O mundo parece ter ficado virado do avesso. Os agricultores transformaram-se em pescadores e, agora, onde antes cultivavam a terra procuram peixe. Nas machambas (terras agrícolas) inundadas, navegam canoas a remos apetrechadas com canas de pesca.
A paisagem ao longo da Estrada Nacional 6, que liga a Beira a Maputo, transformou-se radicalmente após a passagem do ciclone Idai, que devastou o centro de Moçambique no passado dia 14 de março.
A autoestrada de construção chinesa esteve encerrada mais de uma semana devido à destruição provocada pela tempestade. Abriram-se crateras em alguns troços, enquanto outros ficaram submersos. Agora, circula-se normalmente nesta via rápida com duas faixas de rodagem em cada sentido, divididas por um separador central. A inauguração dos modernos pórticos de portagem, alguns deles também maltratados pelo furacão, será previsivelmente adiada.
“Duas semanas antes já se falava no ciclone. Foi bem anunciado na rádio, na televisão e pelos carros do município que percorreram as ruas com altifalantes. Mas ninguém contava que fosse tão forte”, admite Abel Joseph Juma, que segue ao volante da carrinha todo-o-terreno que, inesperadamente, nos conduzirá à localidade de Muda-Mufo, em Tica, no distrito de Nhamatanda, a 70 quilómetros da cidade da Beira.
“Se o temporal tivesse demorado mais tempo, não teria restado uma casa”, vaticina o moçambicano de 39 anos, que trabalha na empresa de safaris de um empresário português.
Ao longo de vários quilómetros, a estrada continua ladeada de águas paradas – despontam postes de eletricidade nos lagos recém-criados. Também se avistam campos de milho, ainda meio submersos, a apodrecerem.
“Não sabemos onde andam os crocodilos porque estão desorientados. Há muitos no rio Púnguè, que transbordou”, alerta Abel Joseph Juma.
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Luís Barra
O novo anormal
Saindo da via rápida, à entrada da localidade de Tica, vende-se peixe fresco e também seco. Muitos peixes secam ao sol, abertos ao meio, pendurados nos rails da berma da estrada. Há quem siga viagem com um estendal de peixes no volante da bicicleta. A escassos metros, garrafas de plástico com óleo alimentar estão alinhadas numa banca de madeira. Meio litro custa 40 meticais (€0,55) e um litro 75 meticais (€1,03). O óleo é essencial para fritar o peixe e, quem não tem dinheiro para comprar bidões de 20 litros, opta por estas pequenas quantidades.
Mais à frente, numa barraca de caniço improvisada, um letreiro anuncia: “Grava-se música, carrega-se telemóvel.” Também se transacionam por ali madeiras e canas para a recuperação das casas.
Passam muitos ciclistas carregados com sacos de carvão. A falta de energia levou ao aumento da procura desta matéria-prima e à consequente escalada do preço. Antes, um saco com 20 quilos custava 300 meticais (€4,12), agora há quem os venda a 800 (€11,11).
São várias as crianças que se escapam pelos caminhos de terra batida quando veem pessoas brancas. Não estão habituadas a vê-las tão perto e talvez desconfiem das suas intenções.
Passando o centro de Tica, avança-se na estrada e avista-se uma escola com telhados de chapa revirados. É por esse percurso lamacento que a carrinha avança. Uma jangada abandonada, feita com troncos de palmeira, prova que o caminho esteve transformado em rio. Quase um mês depois do temporal, ainda há zonas isoladas.
“Escola Completa de Muda-Mufo”, lê-se na parede do edifício principal. À volta, as casas dos professores e a secretaria. A população vive em casas mais precárias numa zona recuada, rodeada de campos agrícolas, alguns ainda submersos, outros visivelmente destruídos. Ao todo, foram atingidos mais de 700 mil hectares de campos de cultivo no país. O Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) já começou a distribuir cerca de 15 mil kits com sementes e ferramentas agrícolas, numa tentativa de contrariar o prolongamento da dependência alimentar.
Uma tenda da UK Aid, uma organização britânica que luta contra a pobreza, e outra com a bandeira chinesa, que funciona como posto médico, estão ali instaladas. Mas nem sinal dos estrangeiros.
