Ele já consegue esticar a mãozinha para agarrar um dedo ao pai e à mãe, estes já lhe mudaram a fralda. Até já o tiveram ao colo. “Não pesava nem um quilo de açúcar, eu nem lhe sabia pegar”, conta a mãe, a explicar que para o fazer tem de ser com as duas mãos juntas, em conchinha – a confessar que esse era o seu desejo inicial: “Lembro-me de olhar para ele e pensar: se pudesse, pegava-te e enchia-te de beijos.”
Essa era uma das razões para ter adiado aquele momento tão especial: “O quê? Ainda não fez o canguru? Então, vai fazer agora”, desafia-a a médica de serviço. A mãe de quem falamos senta-se devagarinho no cadeirão sem esconder algum nervosismo, ao mesmo tempo que, com todo o cuidado, a enfermeira segura nos fios do ventilador que envolvem a criança. E eis que temos o momento canguru, de mãe emocionada com bebé ao peito e pai atrás. Sem grandes preparativos – mas com o sorriso cheio e aberto. Como qualquer mãe de primeira viagem. Um momento que vai ficar para sempre registado na sua memória.

O bebé de Tânia e Nelson ainda está internado – e só terá alta, se tudo correr bem, lá para maio
José Carlos Carvalho
“E agora? Agora, essa criança vai nascer”
À nossa frente, estão Tânia Oliveira, 30 anos, e Nelson Gomes, 39, que não têm tido uma vida fácil no capítulo da sua vida em conjunto que diz respeito a serem pais. À primeira tentativa, ela sofreu um aborto retido – depois de muitas tentativas, e de terem acabado por se socorrer da inseminação artificial. Como a gravidez não seguiu adiante, eles até queriam esperar mais um tempo, mas eis que Tânia acabou por engravidar de forma espontânea.
Corria tudo bem até às 23 semanas, até que apareceram umas dores estranhas. “Era como se sentisse latejar”. Pelo meio uma perda de sangue, mas não era sangue-vivo e deitou-se. Pouco depois, umas contrações. Mas era domingo e não queria ir logo ao hospital. “Quando finalmente lá cheguei puseram logo as mãos à cabeça”, recorda. “Só diziam não pode ser, não pode ser…”. O colo do útero estava completamente “apagado” e a bolsa descera até ao canal do parto.
“E agora?”, perguntava Tânia. “Agora, essa criança vai nascer hoje”, responderam-lhe.
Era a pior resposta que lhe podiam ter dado, recorda, e a que aquela mãe preferia nunca ter ouvido. “Eu só pensava ‘não pode ser, ainda são só 23 semanas de gestação”, segue, a sublinhar que tinha perfeita noção de que estava a pouco mais de meio de uma gravidez normal. “Só dizia: ‘não, não pode nascer agora’ e chorava…”
Ainda houve esperança de conseguir colar o colo do útero para a bolsa ficar lá dentro e adiar, nem que fosse uns dias, o termo daquela gravidez. “A chefe do bloco até ligou a outro médico e disse: tens de vir cá ver o que tenho aqui…” Até que foi claro para todos que não havia qualquer hipótese.
“Só me diziam: somos médicos, mas não fazemos milagres, e via-se na expressão deles o desespero. As lágrimas caíam-me cara abaixo, por mais que me tentassem acalmar. A verdade é que aguentou mais um dia, depois de uma noite cheia de contrações – “mas muito caladinha, até porque me tinham dito que era melhor aguentar pelo menos até às 24 semanas para ele nascer. Eu sabia que a viabilidade às 23 é mínima ou quase nula.”
Não aconteceu. Seguiram para cesariana, para aumentar as possibilidades de sobrevivência do bebé – com o médico sempre a alertar: “Ele pode nascer e durar apenas 24, 48 ou 72 horas. É a chamada fase de lua de mel. Depois podem vir complicações e as coisas não correrem bem.”
Conta aquela mãe-coragem que não tinha dúvidas sobre o que fazer. “Vou até onde for, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ele sobreviva. Não posso sentir-me culpada.” Subiu ao bloco de partos e, depois de uma epidural que não resultou e obrigou à anestesia geral, houve mesmo um nascimento.
“Só me lembro de acordar e perguntar: o meu filho está vivo?”, diz Tânia, assumindo que só depois perguntou pelo pai da criança. Não o foi ver logo. Mostraram-lhe uma foto. “Achei que era parecido comigo.”
Nos momentos que se seguiram, antes de dizer fosse o que fosse, a mulher olhava sempre primeiro para a cara do marido. “Se ele estivesse bem, perguntava tudo. Se tivesse a cara em lágrimas, sabia que não estava a correr muito bem…”
Até que a convenceram a ir ao piso 7, onde está aquela sala tão especial que é a unidade de neonatologia – no caso, do Hospital Santa Maria. Trata-se de uma sala com incubadoras para 8 bebés, abertas 24 horas por dia para os pais, que são considerados um elemento fundamental da equipa terapêutica – esse grupo multidisciplinar de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas… Cheio de ventiladores e monitores, à primeira vista, é um lugar que causa sempre apreensões. Mas pouco a pouco, aqueles pais também vão ocupando o seu lugar, até porque ouvem repetidamente que é muito importante que o seu bebé vá ouvindo a voz deles – e que sinta o calor do corpo, o bater do coração…
Agora, já está tudo mais calmo: “já passaram dois meses, os médicos também estão bem mais confiantes”, segue contando Tânia, a lembrar que no início lhe diziam sempre que tinha de ser um dia de cada vez. E, antes disso, uma hora de cada vez.

