Pedro Pimenta delineou um plano: percorrer toda a costa portuguesa a pé, de Monção a Vila Real de Santo António. São 940 quilómetros, que dividiu em 16 etapas, para cumprir até fevereiro de 2020, um fim de semana por mês (em junho, mês de feriados, haverá três). O ponto onde terminou a etapa anterior é sempre o ponto de partida da seguinte para todos os que o querem acompanhar.
Funcionário público, Pedro Pimenta, de 52 anos, é já um veterano das caminhadas – durante mais de uma década, liderou a secção de Pedestrianismo do Clube de Lazer, Aventura e Competição (CLAC) do Entroncamento, onde reside. Num registo informal, de impressões e pensamentos soltos, partilha agora, no site da VISÃO, uma espécie de diário desta aventura pela costa, ao mesmo tempo que nos brinda com belas fotografias e vídeos dos locais por onde passa (também os pode ver no site do projeto Costa a Pé).
Este é o relato da 12.ª etapa, entre Odeceixe e Vila do Bispo, realizada nos dias 26 e 27 de outubro.
Sexta-feira, 25 de outubro: “Resgate” noturno em Odeceixe
Mais uma vez, saio de Lisboa a meio da tarde, pois a viagem de autocarro vai ser longa. Destino: Odeceixe. Três horas sentado. A vantagem de viajar de autocarro, além de ser mais económico, é que dá sempre para dormir um pouco. Vou abrindo e fechando a pestana, reconhecendo localidades de passagens anteriores. O sol está a pôr-se e, por coincidência, estou a chegar à ponte sobre o Rio Mira em Vila Nova de Mil Fontes. Espetacular, o espelho de água com o efeito do Sol. Mesmo dentro do autocarro, aproveito para tirar uma foto.
Já de noite, quase no destino, telefono para o táxi para me transportar até à residencial na praia. À chegada, espero um pouco e logo aparece a senhora. Tinha ido ao pão. Nestas terras toda a gente se conhece e parece que fica tudo em família. Assim é com o dono da residencial (Dorita), o sr. Fernando. Mostra-me o quarto e descarrego logo a mochila porque o estômago está a pedir jantar. Fico na esplanada, apesar do vento. Gosto de estar no fresco e comer uma coisa quente. Carne alentejana e umas cervejas com ananás ao fim. Pago e vou para o quarto preparar as coisas para o dia seguinte.
Por volta das 22 horas, recebo um telefonema de umas caminheiras de Lisboa que também vão pernoitar em Odeceixe. Estão assustadas, a pedir ajuda porque fizeram uma inversão de marcha e o carro ficou preso numa valeta. Levanto-me rapidamente e peço ajuda ao dono da residencial. Prontifica-se logo. Vamos buscar uma corda. Ele empresta-me uma carrinha e leva outra com mais força. Ainda vai buscar um amigo e lá seguimos para fazer o “resgate”.
Mando mensagem às caminheiras para acenderem as luzes. Lá está o clarão a apontar para o céu estrelado. Parece um farol costeiro. Sorte que ninguém se magoou nem o carro se estragou. Aliviadas por já não estarem sós, acalmam-se e pouco depois já a viatura está na estrada. As rodas da frente não criavamo atrito o suficiente, mas lá se resolveu.
A residencial que elas tinham reservado já estava fechada e acabam por ficar onde eu estou hospedado, na “Dorita”. O sr. Fernando foi um espetáculo, de uma prontidão exemplar, a que fico grado. Deitamo-nos às duas da manhã. Para acordar às seis.
Vamos ter mais visitas – e um percurso lindíssimo.
Despesas: Viagem – €24; Dormida €35; Jantar – €17
Sábado, 26 de outubro: Odeceixe – Chabouco, 35 kms
Espreito à janela e está nevoeiro, noite escura. Preparo-me. Bato à porta das companheiras e saímos todos. Temos visitas. O Luís e a Idalina, o António Carvalho e a sua esposa Isabel. Sete da manhã é muito cedo para quem tem pela frente caminhos sinuosos. O céu já está azul, ficamos encasacados até o corpo aquecer. O outono traz as cores naturais do mar e do céu, da terra e do verde. Magníficas paisagens para quem se dedica à fotografia.