Há um escritório ao ar livre. Pertence a André Sete, 45 anos, que se apresenta como sendo o responsável por “controlar as epidemias”. Está temporariamente ao serviço da autarquia local, mas é um camponês de Tica. Instalou uma mesa de madeira à sombra e vai tomando nota, num caderno de folhas pautadas, dos nomes de quem precisa de ajuda alimentar. Há 136 famílias inscritas, o que pode significar mais de mil pessoas, já que facilmente os agregados têm perto de uma dezena de elementos. O telemóvel, pousado em cima da secretária, carrega ligado a um pequeno painel solar portátil. A meio da manhã o sol está tão forte como no auge da tarde.
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Luís Barra
Os perigos trazidos pela calamidade
“A escola já recomeçou, mas ainda há muitas famílias que vêm dormir aqui porque têm as casas destruídas. Umas 400 pessoas”, contabiliza André Sete. Algumas salas de aulas perderam os telhados de chapa de zinco, mas os professores lecionam mesmo assim. Os dados mais recentes indicam que cerca de 3300 salas de aulas ficaram destruídas em todo o território.
A ONU aumentou em 100 milhões de dólares a ajuda à reconstrução em Moçambique, subindo-a para um total de 300 milhões (265 milhões de euros). Uma contribuição essencial para aquele que é o nono país com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, ocupando a posição 180 entre 189 Estados, de acordo com os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2017.
As casas parcial ou totalmente arrasadas ascendem às 200 mil, mas apenas cerca de 73 mil pessoas estão em centros de acolhimento. São muitos aqueles que continuam a dormir ao ar livre, vulneráveis aos mosquitos que transmitem o parasita responsável pela malária. As autoridades de saúde locais registavam 7 mil casos da doença, no início desta semana. As Nações Unidas estão a distribuir 750 mil redes mosquiteiras e também medicamentos e testes rápidos para o diagnóstico da malária.
O governo de Sofala ordenou aos hospitais da província que prestem assistência médica gratuita aos utentes até dezembro, para minimizar as dificuldades causadas pela catástrofe.
Outro dos principais riscos para a saúde pública é a cólera. Provocada pela bactéria vibrio cholerae, a doença transmite-se pelo consumo de água e comida contaminadas. André Sete conduz-nos orgulhosamente até ao furo de água onde a população se abastece. “Aqui só tem água do poço mas, depois, trata-se com cloro ou Certeza [desinfetante]”, diz.
Quando lá chegamos, a garrafa de plástico que continha o cloro está no chão, vazia. Tal não impede um grupo de raparigas de seguir carregado com bidões amarelos de 20 litros. “Não tem cloro?”, pergunta, incrédulo. “Acabou agora…”, responde uma delas, escapulindo-se para o interior da aldeia. De acordo com os dados oficiais, foram tratados quase 4 mil casos de cólera nos últimos quinze dias e registaram-se sete mortos. Já foram administradas 800 mil vacinas contra a doença na província de Sofala. “Tenho de vir repor o cloro…”, justifica-se André Sete, sabendo que mesmo sem desinfetante ninguém deixará de beber daquela água. É a equipa chinesa ali instalada que os tem abastecido. “Mas é muita gente, acaba depressa…”, lamenta-se.
Os dias sucedem-se sempre na expetativa da chegada de ajuda alimentar. André Sete não sabe dizer quando virá o próximo camião. É a hora da despedida, com desejos de melhor sorte.
Inesperadamente, a sorte parece estar a chegar. À entrada da aldeia, avista-se um camião branco com vários militares moçambicanos transportados na galera. O aparato desperta a atenção das poucas pessoas que por ali circulam. Começa o passa-palavra que fará o grupo alargar-se a várias dezenas de pessoas.
“Que surpresa! Não contávamos com isto agora”, exclama, satisfeito, André Sete.
Quando desce do camião, o capitão-mar-e-guerra Filipe Impira apressa-se a explicar aos jornalistas que, ao passarem na estrada, os militares deram-se conta de que “a população de Muda-Mufo estava a sofrer” e resolveram trazer alguns alimentos para distribuir. “Também temos sentimentos”, diz o comandante da operação.
Fazem-se acompanhar por um operador de câmara e um fotógrafo, vestidos igualmente de camuflado. “Para mostrar ao exército e ao mundo o nosso trabalho”, atalha Filipe Impira.
