O desabafo de Inês Barros Cabral, 37 anos, enfermeira e autora do blogue As Birras da Mãe, até já tem mais de um ano, mas, diz ela, não houve mais nenhum post tão partilhado e tão comentado como aquele. Chamou-lhe Dia do Pai (para quem não o tem) e, numa vintena de linhas, ali explanou o quanto as celebrações na escola a fizeram sofrer quando era pequena.
“Tirem 2 minutinhos para pensar sobre o que sentirá uma criança que, além de ter de passar vários dias a elaborar um presente para alguém que não existe na sua vida ou que pura e simplesmente não estará lá (e nem venham com a velha máxima que “faz para o avô ou para o tio”, porque a criança sabe bem para quem se destina…), ainda tem de fazer o frete de lanchar com os pais dos amiguinhos e alinhar na cantoria ou teatrinho. Conseguem imaginar?”
E seguia a explicar que sempre fez parte da minoria que não tinha o pai presente – e que a exposição da sua vida familiar tornava a questão especialmente mais dolorosa naqueles dias porque vinha geralmente acompanhadas das perguntas “onde está o teu pai? E não veio porquê? Oh que pena, agora a quem vais dar o teu presente?…”
A solução que a mãe de Inês encontrou, à época, foi deixar de levar a filha à escola no Dia do Pai. Agora, a questão pôs-se novamente porque a filha de Inês, quatro anos, tem uma amiguinha na sala que vive numa instituição – e a miúda fala nisso frequentemente. “Chegou no Dia do Pai e disse: toma, este é o teu presente. A Sofia não deu ao pai porque não tem…”. E o episódio fez-lhe eco na cabeça.
“A minha experiência tem 30 anos, mas continuo a pensar que não faz sentido obrigar as crianças a comemorar algo que não faça sentido para elas. É claro que não podemos proteger as crianças de tudo, mas se há alguém que não tem culpa nenhuma se o pai está a trabalhar, cá ou no estrangeiro, se é para sustentar a família ou se se está simplesmente a borrifar, esse alguém é a criança…”, remata Inês, a assegurar que nem sonhava que isto fazia sentido para tantas pessoas.
Mas a verdade é que não está sozinha. Foi exatamente a pensar nas mesmas questões que, pela primeira vez, este ano, a Escola Básica Padre Agostinho da Silva, em São Domingos de Rana, na linha de Cascais, optou por comemorar só o Dia da Família – e isso foi muito bem recebido.
“Hoje, existem muitos tipos de família e para muitas crianças aqueles dias não faziam sentido nenhum. Assim, naquele dia, pode vir quem elas quiserem, quem têm no lugar do cuidador”, explica Sónia Carvalho, educadora daquele agrupamento, revelando que a proposta foi apresentada à direção da escola ainda durante o ano letivo anterior – e aos pais, no início deste – e todos concordaram.
“Faz todo o sentido”, assinala Jorge Gato, psicólogo e investigador da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. “Segundo os dados do INE, as famílias tradicionais ainda são a maioria no País mas a tendência é que cada vez mais haja outras configurações”, acrescenta aquele especialista, a sublinhar ainda que, por exemplo, no Reino Unido, o núcleo convencional – pai, mãe e criança – já não é o mais comum.
Além disso, assegura ainda Jorge Gato, há dados a comprovar que quanto mais protetor é o contexto, quanto mais igualitárias são as leis, mais protegidas as crianças se sentem. “Daí se poder dizer que, se só comemorássemos o Dia das Famílias, assim mesmo, no plural, teríamos a certeza de não excluir ninguém.”

Kittichet Tungsubphokin / EyeEm/Getty Images
Dia da “Pessoa Especial”
A preocupação com estes meninos sem pai ou mãe presentes nestes festejos escolares não se resume ao nosso retângulo. Por exemplo, foi por isso que, há perto de ano e meio, Red Ruby Scarlet, uma ativista australiana doutorada em estudos da primeira infância, lançou uma campanha – citada pelo The Independent – a pedir que os Dia do Pai ou da Mãe passem antes a ser chamados “Dia da Pessoa Especial”, para que as crianças sem aquele referente não se sintam excluídas.
“A linguagem que usamos não é indiferente – e pode ajudar a criar esse sentimento de pertença em quem não o tem”, defendeu, acreditando ainda que beneficiaria a família mais ampla: “Porque podem passar a incluir o avô ou a tia ou outro parente qualquer que seja cuidador.”
A ideia colheu também seguidores no Brasil – e há pelo menos dois anos – conta O Globo, relatando experiências de algumas escolas de São Paulo, como é o caso do Colégio Rio Branco: “Abolimos as comemorações específicas de Dia do Pai e Dia da Mãe porque entendemos que as configurações familiares são hoje muito diversificadas, e o que importa é o vínculo. Assim, é convidado a aparecer quem fizer sentido para cada menino”, explica Esther Carvalho, a diretora daquele estabelecimento escolar.
“A ideia da escola é que a confraternização seja também entre famílias, na diversidade que possa existir. Assim, não faz sentido um dia só do pai ou só da mãe”, acrescenta Ana Cláudia Esteves Correia, orientadora educacional da escola bilingue Stance Dual, na mesma cidade brasileira.