A altimetria não engana e começam logo a aparecer caminhos bastante sinuosos, em declives acentuados. Como tentamos sempre andar perto do mar, desta vez encontramos trilhos mais apimentamos. Saímos temporariamente da Rota Vicentina e arriscamos um pouco mais por serpentear as falésias. As formações geológicas são surreais. Parece que estamos noutro mundo. As formas, os contrastes e a imensidão.
Com as mochilas, temos que ter muito cuidado a descer. Uns têm mais dificuldades, mas há sempre ajuda ao passar os obstáculos. Às vezes, descemos de quatro e de quatro subimos. Cada vale tem um pequeno ribeiro para transpor. Andamos aos esses e num sobe e desce. Cada subida até a um topo é uma vitória. A cor da areia de manhã, um amarelo dourado, ainda por cima com maré baixa, é espetacular.
Num dos trilhos fazemos questão de descer até à praia. É tão inclinado que as pedras fogem-nos debaixo dos pés. Ao fundo, meia dúzia de pessoas aproveitam o sol de outubro. Já tinha saudades de caminhar na areia rija junto a água. Quando descemos, pensamos que temos que subir, desta vez através de uma escadaria enorme, mesmo para fazer moça nas pernas.
A Elsa e a Ana Tavares estão a sair-se muito bem, em esforço controlado. Uma grande prestação. O Luís e a Idalina, sempre leves, tanto a subir como a descer, nunca largam a companhia dos mais lentos. O António Carvalho, aquela máquina, desce devagar e sobe depressa, sempre cheio de energia. Quanto a mim… bom, vou-me arrastando. Este sobe e desce mata-me.
Para endireitar o corpo, desviamos mais para o interior, também por não existir alternativa. Por cada quilómetro rumo ao interior é mais um quilómetro que teremos de fazer de regresso à costa. Traço um azimute e entramos pelo campo adentro. Atravessamos terrenos particulares e acenamos a cumprimentar as pessoas. Pelo menos damos alguma satisfação. Andamos pelos extremos das herdades, sem pisar as cearas nem saltar vedações.
Por distração, num obstáculo apoiei-me numa estaca eletrificada e sofri um choque repentino. Por reflexo, larguei logo. Mais à frente, paramos à sombra de um pinhal para comermos alguma coisa. Já estamos quase a meio da etapa. Ali perto, há alguém a trabalhar na limpeza da mata que estanha a nossa paragem. Com alguma conversa, descreve-nos os próximos quilómetros. Agridoces! Chegamos à Praia da Amoreira e descansamos no Paraíso do Mar. Palavras de ordem: comer e beber. Cerveja e uma bifana no pão. Sem preconceitos nem etiquetas, somos os únicos portugueses no restaurante. Atestamos, que os níveis estão em baixo. A boa noticia é ter um local para comer. A má é que não dá para passar a Ribeira de Aljezur para a outra margem. Os dias estão mais pequenos e fazer mais 10 kms do que o previsto é complicado. Fazemo-nos à estrada até Aljezur.
Uma grande seca. Mesmo para sofrer, alcatrão à farta. Bonito só mesmo os arrozais abandonados por falta de caudal ou de gente que perceba da lide. Subimos ao Castelo de Aljezur e apanhamos a Grande Rota Histórica. Descemos novamente para voltar a subir, mas a subida não nunca mais acabava. Devido ao adiantado da hora, traço o azimute a Chabouco. Nas subidas, ninguém segura o Luís e o António, excelente ritmo. As senhoras vão mais de vagar, a tirar fotos e a conversar… com muita calma. O certo é que os últimos nunca descansam.
Grande estradão até Chabouco. Com um bom andamento, chegamos ainda de dia. A Isabel, a esposa do António, está a nossa espera. Acabamos junto ao restaurante. Bebemos e petiscamos as últimas reservas que levamos na mochila. O Luís, a Idalina, a Elsa e a Ana regressam de táxi a Odeceixe. Dia fantástico, com companhia e conversas do acaso. Depois de uma lesão, a Ana superou muito bem esta prova. Para a Elsa, foi um desafio pessoal.
