“Oh mãe, a máquina de roupa já acabou!” Ouvimos o aviso de Marta, 14 anos, a interferir na chamada de Whatsapp que mantemos com Rute Gonçalves, 43 anos, há mais de meia hora, e logo nos lembramos dela, na marina de Cascais, poucos dias antes da partida do veleiro Domum para um volta ao mundo.
Estava alegre e cheia de vontade de embarcar na viagem de circum-navegação com os pais e os dois irmãos mais novos, sem data de regresso. Nove meses depois, mantém o contentamento da aventura em que a meterem, apesar de estar presa numa marina na Colômbia desde dia 17 de março.
Se se sente desesperada? A mãe, otimista, afiança que não. Que para eles, confinados a um barco desde julho do ano passado, a diferença de vida não é assim tão dramática. “Claro que sentimos a perda de liberdade e aqui isso é até mais forte do que em Portugal. Mas de resto, as nossas rotinas não se alteraram muito.”
Na altura em que zarparam de Bonaire, uma ilha nas Antilhas holandesas, o Coronavírus era apenas uma palavra esquisita que liam, esporadicamente, quando se ligavam ao mundo real. Mas no dia 11 de março, quando chegaram a Santa Marta, na Colômbia, a coisa ganhou outra envergadura. De tal forma que o que seria uma pausa de cinco dias, prendeu-os numa quarentena forçada, de onde só contam sair no final deste mês.
A ideia era apanhar um autocarro e ir visitar Cartagena durante dois dias, coisa que ainda conseguiram fazer, mas já viajaram de máscaras por um país que os olhava, então, como pessoas doentes. Seguiriam para o Panamá, onde passariam 15 dias com um casal amigo e os seus filhos, que viajariam desde Lisboa. Como se perceberá pelo uso do futuro do pretérito do indicativo, nada disso aconteceu, como já se disse e se contará mais à frente.
SAIR COM DIA E HORA MARCADOS
No dia em que entraram na marina, tiveram a companhia de dois funcionários do departamento de saúde, que não só inspecionaram o barco, como quiseram saber por onde tinham passado, e ainda lhes fizeram um pequeno despiste de saúde. “Foram muito simpáticos e até nos recomendaram uns sítios para irmos comer”, conta Rute. Não houve oportunidade para apreciarem esses restaurantes, porque assim que regressaram do curto passeio a Cartagena, já não os deixaram mais sair para lado nenhum.
Apesar da baixa quantidade de casos, especialmente na cidade onde estão (2223 infetados, 69 mortos em toda a Colômbia), deparam-se logo com o recolher obrigatório às oito da noite, a quarentena imposta a todos com mais de 70 anos e as fronteiras fechadas. De acordo com os números do passaporte, Rute pode sair da marina onde estão ancorados à quinta e ao sábado de manhã. O marido, João Monarca, tem ordem de soltura à quarta e ao sábado à tarde. Atenção, a soltura resume-se a idas ao supermercado e à farmácia ou qualquer outra questão relacionada com a saúde. Exercício? Nem pensar.
As saídas para abastecimento são bastante organizadas. “A loja fica a duas ruas da marina, há de tudo, até porque grande parte da população não tem dinheiro para comida, desinfetam-nos as mãos à entrada e à saída, assim como os carrinhos das compras”, conta Rute, bem impressionada. Já não gosta tanto de ver o nível de armamento das forças de segurança ou de pensar na multa de 4 a 6 anos de prisão no caso de alguém prevaricar.
O veleiro está agora recheado de comida. E os melhoramentos a bordo também já se fazem notar. Podem não ter gavetas de meias para arrumar, mas há o casco para lavar, o congelador para pôr a funcionar, o motor a precisar de arranjos. Coisas que nunca conseguiam fazer nas travessias, nem nas paragens, porque aproveitavam o tempo para conhecer os sítios.
JÁ ESTÃO HABITUADOS A QUARENTENAS
Como companheiros desta espécie de prisão têm mais 9 famílias, em situações muito idênticas à deles. São novos amigos espanhóis, ingleses, suecos, franceses, russos, alemães e americanos. Com eles, criaram grande cumplicidade, especialmente as crianças, que agora têm o enorme quintal da marina para brincarem e até andarem de trotineta ou bicicleta. “Por exemplo, ontem fiz arroz doce e fui levar aos outros barcos para mostrar uma sobremesa típica. Não há distanciamento social possível entre nós, partilhamos todo o espaços comuns e estamos aqui presos com eles”, nota Rute.
No entanto, e apesar do calor que se sente como se estivessem 40 graus, nem um pé podem pôr na água. E têm duas praias, com água azul turquesa, de cada um dos lados da marina. Ao longe, vêem a veemência com que os barcos da armada militar patrulham o oceano, sem deixar que ninguém entre ou saia – exceção feita aos de carga, claro. E isso chega-lhes para se manterem-se sossegados.
Ao telefone, Rute não se queixa. Aliás, até consegue ver vantagens nisto: podem circular na marina, têm acesso livre à casa-de-banho, uma lavandaria grátis (está tudo lavadinho, até almofadas), internet ilimitada e eletricidade. E os amigos em Portugal estão muito mais disponíveis – ontem até fizeram uma vídeochamada com mais de 10 pessoas. Pequenos luxos a que uma família errante no mar não está habituada.
Para se exercitarem, a Marta arranjou umas aulas de ginástica no Youtube e arrasta a mãe para as fazer com ela. Depois, ainda vão às sessões de ioga, que duas das estrangeiras que também estão na marina proporcionam aos companheiros de quarentena, ao ar livre, por serem instrutoras desta modalidade na vida real.
Na verdade, Rute só lamenta o calor sufocante, as melgas e a paragem forçada, que pode comprometer as travessias futuras, porque há épocas que devem ser respeitadas para se aproveitar o mar de feição. A família Monarca teve uma hipótese de fuga, mal a quarentena começou. Poderiam ter arranjado voo para Portugal, largado o barco na marina e virado costas ao sonho que demorou anos a concretizar. Optaram por ficar, na esperança de que as coisas melhorem rapidamente. Para já, não têm planos muito concretos para o futuro. Uma coisa é certa: se a burocracia de entrar nos países se intrometer de mais na projeto familiar de conhecer mundo a velejar, será caso para abortarem a rota inicialmente traçada e que começou em julho de 2019, em Cascais. Por enquanto, pode continuar a espreitá-los, e à sua quarentena colombiana nas páginas do Facebook e Instagram.