A operação começou num final de julho, em pleno inverno australiano: antes do sol nascer, Shane Morse e Kevin Figliomeni iam passando perto de zonas onde os animais poderiam procurar comida e deixando o presente envenenado: salsichas para matar gatos. Era um preparado produzido numa fábrica no sul de Perth, capital do estado da Austrália Ocidental, e desenvolvido por um homem conhecido por Dr Morte: o que ele fazia era misturar carne de canguru com gordura de frango, juntar-lhe ervas e especiarias e no fim um veneno chamado 1080 – altamente letal para animais como o gato. Um outro carregamento era enfiado num avião, do qual eram lançadas 50 salsichas envenenadas a cada quilómetro quadrado.
Como haveria de explicar o Dr Morte, cujo nome verdadeiro é Dave Algar, investigador principal do Departamento de Conservação da Biodiversidade do estado da Austrália Ocidental, a receita foi desenvolvida com todo o cuidado para surtir a desejada eficácia. Antes de mais, examinando comida de gato nos supermercados, depois observando os sabores mais procurados. Como Morse sublinhou: “Isto tem de saber bem. É a sua última refeição.”
O governo da Austrália decidiu em 2015 tentar matar dois milhões de gatos selvagens no prazo de cinco anos, devido a uma crescente preocupação com a vida selvagem do país – em particular, grupos de pequenos roedores e ainda espécies marsupiais, para os quais os gatos se tornaram um predador mortal.
Segundo outra instituição australiana – o Instituto Real de Tecnologia de Melbourne – mais de 200 mil gatos foram mortos nos primeiros 12 meses após o início do plano. Mas largar salsichas envenenadas do céu é apenas uma parte dos esforços do país para erradicar estes gatos selvagens: há ainda armadilhas, tiros e ainda um planeamento intensivo para entrega de veneno.
Quando a medida foi anunciada, foi recebida com perplexidade. Mais de 160 mil assinaturas apareceram logo em meia dúzia de petições online a pedir às autoridades australianas que poupassem os bichos. Até Brigitte Bardot, a icónica atriz francesa que há mais de 30 anos tem uma fundação dedicada ao bem-estar dos animais, escreveu uma carta a reivindicar que acabassem de vez com o que chamou de genocídio animal. Também o cantor Morrissey (ex-The Smiths) lamentou que “os idiotas dominem a Terra” e lembrou a matança de Cecil, o leão-atração de um parque nacional no Zimbabué, morto com o propósito único de se tornar um troféu.
Não foram os únicos. Segundo Claire Fryer, a coordenadora local da Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético de Animais, na sigla em inglês) exterminar estes gatos, além de ser cruel, é ineficaz a longo prazo. “Matar os gatos para gerir melhor a sua população pode ter um efeito perverso, ao criar condições que favorecem a reprodução acelerada”, afirmou, alertando para esse fenómeno que nasce a partir de um declínio populacional abrupto: ao conduzir a uma menor competição por comida entre os sobreviventes, leva a uma taxa de natalidade mais elevada.
Mas a Austrália não fez caso: pediu ao comissário das espécies ameaçadas para responder por correspondência a Bardot e a Morrisey, detalhando os efeitos danosos das criaturas que eles tanto defendiam – e a Morse e Figliomeni que prosseguissem com o plano, transportando caixas com o veneno para os cantos mais remotos do país e, assim, acabar com o que fora considerado uma praga invasora.
A explicação é relativamente simples, como avança a reportagem do The New York Times: tal como muitas outras ilhas um pouco por todo o mundo, a vida selvagem na Austrália tomou um rumo completamente diferente da dos continentes maiores. Por exemplo, não tem espécies nativas de gatos – e, ao longo destes milhões de anos de isolamento, os nativos ajustaram-se aos seus predadores naturais. É por isso que os gatos, embora não sejam mais predominantes do que em outros lugares, são mais danosos para o ambiente que os rodeia. Tudo junto, isso permitiu que se estabelecessem uma posição permanente em 99,8% do país, mesmo em lugares desprovidos de pessoas, como a remota região de Kimberley.
Daí que, perante uma espécie considerada um animal de estimação e as muitas criaturas que fazem o equilíbrio da vida selvagem no país, os australianos não tenham hesitado. Mesmo que, para guardarem a vida selvagem que lhes resta, tenham que derramar sangue.
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