Primeiro, decretaram que nos fechássemos em casa. Agora, que a economia pede mais gente na rua, a solução para conter a Covid-19 passou a ter o nome de máscara – certificada, social, cirúrgica, chame-se-lhe o nome que quiser. Foi também a forma que as mesmas autoridades encontraram para nos sentirmos mais confortáveis ao sairmos do isolamento. “Vão ser úteis a dar confiança no regresso ao trabalho”, considerou mesmo Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico, ao revelar o mapa para o desconfinamento no país.
Mas, ao mesmo tempo que, um pouco por todo o lado se aceita que usar máscara passa a fazer parte da rotina diária, começam a destapar-se outras questões. Mais propriamente, ao nível do crime e segurança e ainda de interação social.
“Ter uma multidão de rosto tapado pode criar oportunidades para quem quiser esconder a cara por razões nefastas”, alerta Francis Dodsworth, professor de criminologia da Universidade de Kingston, em Londres, citado pela CNN. Ou seja, agora uma pessoa pode cobrir a cara sem levantar suspeitas.
Aconteceu recentemente em Espanha, onde o Ministério do Interior anunciou que tinha detido um terrorista do Daesh, alegadamente escondido em Almeria, no sul do país, desde que fugira da Síria. As razões para ter sido bem-sucedido no seu intento até agora eram simples: bastou-lhe cumprir as medidas decretadas para conter a Covid-19. Primeiro, mal saíra de casa. Depois, quando o fez, usou sempre máscara – o que também evitava que fosse detetado.
A arte do reconhecimento facial…
Os especialistas em investigação criminal estão já a fazer notar que a medida vai complicar o seu trabalho. Afinal, o reconhecimento facial é um passo importante para identificar criminosos. E embora os seres humanos sejam muito bons a reconhecer rostos que lhes são familiares – e o algoritmo ajude cada vez mais a estabelecer padrões – a verdade, insiste o mesmo Dodsworht, é que as máscaras trazes novas dores de cabeça a este processo.
“Quando um grupo de pessoas testemunha um crime, o relato de cada um já raramente coincide. Há sempre alguém que reparou num homem com bigode e chapéu, enquanto outra prestou atenção foi ao que tinha barba e óculos de sol”.
Às vezes, muitas, são as imagens captadas por câmara de segurança, ou em circuito fechado de televisão, que desvendam o caso, nota ainda Eilidh Noyes, professora de psicologia cognitiva da Universidade de Huddersfield, no norte da Inglaterra. “Mas neste momento não sabemos como as máscaras faciais afetarão a precisão de identificação de rosto”. No ar ficam outras perguntas: quando todos estão de rosto tapado, o que passa agora a constituir um comportamento suspeito? Num passado não muito longínquo, em muitos locais públicos, andar de cara tapada era crime.
À medida que as nações ocidentais começam a abrir portas, fica cada vez mais claro que estamos longe de algo que se assemelhe a uma vida pré-Covid
Por exemplo, ainda no ano passado tanto Hong Kong como França aprovaram leis a ilegalizar rostos cobertos durante manifestações e protestos públicos.
“Agora, a polícia terá de fazer julgamentos difíceis sobre o que pode levar alguém a tapar a cara”, salienta ainda Dodsworth. E qualquer novo critério será, certamente também uma preocupação acrescida para certas minorias, já mais propensas a ser interpeladas, questionadas e até mortas para polícia.
…e das novas pistas sociais
Certo é já que, entre todas as medidas de prevenção da Covid-9, o uso massificado de máscaras é considerado das mais radicais. Aliás, como são recomendadas, mas não obrigatórias, geraram já toda uma outra discussão sobre direitos humanos e invasão de privacidade. Até agora, o estigma incidia sobretudo sobre quem andava de cara tapada. Mas é bem possível que passe a incidir sobre os que não o fizerem.
“As pessoas estão a ser aconselhadas a permanecerem em distanciamento social e a usarem máscaras. Normalmente, quando uma pessoa ia na rua e via alguém de cara tapada prestava mais atenção e empenhava-se em evitá-lo. Com isto, torna-se menos claro quando é que devemos ter cuidado.”
Num passado não muito longínquo, em muitos locais públicos, andar de cara tapada era crime
Noyes, a professora de psicologia cognitiva, lembra ainda outra questão. “Quando vemos um rosto fazemos duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, tentamos descobrir a sua identidade (se conheço e de onde). Depois, procuramos ler as emoções pela expressão da cara. O que nos ajuda a avaliar situações de ameaça, mas também a proporcionar interações sociais positivas.”
Aquela não é a única especialista a considerar que se trata mesmo de uma questão de sobrevivência – e está a ser esquecida. “Precisamos sempre saber quais são as intenções de alguém com quem nos cruzamos. Não ser capaz de o fazer com facilidade naturalmente tornará as pessoas mais cautelosas e defensivas. Infelizmente, em alguns casos, isso pode levar a confrontos violentos”. A nota de Ian H. Robertson, professor de psicologia no Trinity College, em Dublin, deixa no ar outra questão: então como é que seguimos tão alegremente rumo a uma sociedade sem rosto?