O mundo tem mais uma linha de cisão. Quando isto passar – e vai passar – estará dividido em duas facções incompatíveis: os que diziam que ia ser grave (que serão “os parvos alarmistas”) e os que diziam que não ia ser nada (“os parvos optimistas”); para os primeiros os segundos foram uns inconscientes para os segundos, os primeiros foram lunáticos. A moral da estória é que afinal só há duas opções para a parvoíce.
Segue-se uma cronologia desta última semana na Noruega, onde trabalho e vivo, com a minha família nuclear hemi-norueguesa, semi-portuguesa. Partilho-a porque espero que sirva de consolo, de aviso, de exemplo. A Noruega tem a mistura certa de recursos (muitos), população (pouca) e geografia (vasta) para se tornar um caso de sucesso nesta crise viral e, contudo… a 9 de Março havia 192 infectados confirmados, a 10 de Março, 277, a 11 de Março 489, a 12 de Março, 621… agora 1077 (média etária de 45 anos, 36% mulheres, 64% homens).
Quarta feira, dia 11 de março – Primeiro os factos incontornáveis: estou sentado no meu escritório na Noruega, o quarto país do mundo com maior incidência per-capita de infectados pela pandemia. O país parou. Não é para menos: devemos lembrarmo-nos de que o pânico é uma resposta natural a uma crise aguda na ausência de informações validadas e, na realidade, são poucas as informações validadas. É um vírus. Os nossos sistemas imunitários não o conheciam. As taxas de morbilidade e de mortalidade não estão estabilizadas – e provavelmente só se saberão em formato de meta-análise, daqui a anos, do mesmo modo que nas pandemias anteriores só muito tempo depois se percebeu a dimensão do momento. Sabe-se que a gravidade da infecção é proporcional à exposição ao vírus: em vários casos de grupos de gente saudável em que a exposição foi suficientemente aguda, as taxas de infecção rondam os 100%, os sintomas aparecem coincidentemente com taxas de mortalidade maiores que na exposição normal (aprox. 10%, com 30-40% em estado grave a necessitar de cuidados intensivos). Não é – como lemos aqui e ali – uma doença que só é verdadeiramente grave para os idosos, mas é muito grave para quase todos os idosos, que são os nossos pais, mães, avós, tios… enfim, nós. Todos os países ocidentais que não foram expostos a guerras ou catástrofes naturais têm uma população envelhecida, tão envelhecida que nos deu Brexit e o Trump. Relativamente às atitudes das instituições que temos para lidar com isto, a primeira análise factual que me ocorre é que o pot-pourri de medidas coerentes e tonterias demonstra algo que já se sabe há muito: a iliteracia científica é enorme, e se é incomodativa nos dias normais, nos dia que correm é mortal. Quem sabe está com os cabelos em pé, quem decide percebe que há algo grave mas não tem tintins para tomar as chamadas “medidas draconianas” porque não quer sair disto chamuscado pelo “afinal, estás a ver, eras um alarmista”. Eventualmente vai ser assim em todos os países, empurrar com o peito até ao topo e rezar para que no topo esteja uma pessoa consciente, cognoscente, com tintins (tintins é fundamental, independentemente de género).
Quinta-feira, dia 12 de Março – As escolas estão fechadas. Primeiro chegou-nos uma mensagem do prof. do Filipe (14 anos) “ah, um tio de um dos meninos foi diagnosticado com o vírus, por isso amanhã a aula do Filipe devia ficar em casa”. Uma hora depois chega outra mensagem (aqui os pais recebem comunicação da escola e dos professores por email, quase todos os dias) “ah, a escola afinal vai ser toda fechada”. A Anna (18 anos), que está noutra escola, vai ao email e descobre que também foi oficialmente fechada. Tudo o que envolva eventos públicos está fechado. Tudo? Não, alguém se esqueceu de perguntar o óbvio: “ah, mas os centros comerciais são locais de constantes eventos públicos, fechamos?” Como consequência, os putos sem escola fizeram o que os putos de todo o mundo fazem na mesma situação: foram encontrar-se uns com os outros no centro comercial. Ao final do dia, ordens do Governo para fechar todos os ginásios. Mais emails dos professores a pedir aos pais para atar os filhos a uma cadeira em casa.
Todos os chegados fora do espaço nórdico são postos em quarentena doméstica durante 14 dias. Os fechos e cancelamentos abrangem agora infantários, escolas e universidades, eventos culturais, eventos desportivos, ginásios, piscinas, massagens, tatuagens, cabeleireiros…
O paracetamol foi hoje oficialmente racionado – estava na mercearia do nosso bairro a comprar bananas e entra um senhor a perguntar espavorido “Har du paracet?” (“ah, ainda tem paracetamol?”). Aparentemente andava em romaria na cidade a recolher caixas de comprimidos. Há avisos de que a insulina vai ser racionada amanhã, e de que o serviço de ambulâncias aéreas vai ser limitado aos casos mais graves.
Sexta-feira, dia 13 de Março – Há polícia nos centros comerciais, a mandar os putos para casa. As ruas estão vazias. Vou correr com o meu cão. Cruzo-me com uma única pessoa, também a passear o cão, que parece ir aos esses. Os cães que gostam de lamber as mãos dos donos vão andar muito bêbedos, penso. O governo mandou fechar todos os cafés, restaurantes e quejandos. Hoje à noite não vamos ter a cerveja da praxe, no Molo, a fechar uma semana de trabalho. Ai.
No ar, a companhia aérea Norwegian despediu temporariamente 5 mil empregados; no mar, um dos estaleiros navais principais tem centenas de trabalhadores em quarentena forçada, em parcas condições, fechados nos dormitórios, provavelmente a trepar às paredes.