O caso repete-se num pré-escolar de Brooklyn, nos EUA – que optou pela designação “cuidadores” – para assim celebrar os pais e as mães e/ou qualquer outro adulto especial na vida de uma criança. Conhecida como Park Slope North, a escola é uma das demograficamente mais diversas de Nova Iorque. É também socioeconomicamente muito variável: alguns alunos são criados por duas mães, outros têm dois pais; algumas crianças vivem em lares adotivos, e outras residem com irmãos mais velhos ou com outros parentes; muitas famílias pagam milhares em mensalidades, enquanto outras são subsidiadas pela Administração de Serviços para Crianças de Nova York. “Trata-se só de inclusão”, defende o diretor, Jewel Vaughn.

Foi esta comunicação aos pais que chegou ao conhecimento de Isabel Stilwell e a levou ao protesto numa crónica de jornal
Contra o politicamente correto
Claro que há também quem considere estas medidas demasiado radicais: por exemplo, quando uma outra instituição canadiana anunciou uma ação semelhante e isso foi divulgado a nível nacional, os comentários críticos não demoraram: “Querem o quê? É a realidade”, ou “As crianças devem aprender a lidar com as suas questões, desde pequenas”, ou ainda “aí está o politicamente correto a atacar novamente”.
Foi basicamente a mesma reação que teve escritora Isabel Stilwell, revelada numa crónica de jornal. “Podem apagar a data do calendário, mas as crianças que não têm um pai presente confrontam-se com esse facto 365 dias por ano, e só ganham se a escola trabalhar com as famílias para as ajudar a lidar com a especificidade da sua situação”, escreveu, depois de ter sabido que os alunos de uma escola – “na área da grande Lisboa”, confirmou, depois, ao telefone com a VISÃO, mas sem querer precisar qual – não fizeram presente para o Dia do Pai porque “há meninos que não têm pai”.
“Achei absurdo. O Dia do Pai é no dia de S. José – e certamente que há um S. José nas suas vidas, seja o padrasto ou o pai do pai, ou o pai da mãe, ou um tio. Fui ingénua. Aparentemente o que foi explicado às crianças é que “há meninos que têm duas mães e não têm pai”, ou “dois pais e não têm mãe”. Aí, indignei-me a sério”, explicando que até pode haver meninos com duas mães ou dois pais, “mas não há meninos que não têm pai, nem meninos que não têm mãe. Não existe tal coisa”. Como quem diz, independentemente de quem são os seus cuidadores, uma criança nasce sempre de um gâmeta feminino e outro masculino.
Do seu lado, está também Eduardo Sá, psicólogo – que, a propósito deste tema, escreve assim no seu blogue A Escola Toda: “Quando vejo que há escolas que não comemoram o Dia do Pai e o Dia da Mãe para não ferirem a suscetibilidade de algumas crianças, talvez as imaginem numa bolha irresolúvel de um défice de atenção nos outros 364 dias do ano. E, muito pior, imaginam-nas como se elas não pudessem ter o orgulho de dar o resultado de todo o amor que depositaram num trabalho que fizeram para o pai ao padrasto, a um avô, a um tio, a uma avó, a uma tia ou à namorada da mãe, por exemplo. Ou à própria mãe! Como forma de lhe dizerem, se for o caso, que ela vale por dois.”
A decisão a cada escola, já
Oiça-se Filinto Lima, presidente da Associação de Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, para recordarmos que, muitas vezes, nestes assuntos, a escola é soberana e isso é o que faz tanta gente acreditar que é a chave para mudar o mundo.
“As escolas têm autonomia para decidir o que melhor convém à sua comunidade educativa. Podem perfeitamente propor estas ou outras celebrações, aquelas que considerarem as melhores para os seus alunos”, sublinha, acrescentando que medidas como estas não avançam isoladas – pelo contrário, são sempre validadas pelo Conselho Pedagógico e também Conselho Geral – onde estão representantes dos professores, alunos, pais, funcionários e ainda membros da comunidade, como os bombeiros ou a escola segura.
“É que, ao contrário do que se possa pensar, as escolas são lugares bastante democráticos.”
Herança da tradição católica
Há também, claro, quem diga que “não podemos desistir de todos os símbolos fundadores da nossa sociedade, nem almofadar a vidas das crianças” – como considera Amélia Amorim, psicóloga educacional – mas a verdade é que estas celebrações até são relativamente recentes.
A história do Dia da Mãe começa a contar-se na década de 1950, quando a Mocidade Portuguesa Feminina decidiu instituir a celebração em Portugal, fixando-o a 8 de dezembro. A data seria posteriormente alterada a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa – para que aquele dia fosse exclusivamente dedicado a Nossa Senhora, padroeira de Portugal. Passou para maio, mas o significado manteve-se o mesmo – na tradição católica, maio é o mês de Maria, a mãe de Jesus Cristo.
Já o Dia do Pai nasceu numa pequena escola de Madrid, por petição paterna. A professora, religiosa, concordou. Escolheu-se o dia 19, dia de S. José – e rapidamente, a celebração se generalizou a toda a Península. Três anos depois, entrou em cena um apoiante da área dos negócios: era o presidente da Galeria Precíados – famoso conjunto de armazéns espanhois, a par do El Corte Inglés e que desapareceu em meados dos anos 1990 – que pegou no conceito e organizou uma campanha de publicidade magistral. A data não mais foi esquecida.
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