica. Quanto a bens alimentares, Célia está a contar com a ajuda da União Audiovisual (UA), um grupo solidário de profissionais do meio que tem percorrido o País em recolhas e entregas para quem está mais necessitado.
Com grupos ativos em Lisboa, Porto, Algarve, Setúbal e Alentejo, a UA tem acudido a cerca de 200 famílias. “É inevitável que o número cresça, quando terminavam as ‘gorduras’ que tínhamos acumulado para o inverno e íamos começar a ter mais trabalho, aconteceu isto… romarias, feiras, festivais, todos os espetáculos que iam começar agora e foram cancelados”, acrescenta Hugo Carriço, um dos organizadores da UA. “O próximo inverno vai ser o mais duro de todos.”
A Linha de Apoio de Emergência ao Setor das Artes, lançada em março pelo Ministério da Cultura, com uma dotação de 1,7 milhões de euros, tem sido altamente criticada. Das 1 025 candidaturas, 636 projetos foram considerados elegíveis e apenas 311 foram apoiados. Sendo um concurso de apoio à criação, muitas pessoas do setor, como os técnicos, ficaram de fora. E o cenário é arrasador. Segundo um inquérito promovido CENA-STE – Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos, no início de abril, 98% dos 1 300 inquiridos viram os trabalhos dos próximos meses cancelados. Na mesma linha está o questionário promovido pela Fundação GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas), em março: por cada espetáculo cancelado em Portugal ficaram sem rendimento, em média, 18 artistas, 1,3 profissionais de produção e 2,5 técnicos.
O drama da restauração
Sérgio Martins, 47 anos, estava habituado a chegar à rua Mouzinho da Silveira e a ver um trânsito imenso à porta de casa, fronteira ao Mercado Ferreira Borges. “Agora, até o movimento na rua me falta, olhar pela janela empobrece-me a alma”, confessa o cozinheiro do Porto. Não tem sido fácil gerir o isolamento. “Fico acordado até às 4h da madrugada e, no dia seguinte, acordo com dores de cabeça, a pensar se é hoje que vou receber.”
Sérgio Martins
Promessas adiadas
Estava há meses à frente da cozinha de um café do Porto, com a promessa de um contrato de trabalho sempre adiada. Durante o estado de emergência, não lhe pagaram o salário de março e de abril por inteiro. E, na reabertura de portas do café, não aceitou o corte significativo da remuneração proposto pelo patrão. “Nunca me vi numa situação igual, em que estou demasiado preocupado com o dia de amanhã, sem saber se acaba o arroz ou se preciso de um antibiótico”, confessa.
Quando foi decretado o estado de emergência e o café onde trabalha teve de fechar, mandaram-no para casa com a indicação de que o voltariam a chamar. Do salário de €850 recebeu apenas metade, em março, e zero em abril. “O patrão marcava reuniões e não aparecia, avisou apenas que era para regressar, mas que ia reduzir o salário… e não seria coisa pouca”, acrescenta. Sérgio decidiu apresentar a carta de demissão e queixa à Autoridade para as Condições do Trabalho, para que lhe pagassem, pelo menos, o que lhe é devido. Já se inscreveu no Desemprego e candidatou-se ao Rendimento Social de Inserção, mas o pedido ainda não foi deferido.
Entretanto, as contas acumulam-se. “As pequenas poupanças esfumaram-se, é graças a uma boa relação que tenho com a vizinhança que tenho conseguido crédito na mercearia, no talho ou na farmácia… Têm sido fantásticos”, sublinha. Vive no apartamento arrendado pela ex-mulher, que lhe tem permitido ali ficar, com as duas filhas. O senhorio, aliás, fechou os olhos à última renda, de €385. O que a filha mais velha tem recebido, em layoff de um restaurante (e já lhe comunicaram que, este mês, não lhe renovam o contrato), é o que tem segurado as pontas. Os pequenos vícios do tabaco e do café ficaram de lado. “No outro dia ofereceram-me um café e foi um sonho… mas não me posso habituar.”
Segundo Francisco Figueiredo, do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, “cerca de 30% dos trabalhadores da restauração estão ilegais – são 90 mil pessoas que não faziam descontos e que, durante esta pandemia, deixaram muito claras as dificuldades por que passavam”. Mesmo entre os trabalhadores legais, “uma parte significativa da sua remuneração não era declarada, por isso quem foi para layoff teve uma redução drástica dos seus rendimentos”, acrescenta o representante sindical.
Por outro lado, muitas empresas não tiveram sequer condições para recorrer ao layoff, “por terem dívidas ao Fisco ou à Segurança Social” e, nestes casos, uma grande percentagem não terá condições para enfrentar as dívidas aos empregados, destes meses em que estiveram de portas fechadas. “Estamos a falar de milhares de trabalhadores sem qualquer proteção social”, sublinha.
Na luta da vida
De rosto fechado e olhos azuis expressivos, Teresa Sousa não dá margem para qualquer sinal de fragilidade. “Já passei por momentos complicados, mas tenho de continuar”, diz a empregada de mesa, de 42 anos, sem queixumes. E aponta para a foto dos cinco filhos, a resumir qualquer explicação: a mais velha, já casada e independente; os dois seguintes a tirar cursos superiores; e as duas mais novas, de 9 e 10 anos, no Ensino Básico. “São bons filhos e ajudam-me muito”, sublinha, abençoando essa sorte, já que outras lhe têm faltado. Há oito anos, o marido morreu com um cancro do pulmão e Teresa sabe o que é reerguer-se e encontrar forças inimagináveis.