A instabilidade do piso, ainda molhado, enterra os pneus da frente do camião na lama. Um grupo de homens afadiga-se a resolver o problema colocando tábuas de madeira atrás das rodas, antes de o condutor fazer marcha-atrás. Saciar a fome terá de esperar até ao problema estar resolvido.
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Luís Barra
Dominados pela fome
André Sete já não tem mãos a medir. Enquanto os homens se dedicam à mecânica, aponta os nomes das mulheres que se acotovelam numa fila cada vez mais longa, à espera de alimentos. As coloridas saias de capulana parecem um pedaço único de tecido de tão juntas que estão. Muitas trazem os filhos às costas, outras amamentam enquanto esperam.
“Se vai apontar estes nomes todos, vai escrever até cansar”, reclama Amélia Maurício, 33 anos. Tem um turbante azul-turquesa a cobrir-lhe a cabeça que a faz destacar-se entre a multidão. Ao colo, traz a mais nova dos seus quatro filhos. Tem 1 ano de idade. “Faltam-nos chapas para as casas, mas o que faz mais falta é a comida”, sublinha. “Aqui não ganhamos dinheiro”, explica Amélia. Nas zonas rurais, o mais habitual é viver da terra. Com as culturas arrasadas, não há alimentos nem dinheiro para os comprar.
Até conseguir materiais para reconstruir a sua habitação, Amélia Maurício continuará a dormir na rua com toda a família. Mas não foi a casa a sua maior perda.
Dos sete irmãos, restam-lhe seis. Maria Armando, uma das suas irmãs mais velhas, tentou fugir para a escola de Muda-Mufo quando a sua casa começou a ficar inundada, mas não conseguiu lá chegar. Amélia já perdeu a esperança de encontrar o corpo da irmã. “Foi mesmo”, diz, comovida, fazendo um gesto com a mão como se estivesse a vê-la a ser levada na enxurrada. “A minha irmã estava grávida e deixa seis filhos. Vão sofrer, vão sofrer”, lamenta. Em Moçambique, o ciclone fez, oficialmente, 602 mortos e afetou mais de 1,5 milhões de pessoas. Talvez nunca se venha a saber quantos cadáveres ficaram por contabilizar.
Com o camião desatascado, também os homens começam a formar uma fila desordenada, tentando constantemente atropelar-se uns aos outros. As crianças observam as movimentações com curiosidade. Só os adultos podem estar nas filas. A esta altura, quase duas centenas de pessoas aguardam pela distribuição.
À medida que a comida vai sendo retirada do camião, torna-se evidente que não é suficiente para saciar a fome da população ali presente. O mais abundante é a farinha de milho: 20 sacos de 25 quilos.
Cada pessoa pode escolher entre dois copos de farinha de milho ou um copo de açúcar, arroz ou feijão. Antes de dar início à entrega, o comandante Filipe Impira faz um discurso, filmado e fotografado, diante das várias filas que se formaram. “Vamos distribuir o pouco que temos”, afirma. “É o donativo de uma empresa”, acrescenta. Os militares mostram para a câmara os recipientes que servem de medida para cada alimento.
A comida vai desaparecendo, mas a fila não parece diminuir. Luísa Fernando, 17 anos, escolheu levar feijão. Transporta-o no fundo de um saco de plástico azul. Os militares fotografam a doação. A jovem mãe de um bebé com 9 meses tem feito apenas uma refeição por dia, habitualmente massa. À uma e meia da tarde ainda não comeu nada. Vivem cinco pessoas em sua casa. O feijão dará para uma refeição, talvez duas, bem dividido.
Um rapaz parece distraído nas brincadeiras com os amigos, no meio dos destroços do telhado de um dos edifícios da escola. Pura aparência. Esteve a ouvir a conversa e também quer dar a sua opinião: “Lá em casa, somos nove pessoas, claro que esta comida não chega”, afirma.
Vive com os cinco irmãos, os avós e um tio. A mãe morreu num acidente de viação há três anos. Hoje, a família já comeu massa, conta. Estuda na Escola Completa de Muda-Mufo, tem aulas numa sala sem telhado. Sonha ser piloto de aviões e está confiante que vai conseguir. “Sou bom aluno.” Antes de regressar para junto dos amigos, apresenta-se: chama-se Manuel Rui e tem 12 anos. Sabe que há um escritor angolano com o seu nome. Foi o avô quem lhe contou. “Mas os livros foram todos com a água.” Restam-lhe as histórias que guarda na memória.
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