Viver um dia de cada vez – nunca esta expressão ganhou tanto sentido. Um dia de cada vez. É assim que vive o viajante, aquele que romantizamos nos nossos pensamentos, o que parte, sem destino, sem saber quando vai acabar ou começar o caminho, aquele que aceita, aquele que olha o mundo e não julga, levando cada pedaço de experiência dentro de si, indo, apenas. Um dia de cada vez. Expressão tão livre. E o momento chega e apanha-nos desprevenidos e a expressão ganha vontade própria. Impõe-nos um ritmo. Um querer. Uma rotina a que nós, todos os que viajam, não estão preparados para seguir. Porque somos livres. Ou queremos ser. Porque somos selvagens. Ou queremos ser. Porque nada nos impede de ir daqui para ali. Só a expressão: Viver um dia de cada vez, neste momento.
Depois de um janeiro inteiro no sul do país em forma de diamante, a Índia, e de mais um carnaval em Ovar, eis que voo para o Sri Lanka. A despreocupação fez de mim viajante livre: não sabia dos transportes, dos monumentos, das cidades. Não queria saber. Durante duas semanas partilhei histórias de alegria, coisas caricatas, a boa disposição que tanto – julgo – me marca. E foi só quatro dias antes de regressar que me apercebi do que se passava em Portugal. Estamos sempre online e as informações passaram a tomar formas digitais. Já não conseguimos abstrair-nos do mal que é estar sempre ligado. As pessoas estavam com medo. O mundo está com medo. Apercebi-me que seriam os últimos dias para regressar a casa, se não quisesse ficar bloqueado num país que não era o meu e que nestas alturas nos apercebemos, nos garanta aquilo que em “casa” estamos habituados a ter. Um dia de cada vez, Rafael.
Aterro e voluntariamente me coloco à parte do mundo, fechado numa casa onde me sinto bem, mas de onde não posso – ou devo – sair. Pelo meu bem, mas sobretudo pelos outros. Vim de um país com apenas três casos…mas serão apenas três, os casos?
São raras as vezes que saio e quando o faço, o ambiente é estranho. Não estamos habituados a não pertencer, a não cumprimentar, a não falar, a não conviver e o hábito é nosso inimigo neste momento. Um dia de cada vez.
Com a decisão de mudar de lugar, o carro encheu-se com tudo o que precisaria em Ovar para uns tempos, porque a quarentena obrigatória nos seria imposta, mais cedo ou mais tarde. Chego a Ovar e enquanto bato de janela em janela e revejo familiares, sempre à distância, sabemos do decreto que nos coloca em isolamento geográfico. Já não bastava ter regressado, já não bastava a quarentena, estava fechado dentro da minha própria cidade.
Os dias que se seguiram, poucos ainda, trazem-me silêncio e a viagem tomou outro sentido. Tomou o sentido de sobrevivência para toda uma espécie. Da casa de onde escrevo, vê-se o vazio de pessoas na rua. Não que não passem, mas quando passam desviam-se – muitas vezes – de nada, apenas do medo do contágio. Depois de um Carnaval que trouxe milhares de pessoas a uma cidade já de si deserta, eis que um isolamento nos torna ainda mais distantes.
Para mim, que faço das viagens a minha vida, tudo é esquisito. Tudo é como estar dentro de um sonho, ainda. Não estamos habituados a isto. O trabalho continua à distância e para uma agência como a Landescape que vive de viajar, o futuro não poderia ser mais incerto. Este é o momento de programar novas datas para depois das datas já marcadas e que desconhecemos se podem ser realizadas. É a altura de remarcar voos, tentar que nos reembolsem outros. É altura de atender clientes aflitos com o dinheiro que pagaram por uma viagem que – talvez – não se realizará. É altura de os convencer a Remarcar, em vez de Cancelar. De os levar a perceber que nós também estamos a passar por dificuldades e que mais do que nunca, as pessoas que em nós acreditam e confiam, nos são essenciais.
É altura de perceber dia a dia, um dia de cada vez, como se está a desenrolar o mundo, que previsões existem e se existem sequer, como pensa quem nos governa, que apoios temos, como vamos garantir que as pessoas que de nós dependem, tenham o seu salário ao fim do mês, se são tantos aqueles que nos pedem o dinheiro de volta mas ainda mais os que deixaram de nos procurar para marcar a sua próxima aventura. Para uma agência de viagens que tem por princípio a descoberta do mundo, este é um momento que não faz qualquer sentido, já que nos impede de fazer tudo aquilo para o qual fomos concebidos: partir. E é aqui que tem de surgir a criatividade, a ânsia de mais, a revolta, a imaginação, porque somos também feitos de partilha de experiências e exploração do desconhecido e não existe mais desconhecido do que este período.
Até quando teremos todos de estar confinados a este espaço sem poder viajar? Ou será que para viajar, é mesmo necessário partir, de mochila às costas, por esse mundo fora? O que queremos é ver, conhecer, trocar ideias, concluir projectos, sonhar. O que mais queremos agora é algo que nos leve mais além, que nos faça esquecer esta fase, que nos permita sorrir – continuar a sorrir – ser positivos, desejar, não pôr de lado a vontade de conhecer Petra e as cascatas Vitória, de nos sentarmos à frente do Taj Mahal e dormirmos com o vulcão Fuego nos olhos, de caminharmos nas montanhas do Cáucaso e de subir a Machu Picchu, de vaguear pelos Templos de Angkor e tomar um chá nos muitos jardins espalhados pelo Irão. Não vamos pôr de lado os sabores apurados da “chorba” nem do “kottu”, a cor dos mercados vietnamitas ou o cheiro das especiarias, não vamos deixar de apanhar o tuktuk nas filipinas ou os autocarros nas estradas peruanas, não vamos perder o pôr-do-sol de Dana nem o nascer do sol de Varanasi. Vamos continuar a viajar, a lembrar às pessoas que o mundo não acabou, que só se fez uma pausa.
No fim de tudo isto – porque sabemos todos que isto terá um fim – seremos mais: mais próximos, mais unidos, mais capazes, mais comunicativos, mais tolerantes, mais sensíveis, mais fortes enquanto comunidade, mais sorridentes, mais juntos. Acredito que “isto” do global, será ainda mais global. Numa primeira fase, haverá desconfiança, controlo, ponderação, mas tudo resultará numa maior aproximação de todos, enquanto humanos e olharemos os outros – os animais não humanos e a natureza – com outros olhos, com um sentido de pertença muito maior, com mais respeito. O invisível, por vezes, dá-nos lições e não sendo crente, acredito que tudo acontece por uma razão: para que pensemos.
Um dia de cada vez.
O AUTOR
Rafael Polónia
Sou o mentor e também um dos líderes de experiências da Landescape.
Curioso, observador e sempre pronto para novas aventuras, os destinos que lidero surgem-me quando me apaixono por um país. Estou convicto que um líder só será capaz de proporcionar uma experiência única aos que o acompanham, se for apaixonado por esse mesmo local!
Depois de algumas viagens de mochila às costas e duas grandes viagens de bicicleta durante 28 meses, que me fizeram percorrer o mundo pouco a pouco e lentamente, passei por algumas agências onde liderei alguns grupos, até que surgiu a vontade de ir mais além, de passar para a realidade o sonho e fundar a Landescape.