“O quê? Ainda não fez canguru? Então vai fazer agora!”
José Carlos Carvalho
“Só pode sair daqui quando tiver à roda de dois quilos”
Quando viu o seu bebé pela primeira vez, foi um choque. “Tinham-me dito que nascera com 32 centímetros e eu lembro-me de ter pensado: “Ah, ainda é grande”. Nem liguei às 570 gramas.”
O pior foi depois. “Ele não tinha cara com formato de bebé. Parecia um ET. Não tinha as feições definidas. Ainda tinha aquela cor escura, ainda se viam as veias todas. Não tinha músculo. Tinha o osso e a veia a passar. Não tinha a cor que tem agora…”, desabafa, antes de abrir um sorriso vencedor: “Agora, já tem 1 quilo e 47, chegou até a ter um 1, 120…”
Mais uma volta, mais uma viagem e aquela mãe voltou a ir-se abaixo pouco depois do parto, quando lhe deram alta. Os sentimentos eram tão contraditórios: estava farta de hospital, mas também não queria deixar o filho internado. E desatou a chorar.
“Foi nessa altura que percebi o que é sentir-se mãe, algo que ainda não sentira até então. As enfermeiras bem chamavam “então, mãe, então mãe…” mas eu achava que não era para mim, aquele (ainda!) não era o filho que tanto queria…”
A explicação para tudo aquilo, insiste aquela mãe, até é muito simples. Não fora nada como ela pensara, nada como programara. “O que imaginara era aguentar a gravidez até ao fim. Depois, ele nascia e três dias depois íamos para casa. Só que não foi nada assim … ”
As questões na sua cabeça não param, desde então. É verdade que o garoto já está bem maior – como quem diz já tem 1 quilo e 47… – mas ainda falta tempo para ter alta. E isso leva Tânia a outra confissão: “Ainda não comprei nada. Ainda não tenho nada. Não sei…será que vai correr bem? Será que vai correr mal? Ele vai para casa ou não vai…”
De repente, faz-se silêncio e aquele relato corajoso é interrompido. Estamos na sala dos pais que existe ao lado da unidade, no Hospital Santa Maria, e não há como saber o que fazer – o que dizer. A voz embargada alterna com o soluço de quase lágrima. “Pelas contas, ele nascia em maio. A 12 de maio.” Mas como ainda falta abril e maio, a ansiedade não abranda. “Quanto tempo é que ele vai cá estar? Quando é que ele vai para casa? Será que vai…?”
Pouco depois, já mais recomposta segue: “não tenho nada adiantado, nem sei se vou adiantar. Tenho algumas roupas porque tenho dois sobrinhos e a minha irmã tem-me mandado tudo, guardado em caixas. Às vezes viro-me para a minha mãe e digo: Ah, o tempo está tão bom agora, não sei se devia começar a lavar…E depois nas lojas só há coisas lindas. Entro, vejo, mexo, o Nelson diz-me: ‘leva’ mas eu digo: não, ainda não, depois venho cá buscar.
Nelson anui que é o mais otimista dos dois – mesmo que, desde que tudo isto começou tenha a vida virada ao contrário e mal consiga dormir. “Fecho os olhos aí umas duas horas….”, conta ele, sempre de sorriso na cara. Entra ao serviço às oito da manhã, na fábrica onde é operador de máquinas, e num quarto de hora está a ligar para o telefone da neonatologia para saber como está o filho. Tânia, vendedora e distribuidora de leitão, está de baixa de assistência ao filho, renovada de 30 em 30 dias enquanto ele estiver internado – licença de maternidade só quando tiver alta. Vivem em Negrais, no concelho de Sintra, e vão com alguma dificuldade ver o filho todos os dias. “E o que gastamos em estacionamento. Há um parque gratuito, mas tem poucos lugares. E onde vivemos não há transportes para aqui…”

Nasceu com pouco mais de 500 gramas, agora já tem quase o dobro. Mas ainda tem um caminho pela frente até ter alta
José Carlos Carvalho
Até levarem o pequenino com eles ainda pode ser uma longa espera – e, no entretanto, ainda ecoam demasiado na sua cabeça as palavras dos médicos quando o filho nasceu. “Diziam que quando é bebé com 23 semanas e seis dias, que já são quase 24, aí já há alguma esperança de ser viável. Mas não era o caso do meu, que só tinha 23 semanas e dois dias, ou três dias. Para eles, não havia perspetiva de viabilidade. Depois, disseram-me que seria mais viável se chegasse às 600 gramas, mas também não tinha. Ficou-se pelas 570”, conta.
A contabilidade daquela unidade do Hospital Santa Maria anota que, de 2001 a 2015, passaram 15 crianças com 23 semanas e vários dias e apenas sobreviveram duas. Pesavam entre as 470 g e as 710 gramas. As que sobreviveram tinha 550 e 604, respetivamente.
Para Tânia e Nelson – e para o seu pequenino – têm sido dois meses a saltar obstáculos. A tentar ganhar mais algum ânimo, Tânia não resistiu e pôs-se a tentar encontrar pontos comuns com as histórias de sucesso que há nos cartazes espalhados pelas paredes. Nada sobre alguma sobrevivente de 23 semanas. Muitos de 25, 26. De 23, nada. Uma e outra história que as pesquisas no Google lhe devolveram lá vão animando para o tempo que falta. “Ainda estamos a meio caminho…”, diz, e a voz daquela mãe volta a soar ao mesmo fiozinho embargado de há pouco. “O bebé só pode sair daqui quando tiver dois quilos…”