As lojas que estão abertas estão impossíveis – os noruegueses têm muita liquidez, por isso estão a usá-la em papel higiénico e em vinho. Acontece tudo de forma ordeira, pela calada, mas as prateleiras vão ficando vazias e as pessoas olham umas para as outras com um ar alternadamente desafiante e envergonhado.
Descobriu-se que um dos empregados do Ministério da Saúde – doente – tinha ido trabalhar segunda-feira: agora os directores, sub-directores, pessoal, etc., tudo mandado para casa em quarentena obrigatória.
As notícias que vão chegando de fora começam claramente a mudar as mentalidades cá dentro. Como é que se estanca esta hemorragia? Na China a coisa parece controlada, mas na Itália… Começam a aparecer os primeiros casos públicos de opinião polarizada. Internamente, aparecem os primeiros “ah, têm a mania que são melhores que os outros mas não estavam preparados e só têm feito asneiras”. Logo ali coladinhos chegam também os que expressam o óbvio “ah, mas como é que se pode estar preparado para isto sem se ser uma autocracia? Como é que se pára este monstro e se continuam a cumprir os valores da democracia ocidental”. Hoje na cidade era clara a distinção entre os parvos inconscientes e os parvos alarmistas: uns andam a tocar-se uns aos outros de forma acintosa, como se nada fosse, os outros parecem pombos tontos pela rua, a manter equidistâncias de 4 metros.
Como mote comum dos artigos de opinião, lê-se “ah, estes foram os dias de teste de resistência da sociedade Norueguesa ao coronavírus, e falhámos espectacularmente!”.
Sábado, dia 14 de Março – Alguém se lembra do óbvio “ah, mas se cancelámos tudo o que era ajuntamentos públicos, mas então um aeroporto não é um ajuntamento público com ramificações para o mundo inteiro?” – começam a fechar alguns aeroportos regionais. As ruas estão desertas, aparentemente os “inconscientes” começaram a ver notícias e a ficar alarmados pelos alarmismos. Nesta altura do ano muitos noruegueses viajam para ir fazer ski na Áustria, Suíça, Itália e estão a voltar para casa… cheios de febre. O modelo de quarentena que se usa aqui desde o início da crise é o italiano “ah, vá para casa e não atenda a porta”, sem pensar nos riscos que comporta e no insuficiência dos resultados obtidos. Em Oslo são cada vez mais os infectados, há zonas da cidade onde a concentração de casos é suficiente para se falar de os “fechar à chave” em Gulags de luxo. A realidade do que está a acontecer (que não há plano possível para lidar com esta situação de forma consistente) começa a sobrepôr-se às boas intenções dos governantes. Uma prima nossa, chegada a Oslo vinda da Áustria a arder em febre, acha boa ideia ir a casa (onde estão os filhos) buscar roupa e o cão, antes de se auto-isolar – e não há ninguém no aeroporto que lhe tenha feito uma triagem à chegada e que lhe explique que se deixe de ideias de ir a casa porque estão lá os filhos. A minha dentista, de quem sou amigo, diz-me que se por um lado o governo lhe pede que continue os actos médicos cingindo-se ao absolutamente necessário (os dentistas são considerados como profissionais necessários mas em elevado risco de contaminação), não sabe o que fazer porque não consegue comprar máscaras, ou fatos de protecção, porque estão esgotados. Por cada alguém que tenha comprado sem precisar, há alguém que precisa sem conseguir comprar. Outra coisa que me ocorre é que o pot-pourri de produtos que estão esgotados demonstra algo que já se sabe há muito: a iliteracia matemática é enorme, as pessoas não têm noção de escala, de que qualquer erro pequeno multiplicado por milhões se transforma numa catástrofe imparável.
Domingo, hoje, 15 de Março – Os transportes públicos ainda funcionam, mas ninguém os usa. No início da semana passada, as pessoas foram aconselhadas a – caso necessitassem de quarentena – deixar as suas casas primárias e ir para as cabanas de montanha (tipicamente longe de tudo e todos). Há cada vez mais casos de pessoas a arder em febre e a pedir que as vão buscar de helicóptero – por isso, a partir de hoje quem estiver fora do seu município tem até às 21 horas para voltar para casa e a polícia tem autoridade para multar ou prender quem quebre a quarentena ou quem vá para uma cabana de montanha que não pertença ao município onde mora – o que abrange, basicamente, toda a gente. A Scandinavian Airlines (SAS) despediu temporariamente dez mil empregados, ou seja, a principal companhia aérea escandinava está funcionalmente fechada.
Os bares e restaurantes em Oslo, que ainda estavam abertos desde que garantissem uma distância mínima de 1 metro entre clientes vão fechar a partir das 21 horas de hoje. Em Tromso, tal como em muitos outros municípios do norte da Noruega, quem venha do sul é obrigados a ficar em quarentena. Sogn-og-Fjordane, um município perto de Bergen, fechou – literalmente – as fronteiras locais, mesmo aos municípios vizinhos. Vai ser lindo.
Ao mesmo que se fecham fronteiras físicas, abrem-se as fronteiras digitais, entre os países no pico da onda da crise: segue-se uma cópia de uma troca de mensagens entre um médico de um hospital italiano e uma jornalista norueguesa, do Verdens Gang (VG), um dos principais jornais noruegueses (a identidade do médico foi confirmada mas não divulgada, a jornalista chama-se Camilla Huuse) :
Ainda, hoje, Domingo. Últimas notícias de agora mesmo: o governo norueguês aprovou um pacote de ajuda às companhias norueguesas afectadas pela crise, num total 10 biliões de euros – a partir de amanhã vamos saber como irá esta ajuda ser repartida pelos diferentes sectores nacionais.
Há pouco, na rua, passou por mim uma pessoa com uma máscara disfarçada por debaixo de um cachecol.
É isto.