Vamos contar esta história do fim para o princípio, porque a cara de satisfação – ou o que se adivinha dela por trás da máscara – dos enfermeiros que recolhem as caixas que Maria João Patronilho lhes entrega, à hora do jantar, vale bem a inversão da lógica narrativa.
São oito da noite e estamos à porta da entrada da urgência do Hospital Santa Maria, em Lisboa, e o ambiente é tenso, nem se percebe bem por quê. Talvez pela tenda montada para atender os doentes de Covid-19 estar mesmo aqui ao lado, ou por se avistarem profissionais de saúde que mais parecem astronautas ou por que, no mínimo, toda a gente tapa a boca com máscara.
Mas assim que a carrinha comercial cinzenta estaciona junto a uma ambulância do INEM é como se o tempo ficasse suspenso e por momentos conseguíssemos fazer pausa nesta realidade absurda. De súbito, aparecem Fernando Rodrigues, 42 anos, Tiago Ribeiro, 40, e Sónia Lima, 36 anos, vestidos com o rigor que a sua profissão de enfermeiros exige, empurrando uma maca até junto de nós. Desliza bem, mas vem vazia. E volta a cruzar os portões automáticos com quatro caixas cinzentas de esferovite em cima. Lá dentro, seguem 50 refeições para a equipa que está de serviço à urgência – um couscous integral, com legumes e camarão. Está delicioso, atestamos, mas para a equipa que o vai comer representa uma preciosidade – todas as opções de restauração do hospital fecharam com o estado de emergência, restando apenas a cantina para matar a fome, e nem sempre dá resposta adequada. “É espetacular, tem sido uma grande ajuda, pois não comemos todos os dias refeições assim, mais saudáveis e cozinhadas desta forma”, garante Tiago, o elo de ligação entre a sua equipa e Maria João, 49 anos, a responsável por a entrega, sempre que esta meia centena de profissionais está de serviço.
O turno só acaba às onze da noite, mas a pequena paragem para saborear este miminho e mais uns morangos com ótimo aspeto há de ser lembrada como o ponto alto de uma noite intensa. Imaginamo-los, até porque já vimos fotos nas redes sociais que o atestam, na copa, sem máscaras, de batas meias desapertadas, a partilhar a comida, enquanto soltam algumas graçolas para desanuviar. Maria João encarrega-se, também, de levar talheres e guardanapos, não falha mesmo nada para que a refeição seja perfeita, ou quase.
“A onda de solidariedade tem-nos surpreendido muito e é uma grande ajuda”, adianta Fernando. E assegura que aproveitam todas as benesses, desde o pequeno-almoço na Padaria Portuguesa, aos menus do McDonald’s ou à parceria do hospital com a cadeia de hambúrgueres H3.
Até ao momento, esta instituição já recebeu para cima de 100 doações oficiais – aqui inclui-se desde material de proteção até creme para as mãos. Mas também há comida variada, oferecida por 22 marcas mais ou menos grandes, da Vitacress ao Pão da Vila ou à Food for Heroes (associação que resulta da união de seis restaurantes lisboetas para fornecer refeições a hospitais da cidade).
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“Faço isto na esperança de inspirar outros”
Para levar isto adiante, a arquiteta Maria João Patronilho, que gere uma empresa de catering quando fica longe do estirador, pediu ajuda aos amigos. Eles contribuíram, depositando dinheiro numa conta, depois de perceberem que a Siso tinha ficado, de um dia para o outro, sem atividade. Com a quantia angariada até ao momento, garante a alimentação desta equipa, durante o mês de abril. Para conseguir entregar em porto seguro esta dádiva, pediu a uma amiga médica que lhe indicasse com quem poderia falar em Santa Maria e ela deu-lhe o número do enfermeiro Tiago. O hospital, já o tinha escolhido, pois foi lá que o filho, João Maria, de 20 anos, se salvou, na sequência de um acidente grave.
Entretanto, juntaram-se a esta iniciativa que fornecerá, para já, oito refeições a marca Milaneza, essencialmente de massas, a padaria biológica Quinoa e a empresa de Aveiro Somengil. E é assim, com estas contribuições particulares e de empresas, que reúne toda a matéria-prima de que necessita. Para quem fez doações, organizou um calendário em que descrimina os menus (por exemplo, caril de frango com pepino e arroz basmati e uvas para a sobremesa, para o almoço de dia 25) e o preço a que sai cada uma. “Não podia meter-me nisto, sem ser de forma totalmente transparente”, afiança.
Com o dinheiro que juntou e muita economia, vai às compras, cozinha em casa, de janelas abertas de par em par, pede ajuda à filha Francisca, 21 anos, para distribuir as doses pelas caixas, enquanto ela corta coentros com uma tesoura, neste final de tarde. Finda esta etapa, o filho leva pela escada abaixo, com o auxílio do pai, o carregamento com as refeições. Também guia a carrinha até ao hospital, num trajeto que nesta altura de confinamento não demora mais do que 10 minutos. De vez em quando, e enquanto esperam pelo retorno da carga, ele chega-se à mãe, num abraço carinhoso.
“Faço isto para ajudar e na esperança de inspirar outras pessoas que, de repente, ficaram sem atividade. Nós também nos lançámos nisto depois de vermos o exemplo da bloguer Joana Limão”, conta Maria João, enquanto recebe, satisfeita, o feedback dos enfermeiros.
A entrega desta noite leva mais 12 doses do que o habitual, para doar aos profissionais da pediatria, que fazem o seu turno num edifício perdido nos meandros do enorme hospital. Aqui, nem há tempo para conversas. A enfermeira Dores já está à espera da comida à porta da urgência pediátrica, tapando a cabeça da chuva que recomeçou a cair nesta noite. E dois minutos a seguir, outro enfermeiro da equipa devolve a caixa grande de onde retiraram o jantar. E fica no ar a sensação de que toda a ajuda é pouca.