Acordei às sete horas. Sem despertador. Tinha dormido quatro horas. E a primeira coisa que fiz foi igual à última coisa que tinha feito: pegar no telemóvel. Ver o site do The Guardian. Ver a atualização das notícias. Ver quantas pessoas tinham morrido. Ver o Facebook. Ver o Twitter. Ver o site do Expresso. Ver o site do DN. Ver o site do New York Times. Ver o site do Público. Ver o site das estatísticas. Ver o total de casos detetados. Ver o número de casos novos. Ver o total de mortos. Fazer scroll down. China. Itália. Irão. Espanha. A ordenação é por total de casos. Tem mudado a ordem dos países. Durante meses a China e o Diamond Princess estavam no topo. Agora o Diamond Princess está cada vez mais para baixo. Só tinha quase 700 passageiros a bordo… há cada vez mais países com mais de 700 casos. Há cada vez mais países com mais de 1000 casos. Vejo a coluna amarela – a dos casos novos. Vejo a coluna vermelha – a dos mortos novos. Vou ao outro site. Tem o total de mortos nas últimas 24 horas logo no topo. No fundo da página está o mapa e o relógio que diz quantos casos foram reportados nas últimas 24 horas. Faço esta dança de sites e apps dezenas de vezes por dia. Há meses. Nos últimos dias, mais. Agora quase sempre quando acordo. Penso nas horas a que os países costumam reportar o que se passa e os sites são atualizados. Penso nos países que vão atualizando ao longo do dia. Penso nos dados que ainda faltam em alguns países. Penso nos países que não reportam. Ou que parece que fingem que reportam e onde não se passa quase nada há dias. Penso nisto durante dezenas de vezes ao dia. Sempre que faço a dança dos apps e dos sites.
Vou ao outro site. Tem o total de mortos nas últimas 24 horas logo no topo. No fundo da página está o mapa e o relógio que diz quantos casos foram reportados nas últimas 24 horas. Faço esta dança de sites e apps dezenas de vezes por dia. Há meses
WhatsApp. Messenger. SMS. E-mails. Esses são outros canais. Essa é outra dança. Notícias mais urgentes. Amigos. Família. Colegas. Distantes. Próximos. Assim assim. Perguntas, dúvidas, angústias. Quero saber se estão bem. Tanta gente espalhada pelo mundo. Tantas nacionalidades em tantos países diferentes. Ninguém está seguro. A família, como estão os teus pais, como estão as crianças, são as perguntas mais repetidas. Como estás tu. Como estou eu. Criar mais grupos no WhatsApp. Pôr a família toda junta. Os pais. O mano. As tias que moram sozinhas. Os primos. As mulheres dos primos. As filhas mais velhas dos primos. Os pais, as tias, tudo trancado em casa. Tudo grupo de risco. Os pais estão há mais dias. Pu-los em isolamento social preventivo logo no início da semana passada. Informar, gerir os medos e as angústias, explicar e preparar. Vai correr tudo bem. Vai ser o tempo que for preciso mas… pronto! E as outras tias, as que estão no lar na aldeia. Como estão. Ainda são mais velhas. Estão mais sozinhas. É mais difícil fazê-las sentir que estou com elas. Que estão comigo. E os amigos. Os amigos de todas as horas. Tudo gira à volta do mesmo. Mesmo quando parece que não. Não há mais nada que nos interesse. É tudo visto pelos olhos do vírus. E penso nos gafanhotos que destruíam as culturas em África. O que aconteceu aos gafanhotos? E penso nos refugiados. Onde estão os refugiados? E penso nos presos. Toda a gente confinada. E toda a gente está nas suas próprias casas. Será que as pessoas agora compreendem melhor o que é estar preso?
Os pais, as tias, tudo trancado em casa. Tudo grupo de risco. Os pais estão há mais dias. Pu-los em isolamento social preventivo logo no início da semana passada. Informar, gerir os medos e as angústias, explicar e preparar
E o bilhete. Tenho que regressar mais cedo para Lisboa. É o terceiro bilhete que vou comprar para regressar a Lisboa. Era para ir em abril. Depois antecipei para o final de março. Agora quero ir já. Vão fechar as fronteiras. Vai ser mais difícil.
Telefono à amiga. Tens que ficar com uma chave da minha casa. Há detergentes. Há comida. Há gel para lavar as mãos. Há paracetamol. Há papel higiénico. Deixo tudo. Se precisares, vens buscar. Não quero isto aqui sem ser usado quando te pode fazer falta. Se for preciso a casa para a quarentena de alguém, usas a casa. Falamos à distância de segurança de um metro. Não nos tocamos. Somos portuguesas. É difícil. Despedimo-nos até um dia. O vírus. O vírus. Tudo foi interrompido pela normalidade do pedido da minha sobrinha: “Tia, já me compraste o telemóvel?” E, de repente, por dois minutos, dei-lhe a gargalhada que ela diz ser única! E, de repente, por dois minutos, não havia vírus no meu dia nem vírus na quarentena dela.
