Com quatro letras apenas se escreve o alfabeto da vida: A, T, G e C são as bases azotadas ou nitrogenadas que compõem a molécula de ADN. Foi assim ao longo de milhões de anos até que, em 2012, e depois de 15 anos de trabalho, com muitas tentativas e quase outros tantos erros, o cientista do Instituto Scripps, na Califórnia, Floyd Romesberg, conseguiu criar duas novas bases totalmente sintéticas. Chamou-lhes X e Y e, em 2014, meteu-as na estrutura de ADN de uma bactéria, a E. coli. Surgiu, assim, o primeiro organismo vivo semissintético, “escrito” com seis letras, em vez das quatro presente em toda a vida.
Esta expansão do alfabeto do genoma abre um capítulo novo na Ciência, oferecendo inúmeras possibilidades na criação de proteínas. Com as quatro bases azotadas, os organismos vivos conseguiam produzir 20 aminoácidos diferentes. Por sua vez, estes aminoácidos são os blocos construtores das proteínas, as moléculas biológicas essenciais em todos os processos celulares. Estão envolvidas na saúde e, claro está, na doença também.
Portanto, a ideia de Floyd Romesberg – que, entretanto, fundou a empresa Synthorx – é usar esta capacidade de criar novas proteínas para corrigir alterações na maquinaria celular, as quais ocorrem em casos de cancro ou de patologias autoimunes. Os trabalhos pré-clínicos correram bem, e a empresa já fala em começar os primeiros testes em humanos. O principal candidato será uma molécula modificada de Interleucina 2, um importante mediador da imunidade do organismo. A nova molécula não natural, designada THOR-707 e produzida a partir dos seis aminoácidos, apresenta os mesmos benefícios ao nível da regulação do sistema imunitário, com efeitos secundários muito mais bem tolerados. Será testada em vários tipos de tumores, como terapia única e em combinação com outras imunoterapias.
“Conseguimos demonstrar que o nosso par de bases não só pode ser replicado, e mantido no genoma das bactérias, mas também que as bactérias podem ser usadas para produzir proteínas com mais de 20 aminoácidos”, explicou o cientista, ao receber o prémio da Royal Society de Química, no ano passado.
Brincar aos deuses
Apesar de ser um químico respeitado pelos pares, Romesberg tem enfrentado alguma crítica da sociedade civil e também da comunidade científica. Acusam-no de brincar aos deuses, de estar a criar seres do outro mundo. “A bactéria [semissintética] alimenta-se da sequência X, Y, o par de bases artificiais que não existe na Natureza. Por isso, fora do ambiente de laboratório que criámos, não sobreviveria”, explicou ao diário digital chileno El Mostrador, durante uma conferência na semana passada.
Mesmo que consiga incluir as novas bases num ser mais complexo, como é o caso do verme C. elegans, o risco é nulo, assegura o cientista, porque, tal como as bactérias, assim que deixasse de ser “alimentado” com X, Y, o verme morreria. Neste caso, o objetivo da experiência é verificar qual o efeito da introdução das bases sintéticas no comportamento do nemátodo transparente – por exemplo: se sofre alteração nas suas propriedades, como a resistência à luz, velocidade ou forma de reprodução.
O trabalho de Romesberg é o expoente máximo da chamada Biologia Sintética. Craig Venter, famoso pelo seu envolvimento no projeto de descodificação do genoma humano, também está na frente, com a construção em laboratório de uma bactéria. Neste caso, Venter e a sua equipa usaram as bases já conhecidas para montar todo o genoma da Mycoplasma mycoides. Criaram de raiz os 100 milhões de pares de bases, montando peça a peça, como uma construção de legos.
“A capacidade de escrever o software da vida vai dar origem a uma nova era na Ciência. Com isto, surgirão novos produtos e aplicações, tais como biocombustíveis, vacinas e medicamentos”, explica-se no site do Instituto Craig Venter. No fundo, o objetivo é utilizar bactérias, ou outros organismos nomeadamente o C. elegans, como fábrica para a produção de moléculas que nos interessem. Um processo que é usado, por exemplo, para a síntese de insulina, mas que, com esta capacidade de manipulação, pode chegar muito mais longe.
Em Portugal, a empresa SilicoLife, com sede em Braga, combina métodos de Inteligência Artificial para desenhar bactérias e leveduras, de forma a produzir compostos de interesse industrial. Graças a esta solução é possível substituir processos que tradicionalmente usam petróleo, o que se traduz “num menor custo ambiental”, como explica o CEO da biotecnológica, Simão Soares. Plásticos para a indústria automóvel, feitos a partir de resíduos da pasta de papel, é um dos exemplos de aplicação made in Minho. O futuro pode ser um lugar melhor.