O António e a Isabel levam-me com eles para Aljezur. Por sorte, vamos pernoitar no mesmo alojamento, um albergue com vários quartos, individuais e também uma zona mista de beliches. Desejo uma boa noite ao António e à sua esposa, pois quero descansar e por isso vou jantar por ali mesmo. Ao sair de um banho rápido, entra logo uma moça. Faz lembrar a minha casa: quando saio do banheiro há sempre alguém a querer aproveitar o quentinho. O jantar é ligeiro e, logo a seguir, descanso. Desta vez, fico na cama de baixo. Durante a noite ainda oiço um ronco, mas volto a adormecer.
Despesas: Dormida – €17; outros – €10
VEJA A GALERIA DE IMAGENS E O VÍDEO DESTE DIA:
Domingo, 27 de outubro 27: Vila do Bispo-Chabouco, 31 kms
Abro os olhos às 4h30 e às cinco levanto-me. Para não fazer barulho, pego nas coisas e levo-as para o átrio de entrada, no rés-do-chão. Tinha dormido no segundo andar e desço com todo o material por uma escada exterior metálica, em meias e calções. Visto que este tipo de alojamento misto tem boa política coletiva, ou seja, cozinha, sala e eletrodomésticos por nossa conta, aproveito. Com calma, preparo-me e faço o pequeno-almoço: Nestum. O dia está a clarear, o encontro é às 7h30. O António Carvalho tinha tido a ideia de fazermos este troço no sentido sul-norte, o que concordei. Melhorava a logística e poupava a distância a percorrer de carro, no fim do dia. Bebemos um café e vamos de carro, com a Isabel, até Vila do Bispo. Assim a Isabel regressava a Aljezur e esperar-nos-ia no Chabouco.
Após alguns quilómetros em alcatrão até à praia, é estranho ver o mar, pela primeira vez, do lado esquerdo. É difícil descrever a paisagem. Muitos declives acentuados, muito árido, vegetação baixa e muito isolamento, longe de tudo e de todos. Impressionante que os estrangeiros conhecem e aproveitam todos estes recantos para passarem as suas férias ou viver grande parte do ano em autocaravanas dos mais variados modelos.
O mar sempre calmo contrasta com o relevo. Há sempre um carreiro que podemos percorrer nos vértices das falésias. De uma beleza ímpar. Mas o que tem de belo tem de difícil progressão. O António segue na frente. Está com uma excelente preparação. Eu vou subindo aos poucos e viro-me para trás para tirar fotos e fazer um vídeo para mais tarde recordar.
É um percurso magestoso, não dá para pensar muito. As vistas são de grande beleza. Para quem caminha, ali tudo tem que correr bem. Além de dificeis, os acessos devem ser bastante demorados em caso de necessidade de socorro. As únicas pessoas que se veem são em caravanas ou carrinhas, não mais de meia dúzia em perfeita sintonia com a Natureza. Sinceramente, não tenho palavras: as formações das rochas das falésias são lindas, e umas atrás das outras. Gostos não se discutem, mas para mim esta é a zona costeira mais bonita de Portugal.
Custa-me a subir e falta-me o fôlego. Ultimamente, tenho passado mais tempo na cadeira por vários motivos. Mas com calma vai. Encontramos um solitário de mochila a trepar em sentido contrário. É admirável a liberdade, o crer, a satisfação de um homem que vem de longe empenhar-se naqueles trilhos. Pergunto-lhe em inglês se está bem e tem água. Ele afirma que sim. Agradece. O que leva uma pessoa a andar por ali sozinha?
