Naqueles instantes, só se ouve a respiração de um homem e os pássaros do Parque Natural de Yosemite, na Califórnia. É a pique e na vertical, de cima para baixo, que vemos Alex Honnold, 33 anos, a galgar o El Capitan, (‘‘El Cap’’) formação rochosa com 910 metros (três vezes a Torre Eiffel), sem uma única corda. As suas mãos grandes, sem serem rudes, e os seus dedos portentosos polvilhados de pó branco do giz enfiam-se de forma minuciosa em fendas mínimas.
Estas imagens iniciais de Free Solo, documentário da dupla de realizadores Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin, vencedor do Bafta e do Oscar de Melhor Documentário, são apenas um aperitivo para o que de visceral aconteceu. A 3 de junho de 2017, o alpinista norte-americano demorou menos de quatro horas (3h56m) a chegar ao topo daquela que é considerada pelos profissionais a mais impressionante parede de escalada do mundo. Começou às 5h32 para, às 9h28, exclamar: “Tão feliz! Que aventura!” Depois de oito anos de treino, dois dos quais registados em Free Solo, Alex nunca sorriu tanto como ao atingir o cume do El Capitan. Nos últimos 100 metros começou a celebração e os 50 metros finais foram mais fáceis, já com menos inclinação. Quando contou à namorada, Sanni McCandless, ouviu-a chorar e ele próprio não esteve longe disso.
Nascido em Sacramento, na Califórnia, Alex Honnold começou a escalar aos 5 anos e aos 10 já treinava na parede do ginásio seis vezes por semana, três horas por dia. Ainda começou a tirar o curso de Engenharia Civil, mas desistiu. Com 21 anos, em 2008, chamou as atenções internacionais com duas escaladas sem corda: ao lado noroeste da Half Dome (609 metros), em Yosemite, com o tempo de 2h15m, registada na curta-metragem Alone On The Wall, e ao Moonlight Buttress (365 m) no Parque Nacional de Zion, no Utah, em 83 minutos.
Seguiram-se inúmeras aventuras. Com Sean Leary, escalou 914 metros do “El Cap” durante 24 horas seguidas, subindo ao topo três vezes, perfazendo mais de 2 700 metros de altura escalados na vertical. Em 2012, também no Yosemite, fez subidas consecutivas do “El Cap”, da Half Dome e do Monte Watkins, as três mais altas elevações do parque, perfazendo 2 133 metros verticais em menos de 19 horas. E dois anos depois, com David Allfrey, subiu sete rotas diferentes do “El Cap”, em sete dias. No México, em 2015, escalou o Sendero Luminoso – 500 metros de rocha no Parque de Potrero Chico, em apenas três horas, quando muitas duplas de alpinistas demoram dois dias, com proteção.
Empreendimento arriscado
Na origem de Free Solo está uma amizade e a determinação em superar o que parece impossível. Alex Honnold e o realizador Jimmy Chin, também alpinista profissional, conhecem-se há uma década e, juntos, já fizeram várias expedições pelo mundo. Quando Jimmy e a sua mulher, Chai Vasarhelyi, também realizadora, o desafiaram para fazer o filme, só deram a Alex ainda mais motivação para concretizar o seu sonho.
As questões éticas surgiram antes de todos se comprometerem com o documentário. Passaram seis meses a pensar sobre o que poderia acontecer, incluindo o cenário assustador de pôr em risco a vida do alpinista e filmá-lo a morrer. Seria a equipa de filmagens um elemento de distração? “Interessa-me a segurança, mais do que o material, as imagens”, conta Jimmy na apresentação do documentário à imprensa europeia, em Londres, um dia depois de ter recebido o Bafta, da British Academy of Film and Television Arts. Tecnicamente, foi um “desafio enorme” movimentar uma série de pessoas e de câmaras na rocha, de modo a deixar todo o equipamento no local exato, pronto a captar as imagens do alpinista no ângulo certo. “Planeámos uma produção que não sabíamos se ia ou não acontecer. Ninguém perguntou ao Alex quando é que ele o ia fazer ou mesmo se o faria. Praticámos juntos durante dois anos e, a cada noite, eu só descansava quando os cinco membros da equipa, todos profissionais de escalada, estavam com os pés no chão.”
Já Chai Vasarhelyi é mais pragmática: “Havia três cenários possíveis: escalar com sucesso, desistir por achar que era demasiado perigoso ou por motivos de força maior, como um terramoto ou um ataque cardíaco, e o filme seria o mesmo porque o objetivo era honrar o trabalho do Alex. Tivemos de viver com essa sensação de risco durante dois anos. Fazia parte do trabalho.”
Durante dois anos, filmaram 700 horas com quatro câmaras em simultâneo e o resultado é este documentário de pouco mais de uma hora e meia de pura adrenalina, com momentos de cortar a respiração, apesar de conhecermos o final feliz. Alex Honnold considera Free Solo “um retrato e um reflexo honesto de dois anos de vida. Todos sabiam onde tinham de estar, e eu sabia o que esperavam de mim.”