Teresa Sousa
De cabeça erguida
No restaurante de Braga para o qual trabalhava, nunca lhe fizeram um contrato nem descontos para a Segurança Social. Mas Teresa não desistiu de reivindicar os seus direitos. Sob ameaça, conseguiu que lhe pagassem o salário de março na totalidade, mas já não contou com o de abril. E não cedeu à pressão de assinar um acordo, em maio, que não contemplava a antiguidade nem o que lhe era devido. A renda de casa ficou por pagar. Sobrevive e alimenta os quatros filhos que ainda tem como dependentes com a ajuda solidária de um colégio privado.
Em 2019, deixou um emprego no Porto para poder ficar mais perto da mãe e dos irmãos, a residirem em Braga. Em novembro, começou a trabalhar num restaurante. “O horário, das 10 às 17 horas, era ótimo e podia dar mais apoio aos meus filhos”, adianta. Ganhava 600 euros. “Pensava que, finalmente, tinha a vida orientada.” Mas as promessas da entidade empregadora de um contrato e dos descontos para a Segurança Social nunca foram cumpridas, diz.
Em meados de março, o restaurante fechou as portas e disseram-lhe que, depois, voltavam a chamá-la. No final do mês recebeu apenas metade do salário. “Tive de ameaçar que chamava a polícia para me pagarem tudo, responderam logo que escusava de voltar e, em abril, já não recebi nada”, conta. Aconselhada pelo sindicato, regressou ao restaurante aquando da reabertura, no passado dia 18, mas como recusou assinar um contrato que não contemplava a antiguidade nem dava como cumprido o período experimental, mandaram-na embora.
A única ajuda que pôde pedir à Segurança Social foi a do Rendimento Social de Inserção, mas ainda não obteve resposta. Também não pode candidatar-se à habitação social atribuída pelo município de Braga, por ali residir há menos de dois anos. Paga €500 de renda, com água e luz incluídas, por um rés do chão de uma moradia a poucos quilómetros do centro da cidade, com divisões minúsculas e a humidade a enegrecer as paredes. “Em abril já não a consegui pagar, mas a senhoria compreendeu”, diz.
Para alimentar a família, teve de recorrer ao apoio do CLIB, um colégio privado, que tem distribuído mais de 12 mil refeições solidárias. Uma vez por mês, recolhe ainda um cabaz alimentar na junta de freguesia.
À espera do amanhã
Cláudia Moneza nem sequer sabia como pedir ajuda. “E para nos dizer que estava a passar dificuldades foi um bico de obra”, conta uma técnica do Agrupamento de Escolas de Camarate D. Nuno Álvares Pereira, no concelho de Loures. “Tenho duas mãos e um emprego…”, lembra Cláudia, 35 anos. “Só precisava de leite para a minha filha, porque trago sopa do trabalho.”
Ivânia tem 11 anos e foi para lhe dar uma vida melhor que Cláudia deixou Angola em fevereiro de 2018. A pandemia apanhou-a desprevenida, como ajudante de cozinha no refeitório de uma grande empresa. Para fazer face à redução de 50% do pessoal, reajustaram-se as refeições e Cláudia passou a trabalhar em semanas alternadas, recebendo cerca de 300 euros em vez dos habituais €535. Mesmo tendo apenas €280 de despesas fixas, não chega.
Foi a pensar em situações como a dela que a ONG Ajuda em Ação avançou em maio com a distribuição de cartões para comprar bens essenciais. “Não ficámos à espera que nos chamassem”, observa o diretor de programas, Mário Rui Baudouin. “Reagimos à aflição do momento e a entrega dos cartões foi acompanhada por uma equipa de psicólogos, por ser um ato que traz fragilidades. As pessoas sabem que, do nosso lado, não há um juízo de valor.”
Com os 105 euros em cartão, Cláudia já comprou leite, fruta, queijo, fiambre, pasta dos dentes e… bacalhau. “A Ivânia queria muito bacalhau com natas e ela já está tão aborrecida, sempre fechada em casa”, justifica, como se fosse preciso. “O que vale é ela gostar tanto da escola, mesmo agora só pelo computador.” À miúda vale também ter uma mãe otimista, acrescentamos nós, depois de a ouvir dizer: “Sei que o amanhã vai ser melhor.”
com Miguel Carvalho
Números da crise
O desemprego e o layoff têm atirado muitos portugueses para a situação de pobreza
392 323
Número de desempregados registados em abril, superior ao verificado no mesmo mês de 2019 (+71 083; +22,1%)
60,6%
Percentagem de subida do desemprego nas atividades de alojamento, restauração e similares
735 mil
Número de trabalhadores que se encontram em layoff em Portugal
90 mil
Número de empresas cujos pedidos de layoff foram já validados pelo Governo
98%
Percentagem de trabalhadores dos espetáculos que tiveram trabalhos cancelados para os próximos meses, segundo o CENA-STE