Trilhos muito técnicos a exigirem muito de nós. As descidas e as subidas exigem que levantemos bem os pés e muito equilíbrio. De vez em quando, lá apanhavamos um estradão que nos leva a outra praia. Mas, depois, Jesus credo… subir em trilho. Entramos na Grande Rota Vicentina, com de muito respeito para quem anda com a casa as costas. Mais à frente, um casal novo de mochila em direção a sul. Finalmente, uma praia com algum movimento: a Praia do Amado. E que me perdoem os abestémios, mas estamos com muita sede. Depois daquelas paisagens e formações rochosas lindas, finalmente um banco, uma mesa, um balcão. Sem querer, bebemos uma caneca de meio litro de cerveja cada um, acompanhada com cajus. A seguir, a segunda, agora com um cachorro e batata palha. Nem digo o preço, não quero saber. O preço de matar a sede. Devido aos dias serem mais pequenos e à mudança da hora, e tendo em conta a dureza do percurso, ajustastamos novamente o trajeto. Seguimos aproximadamente em linha reta até Chabouco. Revelar-se-ia uma boa sugestão a do Carvalho, de alterar o sentido desta etapa.
Entramos na estrada que vai dar à Carrapateira e apanhamos outra vez a Rota Vicentina. Ganhamos algum tempo, pois o ritmo aumenta no asfalto. É sol de pouca dura. Voltamos a sair para um estradão que nunca mais acaba, de um isolamento total. Ainda são umas três horas sempre a andar num vale com alguns sinais de vida humana de outros tempos. Uma represa embeleza temporariamente a paisagem. De resto, um calvário. Algumas dores começam a aparecer por trás dos joelhos e nas ancas. Nada que me trave.
O António vai na frente, ao seu ritmo. Mais uma subida e a seguir outra e outra ainda. Toda a natureza tem a sua beleza, tudo tem uma história e tudo tem um porquê de ser como é… O GPS vai falhando e as contas às distâncias são arredondadas e reguladas pelo tempo em andamento. Finalmente, chegamos à estrada. Já estamos perto do Chabouco.
E lá está a Isabel à nossa espera. São quase 18 horas e fico contente de a ver, depois de um dia dificil. Valeu a companhia do António e a paciência de esperar por mim. Regressamos de carro a Lisboa… sentados. Acabo por chegar a casa mais cedo do que o previsto. É uma felicidade, o chegar a casa e ser recebido de braços abertos pela mulher e pela filha, como se tivesse estado um mês fora. Um grande agradecimento a elas, que contribuem para o meu estado de paz de espírito e para continuar esta aventura.
Despesas: Viagem e outros €40; almoço – €10
VEJA A GALERIA DE IMAGENS E O VÍDEO DESTE DIA:
As 16 etapas do projeto Costa a Pé:
1) 26 e 27 de janeiro: Monção – Caminha – Viana do Castelo, 47 + 27 kms
2) 23 e 24 de fevereiro: Viana do Castelo – Póvoa de Varzim – Porto, 53 + 42 kms
3) 23 e 24 de março: Porto – Ovar – Aveiro, 44 + 38 kms
4) 25, 26, 27 e 28 de abril: Aveiro – Tocha – Figueira da Foz – Pedrógão – Nazaré, 47 + 38 + 38 + 45 kms
5) 25 e 26 de maio: Nazaré – Peniche – Ribamar, 51 + 36 kms
6) 8, 9 e 10 de junho: Ribamar – Ericeira – Almoçageme – Cascais, 36 + 27 + 27 kms
7) 13 de junho: Cascais – Lisboa, 33 kms
8) 22 e 23 de junho: Trafaria – Meco – Sesimbra, 30 + 25 kms
9) 20 e 21 de julho: Sesimbra – Setúbal – Comporta, 30 + 28 kms
10) 24 e 25 de agosto: Comporta – Santo André – Porto Covo, 36 + 34 kms
11) 21 e 22 de setembro: Porto Covo – Almograve – Odeceixe, 35 + 37 kms
12) 26 e 27 de outubro: Odeceixe – Chabouco – Vila do Bispo, 35 + 31 kms
13) 23 e 24 de novembro: Vila do Bispo – Sagres – Lagos, 33 + 37 kms
14) 28 e 29 de dezembro: Lagos – Portimão – Armação de Pêra, 28 + 27 kms
15) 25 e 26 de janeiro de 2020: Armação de Pêra – Quarteira – Olhão 31 + 35 kms
16) 23 e 24 de fevereiro de 2020: Olhão – Cabanas – Vila Real de Santo António 35 + 25 kms