O público português poderá ver Free Solo na televisão, no domingo, 17 de março, às 22h30, no canal National Geographic. Uma obra que ficará para a história da escalada e que conta com dois portugueses na ficha técnica. Joana Niza Braga e Nuno Bento, ambos com 27 anos, trabalharam à distância, a partir de Lisboa, no centro de pós-produção de cinema Loudness Films. Integraram a equipa de som, usando uma técnica que permite criar sons que não foram captados nas filmagens, especialmente neste documentário com difíceis condições de acesso.
Fora do normal
Tímido, obstinado, disciplinado e sereno, Alex Honnold encontra na escalada um elevado grau de satisfação, permitindo-lhe estar sempre a superar o desafio. Sem crença em qualquer tipo de espiritualidade ou religiosidade, considera que o tempo limitado em que estamos vivos deve ser usado para fazermos aquilo de que mais gostamos. “Não quero encorajar os jovens a praticarem free solo, mas se a mensagem que o filme passar for a de que será preciso esforço e muito trabalho árduo para se conseguir concretizar os sonhos, então sim, serei inspirador para o público mais jovem”, explica o alpinista.
O free solo é uma escolha muito pessoal, algo que requer um elevado grau de habilidade e preparação. Ao contrário do que se possa pensar, os seus maiores inimigos não são nem o vento nem o sol, eventuais tempestades, um simples espirro ou uma poeira no olho, mas sim sentimentos íntimos, como a fraqueza e o medo, como o de sofrer algum problema físico e o de não acreditar que é capaz. Há 12 anos a viver numa carrinha Ford Econoline E150 de 2002, Alex mantém as suas “boas práticas”, e isso passa por ter sempre as mesmas rotinas, de forma a eliminar variáveis e a assegurar que tudo é igual, nos treinos ou durante a experiência final. “Não quero ser apanhado de surpresa”, explica. Na pequena kitchenette da carrinha, prepara na frigideira uma mistura de batata-doce, azeite, ovos e espinafres. Alex cozinha com uma escumadeira, a mesma com que come a omeleta vegetariana. Para quê gastar espaço a guardar talheres, se um só objeto pode fazer as mesmas funções? Esta cena do documentário é das que arrancam gargalhadas na plateia.
Desde 2005 que Alex Honnold tem por hábito anotar todos os treinos, os dias, as horas, as alturas, a forma como põe cada um dos dedos das mãos e os pés nas rochas, os passos que dá, como se movimenta. A sua memória está cheia de imagens das partes perigosas das paredes de escalada. “Se algum treinador lesse estes sete ou oito diários, ficaria chocado. É tudo muito pouco científico, sou só eu a dar o meu melhor. Ajuda-me a lembrar-me da performance”, conta. O que separa Alex das outras pessoas e o torna especial, na opinião da realizadora Chai Vasarhelyi, é a disciplina mental. “É muito inteligente, com um elevado QI, capaz de calcular o risco num grau muito apurado.”
No documentário, vemos Alex a fazer exames médicos que mostram como a amígdala cerebelosa, responsável pelas respostas emocionais básicas como a raiva, o medo ou o instinto de sobrevivência, está dessensibilizada, ao contrário da das outras pessoas. “O meu cérebro não é único ou diferente. Acontece que por fazer algo tão difícil como free solo vai para uma década, o meu cérebro não responde aos testes normais. Vê-se o mesmo efeito nos monges, por exemplo, por meditarem muito e estarem isolados.”
Medo de morrer
Quando Sanni McCandless conheceu Alex Honnold, achou-o estranho. Em Seattle, no fim de uma palestra, a coach motivacional, que trabalha com pessoas ligadas ao desporto aventura e a atividades ao ar livre, pediu-lhe um autógrafo. As filmagens de Free Solo começaram ainda antes de Alex conhecer Sanni. “É uma mulher forte que soube entrar na situação. Admiro-a muito porque, às vezes, não eram só dois na carrinha, éramos cinco lá dentro a filmar momentos íntimos”, lembra Chai Vasarhelyi. Aconteceu algo especial à medida que se foram apaixonando em frente das câmaras. “A sua química é fabulosa, algo magnético. Com ela, ele aprendeu a abraçar. Neste género de não-ficção, nunca sabemos o que vai acontecer a seguir e tivemos sorte. Apaixonou-se, temos alguém que o faz reagir, em vez de ser só um tipo sozinho numa carrinha, o que torna o filme mais interessante. E, de repente, são duas montanhas para escalar: El Capitan e a relação.”
Na vida de Alex Honnold nem todos os sonhos estão relacionados com a escalada. O californiano quer ter uma relação sólida com Sanni, trabalhar na Fundação Honnold, tentando fazer algo positivo no mundo ao financiar iniciativas que promovem as energias renováveis. “Os sonhos relacionados com a escalada ficam muito melhor no grande ecrã”, brinca. “Não me admiraria se a minha motivação e a minha tolerância para o risco mudassem ao ter uma família, mas veremos… Seguramente, farei easy soloing a vida inteira”, acrescenta.
Alex não se sente um super-herói e, como toda a gente, tem dias em que se sente no seu melhor, muito forte física e mentalmente, capaz de tudo, e outros dias em que se sente fraco e pequeno e a montanha parece impossível. Mas, afinal, de que tem medo Alex Honnold? Ondas grandes, alta velocidade, andar de avião, cobras? Nada disso. “Acho que tenho medo de morrer, tal como qualquer outra pessoa.” Depois de assistir a Free Solo, ninguém diria.